Teria não mais do que cinco anos. Vivia conosco desde que nascera. Eu e ela éramos amigos, parceiros, companheiros: avô e neta! Desde aquele tempo já demonstrava personalidade forte, uma decisão sempre inabalável de estar mais certa do que todos os demais. Isso era verdadeiramente uma benção e uma graça. Por certo que o avô – falante irritante, ao modo burrinho do filme Shrek (2001) – tinha seu arsenal de jogos e manias que a deixavam brava. Naquele dia, combináramos um pacto (na linguagem dela um combino) e eu lhe prometi solenemente que seria fiel, seria completamente leal ao combino e à minha palavra. No entanto, chegado o momento de pôr em teste a tal lealdade, não resisti e fiz o que garantira não fazer… Ela, com um rostinho fechado entre a braveza e a desilusão, olhando-me de baixo para cima, dedo em riste, protestou, dizendo: “Meu avô, este não era o nosso combino!”. Foi só então que, primeiro aprendi a palavra combino e, segundo, percebi o quanto podemos magoar ao frustrar uma garotinha não honrando aquilo que, por iniciativa própria e numa escolha totalmente livre, havia eu prometido.
Há tempos, um conhecido psiquiatra em São Paulo equiparou o eterno objeto de nosso desejo – a felicidade – à imagem de um garotinho, seu neto, de quatro ou cinco anos, parado absorto embaixo de uma jabuticabeira, escolhendo – e comendo! –pérolas negras de jabuticaba (a etimologia da palavra é discutida e parece diversa; em todo caso, vem do tupi yauoti ‘kaua, para jabotekava, do nome indígena tupi jaboté, um tipo de botão e Kava, fruto semelhante, portanto, algo como: “frutas em botão”; poderia também significar “gordura de jabuti”, pela junção de îaboti, jabuti, e kaba, gordura). Nunca esqueci a bela imagem (se alguém souber exatamente a citação dele, foi num programa de televisão, por favor, pode me corrigir).
Chiara Lubich sempre acreditou no potencial dos jovens para protagonizar grandes ideais. Não é à toa que eles estão à frente de grandes conquistas políticas, sociais e culturais no Brasil e no mundo.
Aqui no nosso País, a desigualdade social e os problemas políticos impulsionam muitos deles a viver uma experiência diferente em um dos centros do Movimento dos Focolares, na Mariápolis Ginetta. A Escola de Jovens por um Mundo Unido recebe jovens comprometidos em mudar o mundo, para um semestre de formação espiritual e humana, onde compartilham experiências de fraternidade.
A Escola de JPMU é um reflexo da juventude do Movimento dos Focolares no Brasil, sempre ativa. Os animadores desses jovens, são os Gen (Geração Nova), jovens que vivem o carisma da unidade enquanto uma verdadeira vocação.
E prossegue o texto citado, informando e ilustrando um pouco da trajetória histórica de tal ação:
Em 1967, Chiara Lubich, com o lema “Jovens de todo o mundo, uni-vos!”, colocou as bases para a constituição dos movimentos juvenis. No ano seguinte nascia o Movimento gen e em 1985, como irradiação deste, os Jovens por um Mundo Unido.
Pertencem a diversas denominações cristãs, a várias religiões, ou não professam nenhuma crença religiosa, mas são todos ligados pelo desejo de construir o mundo unido, fazer com que a humanidade seja, cada vez mais, uma só família, no respeito pela identidade de cada um.
Percorrem todos os caminhos possíveis para construir a fraternidade universal, a fim de sanar as divisões existentes nas famílias, entre as gerações e entre os diversos grupos sociais.
Estão empenhados em campanhas internacionais de apoio à paz e à fraternidade, em manifestações públicas, locais ou mundiais – como os Genfest e a Semana Mundo Unido – nos quais testemunham que é possível viver como irmãos – assim como se comprometem como protagonistas de simples gestos de solidariedade e diálogo com quem está perto deles cada dia: pessoas necessitadas ou marginalizadas, amigos ou familiares. Em cada próximo procuram enxergar um irmão a ser acolhido.
Sabem que a unidade na qual acreditam, e pela qual se empenham, não é apenas um projeto humano, mas o desígnio de Deus sobre a humanidade (“Para que todos sejam uma coisa só”, Jo, 17,21).
Neste ano de 2024, segundo semestre, essa ação continua: a turma atual é formada por jovens, moços e moças, de diferentes nacionalidades (Alemanha, Colômbia, Cuba, França, Índia, México-EUA, Peru) além da brasileira. Dentro dos termos do projeto e de sua destinação, foi criado um ambiente profundamente reflexivo, pleno de contribuições e de desafios.
Fomos honrados pelo convite, juntamente a mais três casais, para que atuássemos como “padrinhos” dos jovens. Ademais, também tivemos oportunidade de apresentar debates referentes aos temas Valores e Escolhas, e, ainda, conduzir um exercício de formulação de projeto social (de eleição da turma) por meio da ferramenta Canvas.
Registramos nosso agradecimento aos jovens e à Coordenação da Escola!
Quantas vezes, nos últimos tempos, imaginamos uma sociedade regida pela Inteligência Artificial?
Mas afinal, o que é IA? Optei por duas definições.
Veja a primeira a seguir:
A inteligência artificial (IA) é um conjunto de tecnologias que permitem aos computadores executar uma variedade de funções avançadas, incluindo a capacidade de ver, entender e traduzir idiomas falados e escritos, analisar dados, fazer recomendações e muito mais.
A IA é a espinha dorsal da inovação na computação moderna, agregando valor para indivíduos e empresas. Por exemplo, o reconhecimento óptico de caracteres (OCR) usa IA para extrair texto e dados de imagens e documentos, transformando conteúdo não estruturado em pronto para negócios, dados estruturados e insights valiosos. (Definição Google).
Façam suas apostas: será que foi a própria IA que se definiu deste modo?
( ) Sim ou ( ) Não
Para a segunda definição encontrei a autora Dora Kaufman[2], que contribui deste modo:
A inteligência artificial hoje é fundamentalmente modelos estatísticos que, baseados em dados, calculam a probabilidade de eventos ocorrerem. Esse pequeno avanço tem sido responsável por transformações na economia, nas relações pessoais, na sociedade em geral, mas estamos a léguas de distância da chamada general AI (ou strong AI ou full AI), que, supostamente, seria uma inteligência artificial dotada de capacidades de nível humano. (Desmistificando a Inteligência Artificial, cap. Fundamentos e Lógica da IA, pg. 11)
Isso não se trata de mais uma ficção hollywoodiana. De fato, já ultrapassamos a hora da pergunta clássica:
Quem vencerá o duelo:
( ) Máquina ou ( ) Humanidade
Passados um quarto do século XXI, ainda existem fortes convicções sobre a permanência do pensamento do binário…
Continuando com as provocações vale destacar as irmãs Wachowski[4], pioneiras ao levar inovação à Sétima Arte no ano de 1999 com o filme Matrix.
Agora, é Real: a IA chegou!
Antes, temos que voltar à questão da ética e entender qual função essa palavra exercerá entre as estrelas: IA e Sociedade. Torcemos que seja além do Simbólico papel de figurante.
Mas afinal, o que é ética? Optei por essas duas versões.
Veja a primeira nas palavras do filósofo Aristóteles:
A ética (do grego ethos, “costume”, “hábito” ou “caráter”) está diretamente relacionada com a ideia de virtude (areté) e da felicidade (eudaimonia).
Já a segunda foi retirada do Dicionário Aurélio:
Reunião das normas de juízo de valor presentes em uma pessoa, sociedade ou grupo social: a ética parlamentar o impediu de transgredir suas convicções[5].
Mais uma provocação:
Numa sociedade cada vez mais individualista, seria possível usar felicidade para um bem coletivo?
( ) Sim ou ( ) Não
Seguindo a linha das definições, faltou explorar o conceito de sociedade. Então vamos lá.
Temos em sua origem etimológica: latim societas, -atis. Sociedade. O dicionário Priberam lista 11 mandamentos (grifo do autor), para definir esse substantivo feminino.
Selecionei duas:
1. Reunião de pessoas, unidas pela origem ou por leis (grifos do autor). 2. União de pessoas ligadas por ideias ou por algum interesse comum. = Agremiação, Associação.
Para não fugir da lógica textual, temos mais uma definição de sociedade.
Veja a seguir, nas palavras do também filosofo, Durkheim:
O conceito de fato social (fait social), cujas características básicas seriam sua exterioridade e coercividade, ou seja, os fatos sociais são independentes de nossas vontades e de nossas consciências, regendo nossas ações de forma impositiva[7].
Agora, pergunto-lhes, onde está o diferente?
( ) Prefiro não saber ( ) Se não é comigo, não me importo
Dando uma pausa nas provocações para resgatar o também pioneiro no campo das emoções, trata-se, de Sigmund Freud, neurologista e fundador da Psicanálise. Em 1895, prestes a completar 40 anos, Freud escreve uma carta[8], datada em 27 de abril, para seu amigo Wilhelm Fliess. Na ocasião, Freud se queixa de estar demasiadamente absorvido pela sua “Psicologia para Neurologistas”, em suas palavras:
“Sinto-me literalmente devorado por ela, a ponto de ficar exausto e me ver obrigado a interromper. Nunca passei por uma preocupação tão grande assim. E dará algum resultado? Espero que sim, mas é um trabalho difícil e lento”.
Coincidências não existem, é melhor pensar que é cômico: estou com a mesma idade que Freud tinha quando se inclinou para os estudos psicanalíticos. O que houve depois já virou fato, e a Psicanálise permanece sendo transmitida até hoje. Longe da erudição que Freud apresentou ao longo dos anos, sigo um próprio caminho, neste meu tempo de vida e amadurecimento. Dentro do possível, tento estudar o tema de IA e suas implicações para o desenvolvimento psíquico.
O avanço das novas tecnologias e a capacidade de transformar o mundo digital em um ecossistema é tão rápido quanto a velocidade dos neurônios em movimento. Em uma pequena comparação, a cada 300 milissegundos surge uma ferramenta, uma funcionalidade, um App. Portanto, uma criação, mas onde está o criador?
Por isso, faz-se necessário um novo projeto de psicologia científica que consiga mensurar, processar, analisar e compartilhar, principalmente no que diz respeito ao direcionamento dos recursos humanos alocados conforme suas competências.
Freud, certeiro, afirmou que seria exaustivo.
Em 2024, chegamos em um resultado e seguimos com aquela preocupação citada na carta de Freud, mas mudamos a pergunta: e o que disso tudo? Devemos esperar dificuldades e lentidão no trabalho; no entanto, temos o dever de usar esse tempo de lentidão a nosso favor para definir qual será a ética e as Owner Responsabilities, na implantação dos algoritmos de IA. Diante de uma sociedade, espera-se que não haja exclusão dos indivíduos.
Alguns meses após a primeira carta temática entre os amigos citados acima, mais precisamente em 20 de outubro, Freud se manifestou de maneira muito mais otimista:
“Durante uma noite em que estive muito ocupado… de repente as barreiras caíram por terra, os véus se desfizeram e me foi possível enxergar desde os detalhes das neuroses até os determinantes da consciência. Tudo pareceu encaixar-se e as engrenagens se ajustavam, dando a impressão de que o conjunto era realmente uma máquina que logo começaria a andar sozinha”.
Eis que surge a frase secular “uma máquina que logo começaria a andar sozinha”, Freud, um humano além dos tempos, deixou um legado, agora é conosco…
O que vamos fazer com esse dilema?
Perto de encerrar essa reflexão, usarei uma frase do professor André Filipe[9] citadas no minicurso: Inteligência Artificial, Ética, Sociedade.
Veja a seguir:
“A IA vai liberar o potencial humano”.
Concordo, não de modo tão otimista como Freud relatou na carta, mas, por ter uma característica pessimista e melancólica em relação à vida humana, diante de tanta alienação que poderia ser evitável se houvesse um interesse social que desafiasse os padrões na busca de novas ideias que compartilhassem o bem coletivo.
Enfim, preciso fazer mais uma provocação:
Quais pulsões a IA vai potencializar nos humanos?
Assinale abaixo a sua resposta:
A) Pulsão de Vida
B) Pulsão de Morte
C) Pulsão de Destrutividade
D) Nenhuma das Alternativas
[1] Ulisses Caballi Filho é psicanalista formado pelo CEP e psicólogo pela FMU, com especializações em Psicopatologia (PUC-COGEAE), Psicologia Esportiva (CEEPE) e Violência e Reinserção Social (UNIFESP). Ele possui experiência em Educação, Assistência Social e consultório, cofundou a Tempo Análise. Atualmente, cursa um MBA Executivo no Insper, onde também atua como coordenador operacional de Pós-Graduação Lato Sensu.
[2] Professora da PUCSP, doutora pela USP, Pós-doutora na COPPE-UFRJ e no TIDD PUCSP, Colunista Época Negócios, colaboradora dos jornais O Globo e Valor Econômico. Pesquisadora dos impactos éticos/sociais da IA descrição publicada no https://www.linkedin.com/in/dorakaufman/
[3] Frase de Hamlet, no Ato III, Cena I de A Tragédia de Hamlet. Escrita por William Shakespeare, do ano de 1623.
[8] FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, 1996. 24 v. (1895[1950]). Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. I, p. 335-454
Cada vez mais tem-se discutido o alcance, de maneira ampla e integrada, passando-se por diversas disciplinas, os métodos e a real eficácia da abordagem psiquiátrica atual para as difíceis questões da mente e do psiquismo.
Veja-se, por exemplo, dentre tantas outras, a obra corajosa do psiquiatra Guido Arturo Palomba chamada Decadência da Psiquiatria Ocidental., de 2021, pela Editora Del Rey (https://www.editoradelrey.com.br/direito/introducao-ao-estudo-do-direito/decadencia-da-psiquiatria-ocidental-9786500315462 ). O autor é Psiquiatra Forense, Ex-presidente e Membro Emérito da Academia de Medicina de São Paulo, Membro Titular da Academia Paulista de História, Membro Titular da Academia Cristã de Letras e Diretor Cultural da Associação Paulista de Medicina. Na Introdução, logo no primeiro parágrafo, pode-se ler:
“Os psiquiatras hodiernos passaram e passam por lavagem cerebral, somente possível por desconhecimento do arco histórico que lhes permitiria resistir à atual decadência da psiquiatria. Veriam como a especialidade foi se desenvolvendo desde os primeiros tempos para se organizar no século XIX e atingir o seu apogeu no século XX. Ajudaria a formar a consciência de como e por que tão rapidamente decaiu nessas duas primeiras décadas do século XXI, sendo a especialidade médica que mais se deteriorou no período. Os atuais fundamentos da especialidade, métodos de avaliação e sistemas de classificação parecem feitos sem conhecimentos mínimos do que seja uma verdadeira doença mental, com graves consequências na terapêutica. A Psiquiatria de hoje não tem bordas, limites rígidos a definir o que é e o que não é patológico, permitindo chamá-la de especialidade lassa, cujos diagnósticos e quadros clínicos foram e são alargados praticamente ad infinitum.”
Todavia, ao mesmo tempo que tantas críticas são feitas, há obras e testemunhos de psiquiatras que se devotam à psiquiatria colocando o paciente em primeiro lugar, sua história, sua trajetória, ouvindo-o de maneira larga e profunda, aos moldes do que era feito na Psiquiatria Dinâmica – para os céticos a respeito, que se veja, por exemplo, o cuidadoso descritivo apresentado por Roudinesco e Plon em seu excelente Dicionário de Psicanálise (
“Inicialmente utilizado por Gregory Zilboorg, em 1941, e depois por Henri F. Ellenberger, o termo psiquiatria dinâmica é empregado pelos historiadores, de um modo geral, para designar o conjunto das escolas e correntes que se interessam pela descrição e pela terapia das doenças da alma (loucura, psicose), dos nervos (neurose) e do humor (melancolia), segundo uma perspectiva dinâmica, ou seja, fazendo intervir um tratamento psíquico ao longo do qual se instaura uma relação de transferência entre o médico e o doente. Assim, incluem-se na psiquiatria dinâmica todas as formas de tratamento psíquico que privilegiam a psicogênese e não a organogênese das doenças da alma e dos nervos, desde o magnetismo de Franz Anton Mesmer até a psicanálise, passando pelo hipnotismo e pelas diversas psicoterapias.
Vista por esse prisma, a psiquiatria dinâmica relaciona-se, em primeiro lugar, com a psiquiatria, da qual toma emprestadas as classificações e a clínica; em segundo, com a psicologia, que postula um dualismo da alma e do corpo e propõe técnicas de observação do sujeito; e finalmente, com a tradição dos antigos curandeiros, da qual pôde emergir a própria idéia de uma cura transferencial.” (Grifo meu; Dicionário de psicanálise/ Elisabeth Roudinesco, Michel Plon; tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge. — Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 627)
Assim, no rol das esperanças, quero agora me referir ao recentemente lançado no Brasil: Que artista o meu artista – A vida de Simonetta Magari.
Neste pequeno notável livro, imbricam-se – de fato – as vidas, ou pensamentos e obras, de três maiores e magistrais artistas, a saber: Deus! desde sempre; a focolarina e psiquiatra Simonetta Magari (de quem o livro trata); e o escritor-autor Fabio Ciardi, que foi quem com imensos carinho, denodo, talento e lealdade redigiu o texto. O grande pano de fundo é a vida de Simonetta: de sua infância e seus sonhos primaveris, à difícil opção, tomada com calma, reflexão e determinação, por um modelo incomum de vida, até sua escolha profissional, posta a serviço daquele projeto de vida, e já na fase derradeira, a coragem incomparável que emerge de seu delicadíssimo quadro de saúde e a mantém perseverante em seu caminho, fé, lógica e escolha. Aquela escolha que se deu lá antes, nos anos jovens, mas que se susteve e se fortaleceu a cada avanço e cada percalço, para culminar, nos tempos do martírio da doença, numa clareza ímpar de sua visão e percepção da vida, valorizando-a de maneira total!
No livro, inúmeras lições podem ser encontradas: de vida, de amor, de fé, de diligência, de bondade etc. Todavia, fiel ao título dessa nota, restrinjo-me apenas ao lá anunciado, isto é, o aspecto psiquiátrico. E vou direto ao coração de nosso debate: páginas 44 e 45. Permitam-me a longa citação, mas a Simonetta Magari fala e o grande amigo Fabio Ciardi escreve:
“Você sabe quem é uma focolarina?
“Ela é a guardiã da chama, daquele fogo que Jesus veio trazer à terra. Ela a conserva com zelo, não comum uma pobre vestal forçada pelo destino, mas com a paixão de um amor tão forte quanto o fogo que Jesus acendeu em seu coração.
“Não é um recipiente refratário, inerte: deixa-se queimar por aquela chama, que a envolve a transforma em fogo.
“É uma pessoa que inflama como foi inflamada e expande o incêndio do amor: dá alegria a Jesus, que veio entre nós realizando o desejo Dele de ver o próprio fogo arder e se espalhar por toda a terra.
“É uma pessoa que mantém viva aquela chama do amor que se fez pessoa ao lado das outras: Jesus no meio no focolare.
“Como, então, não permanecer sempre uma ‘popa’*, uma criança, com o encanto do primeiro amor?
“Os frutos são evidentes (…) Testemunho milagres contínuos em minha vida e também no meu trabalho. Sou psiquiatra e psicoterapeuta e não consigo expressar o espanto ao ver pessoas se curarem e se libertarem da prisão do próprio eu, que paralisa, acorrenta. Quando consigo fazer-me um com o outro e levá lo a não ser para ser, a vida e o amor nascem em pessoas entorpecidas há anos. Quando um eu se reforça e se torna nós, o psicoterapeuta ou o medicamento não são mais necessários. Testemunho com respeito sagrado o florescimento do relacionamento com Deus em almas que pensavam que não o tinham. Consigo levar a descobrir o ouro que existe em meio a tanta lama de imoralidade…
“Não lhe contei o que descobri ainda em Ancona. Alvoradas maravilhosas. Nuvens escuras e ameaçadoras que pairam sobre o ar revolto e fazem a pele arrepiar. Céus muito límpidos de um azul tênue que acolhem o nascer do sol com serenidade e calma, sem se perturbarem. A alternância de véus com as mil cores do arco-íris que envolvem um sol ardente que nasce aguerrido, com força, dominando o próprio céu. Nunca uma manhã é como a outra. Que grande artista é o meu artista. Compensa com as suas alvoradas os meus ocasos de Anzio.”
[Popa: termo utilizado no Movimento dos Focolares que provem do dialeto da região de Trento, Itália, que significa criança. (N. d. T.)]
Curto e comovente livro. Conciso no raciocínio e na linguagem, larguíssimo no amor e transcendência. Provocativo e inspirador. Faz parar, faz pensar, faz querer agir!
Parabéns e agradecimentos a Simonetta e a Fabio.
Anotem:
Fabio Ciardi, conforme apresentado no livro, professor emérito do Instituto Teológico Claretianum, de Roma, e diretor do Centro de Estudos dos Missionários Oblatos de Maria Imaculada, autor de muitas obras, é quem nos traz um tanto da vida e das reflexões, dos sofrimentos e do amor, do ensimesmamento e da entrega de Simonetta Magari.
Assim escreveu Fabio Ciardi, em 6 de outubro de 2024, por ocasião do terceiro aniversário de falecimento de Simonetta Maggari:
“Hoje na Madonna del Carmine recordamos o terceiro aniversário da morte de Simonetta Magari.
“Lembrei-me especialmente do ‘fio vermelho’ que guiou toda a sua vida: a consciência de estar nas mãos de Deus que trabalhou nela para torná-la uma obra-prima. Ela o escreveu ainda pequena, e o escreveu no final da vida, na carta dirigida ao Papa: «Sinto-me um ‘banco’ onde todos podem sacar, porque a relação com Deus é sempre Deeper. A doença é o Seu cinzelamento, com o qual Ele faz da sua obra uma obra-prima. São justamente os golpes que mais doem que dão a forma. A doença é um privilégio e uma dádiva Dele, o que me leva a dizer, apesar do sofrimento, que este é o período mais lindo da minha vida porque experimento uma alegria que nunca senti antes. No entanto, estou consciente de que a minha força vem do amor daqueles que me rodeiam e da unidade que existe no lar que torna Jesus visível entre nós”.
“somos o que fazemos do tempo ou somos o que o tempo nos faz?” (M.D. 1941-2008)
“Seria mais fácil aprender japonês em braile” do que escolher uma obra literária para abrir esta seção! Apropriei-me das palavras do poeta e musico Djavan na tentativa de deixar uma fenda para a futura seção em nosso Portal Música e Psi.
Quantas pessoas já não se dedicaram a tentar entender e explicar o que é a vida: poetas, escritores, dramaturgos, cientistas, filósofos, religiosos, psicanalistas; todos estes ao longo do tempo, e outros, têm buscado interpretar, decifrar o que é a vida. A lista seria – e é – interminável. Vejamos, por exemplo, um pequeno trecho inicial da abordagem de um filósofo muito respeitado por sua obra e por seu dicionário, Abbagnano (Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 5ª. ed., São Paulo, Editora Martins Fontes, 2007):
o trauma da pandemia, o seu esquecimento e o limiar de uma nova era
MARIA GRAVINA OGATA
Maria Gravina Ogata, bacharela em direito e em Geografia, com mestrado em geografia física e doutorado em ciência política, lançou recentemente seu novo livro. É dito na última capa: “Em meio à perplexidade e à solidão, que afetaram a humanidade durante a pandemia da COVID-19, a autora mostra que o último reduto de uma pessoa é o seu fortalecimento interior, por meio da fé, da família e dos amigos. O texto traz alguns temas para reflexão que indicam a antecipação de uma nova era: a saúde como bem público global, as crises dos estados nacionais, do liberalismo e da democracia, além das mudanças de comportamento.”
Autor: Ulisses Caballi Filho Chegou o mês de setembro. Em tempos passados, aguardava-se ansiosamente o feriado da Independência para celebrar o fim de um período em que a pátria amada estava sob o domínio de outra nação. Em um piscar de olhos, dois séculos se esvaíram no tempo. E esse é o tempo que não tem hora marcada; chega sem avisar. Aquele grito de “Independência ou Morte”[1] hoje parece inexistente em uma sociedade hiper conectada, entretanto desconexa, além de dividida e marcada por preconceitos e vieses.
Mas por que recusa/resista? Muita coisa aconteceu nesses mais de 200 anos de independência. A banda Sepultura[3], talvez, precisasse de um volume quádruplo do Chaos A.D.[4] para alinhavar o que ocorreu de lá para cá. Enfim, isso não será possível, pois a banda chegou a um quinto do período de nossa independência como país. Aos 40 anos, foi difícil não ficar emocionado ao ouvir Black Sabbath e Titãs precedendo a abertura magistral de “Refuse/Resist”. Logo me perguntei: o que será do Sepultura depois disso?
A perspectiva da finitude para os músicos do Sepultura é algo que ocorre diariamente, desde a saída dos dois irmãos. Mesmo em tempos distintos, essa mudança foi sofrida. Apesar disso, os Cavalera deixaram sua marca tatuada na história da banda. Por situações advindas, escolhas foram feitas, e o legado que a banda construiu ao longo dessas quatro décadas não pôde ser compartilhado em comunhão até o momento. A vida é uma espécie de fotografia revelada, que apenas em seu negativo podemos realmente recordar, repetir e elaborar.
Como se não bastasse um show, fui à segunda noite, um pouco mais fortalecido emocionalmente. Mesmo assim, ao ouvir “Inner Self[5]“, cogitei escrever algo a respeito. Aqui estou, tentando voltar a exercitar minhas habilidades enquanto adolescente, talvez pela vontade de gritar ao mundo como bem fez Derrick Green. Em duas noites consecutivas, havia uma terceira no domingo, e até pensei em ir; um é pouco, dois é bom e três seria demais? Mas já tinha comprado o ingresso para a peça A Mulher da Van[6], derivada do filme *A Senhora da Van*, ambas inspiradas no livro homônimo de Alan Bennett[7]. O filme é interpretado por Maggie Smith[8]e a peça, por Nathalia Timberg[9], ambas ratificam a existência da beleza na velhice. Aos poucos, por oportunidades de mercado, a velhice passa a ser chamada de economia dourada. Apenas um parêntese para conectar a importância de ter uma velhice ativa e bem instruída, de modo que seja possível, como Nathalia, usar a tecnologia como auxílio, empregando um tablet, uma espécie de teleprompter que guiou a potência de sua voz, enrouquecida pelo tempo, longe do gutural de Derrick, mas tão poderosa quanto. Assim, no domingo à tarde, após duas noites intensas de metal, busquei algo mais relaxante e fui ao teatro assistir à peça A Mulher da Van, com Nathalia Timberg. Aos 95 anos, fazendo a personagem se lançar ao palco mesmo numa cadeira de rodas, ela pôde se divertir quando empurrada de um lado ao outro do tablado. E o que foi aquela última gargalhada?
Persiste a dúvida sobre o que será da arte quando não houver mais Sepultura e Nathalia Timberg. Sim, fiz a conexão; já havia dado o spoiler acima de que é possível mostrar que pode existir união nas diferenças. Veja que, de um lado, temos a transição entre o vigor da música pesada e do outro a sensibilidade do teatro, revelando uma mudança no cenário artístico, além de um convite à reflexão sobre o legado que essas expressões culturais deixarão. A união de diferentes formas de arte e a continuidade do grito de resistência e expressão, seja no metal ou no teatro, nos lembra que a luta pela resistência e pela verdade continua, mesmo quando as vozes mais poderosas se tornam silenciadas pelo tempo.
Sendo o momento de começar a dizer adeus, novamente apropriando-me de outro spoiler e conectando com a psicanálise freudiana, vemos que, ao longo dos anos, apesar das inúmeras situações criadas sobre sua persona, Freud pôde aprofundar seus pensamentos e motivações, especialmente no que se refere às questões da finitude.
Vejamos que o texto Recordar, Repetir e Elaborar[10] traz o sentido de rememorar o que foi vivido anteriormente, tempos passados, de modo que essa memória possa nos permitir olhar para frente e ter a capacidade de enxergar o fim. No entanto, essa capacidade muitas vezes esbarra em comportamentos repetidos, padronizados e até mesmo ritualísticos. Entretanto, não podemos esquecer o sentido literal da palavra; ou seja, um rito é um processo necessário para entender o fechamento de um ciclo. Um comportamento repetitivo é uma espécie de muralha que nos impede de acessar o grande ato da maturidade, que reconhece sua força e capacidade de deixar legados, mesmo se aproximando da finitude. Sepultura e Nathalia conseguiram romper essa muralha para acessar o infinito da história. A turnê de encerramento presenteou seus fãs com a importância de recordar o passado, refletir sobre as conquistas e celebrar o fim da banda com os fãs.
Não se sabe se a peça *A Mulher da Van* será o último papel interpretado por Nathalia, mas a atriz voará infinitamente por suas atuações e narrativas históricas. Por fim, existe um legado a seguir, uma possibilidade de encontrar nas experiências vividas um novo entendimento de si diante do próprio fim.
Vejamos abaixo como Freud, finalizou o texto: Recordar, Repetir e Elaborar (1914):
Eu poderia me deter aqui, se o título deste ensaio não me obrigasse à exposição de mais um ponto da técnica psicanalítica. Como se sabe, a superação das resistências tem início quando o médico desvela a resistência jamais reconhecida pelo paciente e a comunica a ele. Mas parece que os principiantes da análise se inclinam a tomar esse início pelo trabalho inteiro. Com frequência fui consultado a respeito de casos em que o médico se queixou de haver mostrado ao doente sua resistência, sem que no entanto algo mudasse, a resistência havia mesmo se fortalecido e toda a situação se turvado ainda mais. Aparentemente, a terapia não estava indo adiante. Essa expectativa sombria resultou sempre errada. Em geral a terapia fazia progresso; o médico tinha apenas esquecido que nomear a resistência não pode conduzir à sua imediata cessação. É preciso dar tempo ao paciente para que ele se enfronhe na resistência agora conhecida,* para que a elabore,* para que a supere, prosseguindo o trabalho apesar dela, conforme a regra fundamental da análise. Somente no auge da resistência podemos, em trabalho comum com o analisando, descobrir os impulsos instintuais que a estão nutrindo, de cuja existência e poder o doente é convencido mediante essa vivência. O médico nada tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem um curso que não pode ser evitado, e tampouco ser sempre acelerado. Atendo-se a essa compreensão, ele se poupará muitas vezes a ilusão de haver fracassado, quando na realidade segue a linha correta no tratamento. Na prática, essa elaboração das resistências pode se tornar uma tarefa penosa para o analisando e uma prova de paciência para o médico. Mas é a parte do trabalho que tem o maior efeito modificador sobre o paciente, e que distingue o tratamento psicanalítico de toda influência por sugestão. Teoricamente pode-se compará-la com a “ab-reação” dos montantes de afeto retidos pela repressão, [ab-reação] sem a qual o tratamento hipnótico permanecia ineficaz.
Dito isto, agora é com você.
[1] Pintura do artista brasileiro Pedro Américo, inspirada numa frase suspostamente dita por Pedro 1º.
[3] A banda foi formada em 1984 em Belo Horizonte, Brasil, por Max Cavalera (vocal e guitarra), Igor Cavalera (bateria), Paulo Jr. (baixo) e Jairo Guedz (guitarra). A formação atual inclui Derrick Green (vocais), Andreas Kisser (guitarra), Paulo Jr. (baixo) e Greyson Nekrutman.
[5] Tradução livre: Eu interior. 2ª faixa do Álbum Beneath the Remains, lançado em 1987.
[6] Mary Shepherd é uma senhora idosa, que mora dentro de uma van. Devido aos seus hábitos, os moradores não gostam quando ela decide estacionar o carro próximo à sua casa. O único que a tolera é o escritor Alan Bennett. Após algum tempo, os moradores conseguem proibir que qualquer carro fique estacionado no bairro, mas a sra. Shepherd encontra uma saída.
[7] Conhecido é Sir Alan Bennett, um dramaturgo, roteirista e ator britânico. Ele nasceu em 1934,
[8] Margaret Natalie “Maggie” Smith, atriz britânica, nascida em Ilford, 28 de dezembro de 1934.
[9] Nathalia Timberg, atriz brasileira, nascida no Rio de Janeiro, em 05 de agosto de 1929.
[10] Obras completas, Freud, Sigmund. Vol. 12, trabalho original publicado em 1914.
Às vezes é bem difícil mesmo. E sabem o porquê? Porque cada vez mais somos menos treinados para isso. Mas eu pediria calma ao simpático serzinho do desenho acima, ou pelo menos suficiente paciência para conhecer o poderoso argumento de Boécio que veremos a seguir.