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“NÃO É JUSTO, MEU AVÔ!”

fausto antonio de azevedo
Para M. H.

DICE – DEUSA GREGA DA JUSTIÇA

Felizes os que têm fome e sede da justiça,

porque serão saciados.

Mateus 5:6

Teria por volta de quatro anos. O neto caçula. Numa tardinha, à hora da refeição em família, ele, sentado à cabeceira da mesa, aguardava que a diligente mamãe lhe preparasse o lanche. Nisso entretido e conversando com ela, nem percebeu que o avô subtraiu para si o aguardado sanduíche, assim que a mãe o colocou sobre a mesa. Ao se virar, ele olhou espantado para mim, tal avô, e, constatando que eu comia com apetite o que se destinara a ele, não reagiu da maneira mais frequentemente vista com as crianças, seja clamando a ajuda da mãe, seja chorando, seja com qualquer outro tipo de birra ou pirraça; pelo contrário, fitou-me fundo por alguns instantes e soltou a frase acachapante: “Não é justo, meu avô!

Pois bem, e o que é justiça então?

O Dicionário Caldas Aulete eletrônico, registra alguns de seus significados para o substantivo feminino justiça. O primeiro: “1.  Situação em que cada um recebe o que lhe cabe, como resultado de seus atos ou de acordo com os princípios e a lei da sociedade em que vive [Antôn.: injustiça.]” e, o segundo: “2.  Capacidade ou virtude de ser imparcial ao julgar e de ser conforme à lei e à ética; ISENÇÃO [Antôn.: injustiça.]” (https://www.aulete.com.br/justi%C3%A7a).

Pelos dois sentidos iniciais presentes no dicionário referido, mais aquela citação do apóstolo Mateus (5.6), epígrafe a este texto, fica muito contundente que, em nossos tempos presentes, a justiça verdadeira não tem sido praticada nem mesmos pelos titulares da Justiça.

Etimologicamente, justiça vem do latim iustitia (com “i”, já que no latim não existe a letra jota “j” e com “t” em vez de “c”). Ela é composta pela palavra iustus, da qual derivam justo, injusto etc. Iustus, por sua vez, forma-se por ius (direito, justiça), associada à raiz indo-europeia yewes (lei). Acrescenta-se do sufixo tus, indicativo do que recebeu a ação (como em adultos, sensatos) e do sufixo ia, que forma adjetivos abstratos femininos (como alegria, vitória e outros) (https://etimologias.dechile.net/?justicia). Como se vê, sua formação é tão complexa quanto seus significados e sua prática, daí, talvez, a sempre apontada dificuldade dos magistrados no seu exercício.

A mitologia grega nos oferece, de seu vasto panteão de deuses e deusas, a deusa Dice (Dike ou Astreia), como a personificação da justiça (correspondente à deusa Iustitia da mitologia romana, restauradora das violações das leis). Dice e suas irmãs, Eunomia e Irene, eram as três Horas, filhas de Zeus e Têmis. Dice se incumbia da vigilância das atitudes humanas e, se necessário, apresentava queixas a Zeus, quando, por exemplo, um juiz violava a própria justiça. Sabiamente, a deusa buscava, por um lado, corrigir e punir a injustiça cometida e, por outro lado, tratava de recompensar a virtude. Dice, que tinha uma filha, Hesíquia, representante da tranquilidade da consciência, é apresentada descalça e com os olhos abertos e atentos à verdade, enquanto a Iustitia romana o é de olhos vendados, empunhando uma espada e uma balança. Consoante o que se lê no site do Supremo Tribunal Federal (STF), “os gregos colocavam a balança com os dois pratos na mão esquerda da deusa Diké, mas sem o fiel no meio, e em sua mão direita estava uma espada e estando de pé com os olhos bem abertos declarava existir o justo quando os pratos estavam em equilíbrio.” E mais “Segundo IHERING, 2004 ‘o direito não é mero pensamento, mas sim força viva. Por isso, a Justiça segura, numa das mãos, a balança, com a qual pesa o direito, e na outra a espada, com a qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a fraqueza do direito. Ambas se completam e o verdadeiro estado de direito só existe onde a força, com a qual a Justiça empunha a espada, usa a mesma destreza com que maneja a balança”.

https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=dike#:~:text=Divindade%20grega%20que%20representa%20a,Dice%2C%20ou%20ainda%2C%20Astreia).

E o que nos diz a filosofia? No Dicionário de Filosofia, de Abbagnano, pode-se ler:

JUSTIÇA (gr. SiKatoaúvn; lat. Justitia; in. Justice, fr. Justice, ai. Gerechtigkeít; it. Giustizia). Em geral, a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Podem-se distinguir dois significados principais: 1- como conformidade da conduta a uma norma; 2como eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas), entendendo-se por eficiência de uma norma certa capacidade de possibilitar as relações entre os homens. No primeiro significado, esse conceito é empregado para julgar o comportamento humano ou a pessoa humana (esta última, com base em seu comportamento). No segundo significado, é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento. A problemática histórica dos dois conceitos, ainda que freqüentemente interligada e confundida, é completamente diferente.”

(Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, Editora Martins Fontes, 2007, p. 593-6.)

E a partir desses dois conceitos se estenderá uma longa discussão mediada por muitos pensadores e filósofos.

No largo domínio do pensamento religioso cristão a respeito, destaco – e vale lembrar – que Deus tem a justiça como um atributo próprio de Si, inerente, inseparável e inextricável. E, por isto, Ele é perfeita, total e integralmente justo, desprovido de qualquer injustiça. Ele, e só Ele, é a referência e o padrão daquilo que é justo, correto e reto, e, assim, deriva que justiça só pode ser tudo aquilo que se encontra de acordo com o que é justo, é correto e reto. E saliento mais o que segue.

Armindo dos Santos Vaz, em seu artigo O específico da justiça na Bíblia hebraica, quando comenta: “Recapitulando os elementos da justiça na Bíblia hebraica, encontramos em primeiro lugar uma relação entre pessoas e não simplesmente uma lei. A pessoa será justa ou injusta, não por cumprir rigorosamente os preceitos em causa, mas por se relacionar justa ou injustamente com outra pessoa. A justiça bíblica é então a relação que promove e realiza o sentido radical da vida humana.” E mais:

“Toda a experiência de fé do Israel bíblico fazia finca-pé na profundíssima captação da identidade entre Deus e a justiça. Há em toda a Bíblia hebraica poucos conceitos tão vinculados a Deus como o de justiça. Para o israelita crente, Deus não existe sem a justiça. Precisamente por isso, a pessoa que ama Deus não pode ser tocada pela injustiça (Sab 2). A tal ponto se dá essa identidade entre Deus e justiça que a palavra “justo” desloca a sua significação da pessoa que pratica a justiça nas relações humanas para a pessoa que está em paz com Deus e que, por isso, não pode ser atingida pelo fracasso ou pelas injustiças humanas.

“Porque a realização da justiça sempre acontece no terreno das relações inter-humanas, na Bíblia hebraica aquilo a que chamamos amor é parte integrante da justiça, é a alma da justiça. O amor gera a atmosfera e o ambiente em que pode prosperar a justiça. Dá a visão e a consciência daquilo que é justo e dá força para conceder aos outros o que lhes é devido. Podemos dizer que, sem amor, a justiça não consegue viver. Quem quiser alcançar só a justiça não o conseguirá. Para alcançá-la, é preciso pôr a mira mais longe: é necessário o amor. O amor exige a justiça e a justiça não pode prescindir do amor.

Os políticos do nosso tempo beijam quase diariamente a palavra ‘justiça’. Como se a amassem!… Só a ama quem dá o peito às injustiças que se cevam nas relações sociais. Exigir justiça lutando contra a injustiça, com palavras e atitudes proféticas, libertadoras é estar convencido de que só o amor ao ser humano é construtivo e forte. Nessa luta bíblica também entra a oração dos salmistas. O orante que pede justiça divina não luta contra a própria desgraça mas contra o mal feito a seres humanos. A forma de viver segundo a justiça [şedāqāh] e a bondade [hesed], convida a contribuir para a construção de uma ordem planetária [şedeq], fundada na fidelidade aos valores da justiça.”

(Armindo dos Santos Vaz, O específico da justiça na Bíblia hebraica. Cultura  –  Revista  de  História  e  Teoria  das  Ideias, Vol. 30, 2012– A justiça na Antiguidade. https://journals.openedition.org/cultura/1563.)

(Grifos meus.)

De acordo com Dom Paulo Mendes Peixoto, Arcebispo Metropolitano de Uberaba, assim como encontramos no site da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB:

“O apóstolo Paulo mostra os parâmetros que envolvem o sentido da justiça na bíblia, quando ele diz: ‘Nele se revela a justiça de Deus, que vem pela fé e conduz à fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’ (Rm 1,17)’. Isso significa que a justiça está em sintonia com a vontade de Deus e na realização autêntica dos atos do ser humano na relação com as pessoas e com toda a natureza.

As leis são promulgadas para fazer acontecer, na prática, o cumprimento da justiça entre as pessoas. Os fariseus e doutores da lei quiseram incriminar Jesus dizendo que Ele não observava as leis de seu tempo. Ele era inclusive colocado à prova porque não poderia ser contra as leis. Mas para Jesus a pessoa humana está acima da lei, principalmente quando o seu cumprimento ocasiona injustiça.

As palavras bíblicas mostram claramente que Deus age com justiça e é misericordioso, que perdoa a mulher adúltera (Jo 8,1-11), exige mudança de vida e fará seu julgamento final. Então, estão bem relacionadas, a justiça, a misericórdia e o cumprimento das leis que, para fazer o bem, devem ser justas. Querem justificar determinados erros instrumentalizando a aplicação das leis, fazendo injustiça.

As repetidas práticas de injustiça acabam chegando a um final desconcertante. Como diz o ditado: ‘Mais cedo ou mais tarde a casa cai’. Significa que a injustiça não se justifica e não tem estabilidade. E estamos assistindo as consequências dessa realidade. Podemos citar os acontecimentos drásticos dos últimos tempos, violência, prisão de políticos, derramamento de lama etc.

Para o sentimento bíblico, a ação de injustiça mina a riqueza contida na vida cristã, destrói a conduta de quem a pratica e causa transtornos de identidade pessoal. A consciência do ser humano é um lugar sagrado, onde mora a divindade. E é justamente nela que o indivíduo consegue construir a vida de sintonia e de amor com Deus e realizar o exercício pleno da justiça e da caridade.

Sem nenhum legalismo e nem intimismo, podemos dizer que a verdadeira justiça significa fazer um processo de identificação com Jesus Cristo, ser seguidor de seus ensinamentos, mesmo que para isto haja sofrimentos. (…) (https://www.cnbb.org.br/a-justica-na-biblia/). (Grifos meus.)

Fechando a breve digressão acima, quanto ao binômio religião-justiça, embora não seja aqui o lugar para desenvolver mais a fundo e pertinentemente a indicação que farei, não posso conter o desejo de mencionar e indicar o excelente texto “Paradoxos do Cristianismo”, capítulo VI do livro Ortodoxia, de Gilbert K. Chesterton (Jandira/SP: Editora Principis, 2019, páginas 100-127).

Percorrendo agora um pouco do vasto domínio da Psicanálise, quero ater-me a um aspecto particular do assunto, enfocado por Maíra Gomes e Fernando Aguiar em seu artigo, Sobre sujeito do direito e sujeito da psicanálise. E quero iniciar anotando o próprio resumo do artigo, que já é bastante claro e didático:

“Considera-se que o conceito psicanalítico de inconsciente contribui para que o Direito possa ser mais plenamente uma prática de justiça. Em outros termos, para que o Direito exerça eminentemente a garantia de direitos, e não a imposição de deveres. Coloca-se aqui em diálogo o Direito e a Psicanálise a partir de suas noções de sujeito, demarcando-se onde se aproximam ou se distanciam epistemologicamente esses campos do saber. Nessa direção, as lições da Psicanálise sobre a subjetividade daquele que comete crimes são exemplares, alertando que não é a repressão que possibilita a inscrição da alteridade, e que responsabilização não se obtém pela via da culpabilização. Encontra-se, na Justiça Restaurativa, uma maior perspectiva de diálogo entre Direito e Psicanálise.”

(Maíra Marchi Gomes, Fernando Aguiar, Sobre sujeito do direito e sujeito da psicanálise, Cad. Psicanál. (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 40, n. 39, p.191-212, 2018. https://pepsic.bvsalud.org/pdf/cadpsi/v40n39/v40n39a10.pdf.) (Grifos meus.)

De fato, crimes podem apresentar semelhanças entre si, do ponto de vista forense, operacional, circunstancial etc., mas os psiquismos daqueles que os cometem são, muito possivelmente, carregados de diferenças, porque são singularidades. Se o conveniente diálogo sugerido acima pelos autores puder avançar, seguramente muito se evoluirá na aplicação da justiça. O assim chamado Direito Positivo (sinta-se aí uma pitada do racionalismo do Positivismo), dizem os catedráticos, só pode se assentar na racionalidade, na “objetividade” desta, a qual, como se sabe, reside no córtex pré-frontal (PFC), em termos de anatomia cerebral, e na zona da Consciência, em termos de topologia da mente. Mas, a pergunta que não cala é, e o imenso domínio do inconsciente? Alguém poderá responder, não muito longe de estar certo, que tal inconsciente estará, por óbvio, agindo por dentro das ações do consciente, se assim se pode dizer, mas isso não creio ser o bastante para melhorar a percepção e a sensibilidade dos que analisam a gênese e a anatomia dos crimes. Veja-se os autores retro citados:

“É pertinente começar com uma menção aos princípios que são fonte do Direito Positivo: a dogmática jurídica. Assim, muito mais que nos ater às jurisprudências ou à lei em si, parece-nos fundamental analisar a racionalidade envolta na própria fundação da ciência jurídica moderna. Ou, em outros termos, abordar o enunciado que sustenta as enunciações manifestas em leis e em suas fundamentações.” (Idem a indicação da citação anterior.)

Por uma parte, o argumento da dificuldade do Direito de tipificar tantos sujeitos do direito quanto sejam os sujeitos do inconsciente, em sua miríade de ocorrências, mesmo quando considerado um só indivíduo, parece ter relevância. Mesmo assim, a estratégia reducionista de “encaixar” toda a fluidez e sutilezas de cada inconsciente numa forma única de sujeito a qual facilita ou viabiliza a prática dos tribunais, não se me apresenta como a mais inteligente. Por outro lado, a dinâmica da sociedade, cada vez mais veloz, mais “fast”, e superficial, exige respostas imediatas que só podem ser fornecidas mediante a instalação e operação de uma efetiva linha de montagem…

Citando outro autor, a saber Assis da Costa Oliveira, Maíra Gomes e Fernando Aguiar, lembram com ele que:

“(…) foi a partir da construção de uma entidade abstrata como “sujeito do Direito”, constituída por noções de igualdade e consciência (presente nos discursos tanto da vertente jus naturalista como nos da vertente jus positivista), que a subjetividade foi inserida no discurso jurídico: ‘Construção discursiva que serve a quem institui práticas políticas que necessitam de certa homogeneidade dos indivíduos, a fim de dissolvê-los numa ficção totalitária de igualdade formal que nega as diferenças e alteridades […], escamoteando as prescrições normativas de caráter coercitivo e moral no discurso da igualdade e universalidade dos dispositivos jurídicos assimilados pela ótica da cidadania e soberania política.’ ” (Idem a indicação da citação anterior.)

E mais ainda, de forma arrebatadora, salientando o que não deixa de ser um tipo de usurpação, na medida em que esse sujeito do direito é submetido a uma forma de normatização que chega mesmo a inferir a maneira mais adequada para seu gozo. Já quase chegamos ao comprimido de soma proposto no Admirável mundo novo escrito por Aldous Huxley. Vamos ler:

“De maneira mais “aplicada”, podem ser assim resumidas as enunciações nas quais o enunciado do Direito concebe o sujeito como universal e consciente: O sujeito de que o direito nos fala é o sujeito de direitos e de deveres. Ele tem sua descrição dada pela via da instância do eu, imaginária, consciente, moldado segundo o ordenamento jurídico vigente. É a pessoa que via de regra é capaz, tem pleno gozo de suas faculdades mentais, é consciente, entende o caráter criminoso ou não de seus atos e é capaz de determinar-se de acordo com este entendimento (SILVA, 2002, p. 14).

Esse sujeito é proposto como ‘normatizável’ (e, antes disso, regulável), e também como passível de proteção. Tal proteção se daria pela oferta, em nome do cumprimento de modelos de ações genéricas e idealizadas, de nominações que o representariam, dando conta do seu gozo. Uma clara demonstração de como o Direito apresenta-se como detentor do gozo do sujeito seria a ideia de ‘o que não está nos autos, não está no mundo’, que impõe ao sujeito, como condição de sua existência, a adequação à listagem de significantes-mestres, sendo as leis, as doutrinas e as jurisprudências os significantes de saber por excelência.” (Idem a indicação da citação anterior.) (Grifos meus.)

E eis a padronização reducionista do eu-sujeito em sua infinitude de variantes, só porque isto convém ao “bom” e “pleno” funcionamento da sociedade, uma fisiologia social abstrata que se quer sobrepor, com poder de mando, à natureza das funções psíquicas individuais. Aliás, neste ponto recomendo a leitura da obra O mal-estar na cultura, de Sigmund Feud.

Mas os autores em foco prosseguem, e numa linguagem que meus amigos lacanianos tanto apreciam:

“Outra demonstração de como o Direito pretende substituir o sujeito (anular a subjetividade, em nome de um saber generalizável) seria a imensidão de legislações e de alterações legislativas, tentando tudo prever, reprimir o contingente, regular o factível, mantendo no Outro do Direito (ou seja, a lei) um saber inesgotável. O Direito tenta ‘migrar o gozo para os significantes do saber, não do saber do gozo, mas do saber que, paradoxalmente, dele não quer saber, pretendendo regulá-lo com leis escritas, ignorando o impossível do gozo. Quando isso não ocorre, dá-se a foraclusão* da questão’ (SILVA, 2002, p. 15).”

(Foraclusão: De acordo com o Dicionário de Psicanálise, de Roudinesco e Plon, trata-se de um “Conceito forjado por Jacques Lacan para designar um mecanismo específico da psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído. Não é integrado no inconsciente, como no recalque, e retorna sob forma alucinatória no real do sujeito.” / Elisabeth Roudinesco, Michel Plon, Dicionário de psicanálise, Zahar, 1998, páginas 245-246.) (Idem a indicação da citação anterior.)

“(…) mantendo no Outro do Direito (ou seja, a lei) um saber inesgotável” e, eu acrescentaria, pretensiosamente único.

Por fim, como importante reflexão, os apontados autores Maíra Gomes e Fernando Aguiar arrematam:

“A compreensão de sujeito, para a Psicanálise, por sua vez, é aquele que não pode ser apreendido a partir de manifestações como comportamentos. Haveria uma singularidade, só compreendida no discurso, e que expressaria o inconsciente. Esse sujeito não seria universal porque a concepção de causalidade linear mostra-se insuficiente para a compreensão da subjetividade humana. A Psicanálise define o humano a partir do conceito de sujeito, e este, por sua vez, só é definível a partir da noção de inconsciente. Dessa maneira, um fenômeno externo não teria um correspondente interno. Em outros termos, não é possível generalizar os efeitos subjetivos de determinada vivência objetiva, já que cada sujeito responde à realidade objetiva de maneiras singulares. A realidade subjetiva é singular, e é apenas a partir dela que se pode acessar o sujeito.” (Grifos meus.)

Sempre é bom reforçar o significado do significante singular. Diz-nos o Caldas Aulete eletrônico que singular é “1.  Único na sua espécie (objeto singular). [ Antôn.: comum. ] / 2.  Especial, raro: Possui um talento singular. [ Antôn.: comum. ] / 3.  Fora do comum (acontecimento singular); EXCEPCIONAL [ Antôn.: comum. ] / 4.  Que difere de outros (comportamento singular); INUSITADO; ESTRANHO” (https://www.aulete.com.br/singular).

Bem, se com a intromissão da Psicanálise no assunto fica criado um enorme desafio para a Justiça, aquela que quer ser justa tanto com “faltantes” quanto com juízes (e aqui não posso deixar de me lembrar do sétimo livro da Bíblia Sagrada, o segundo dos livros históricos, o Juízes), mas, sobretudo que deve ser fiel à lei estipulada e pactuada, o ônus do aumento da dificuldade, que já não era pouca, que seja lançado na contabilidade da riqueza e da complexidade da natureza humana. Não é porque ainda estamos longe de a apreender por inteiro, se é que um dia tal conquista ocorrerá, que podemos simplificá-la a nossos interesses imediatos, fazendo de conta que ela não existe. E isso é que é ser justo.

Então, neto amado: não, não foi mesmo nem um pouco justo seu avô surripiar sua tão apetitosa merenda. Ele pede as devidas desculpas e agradece o ensinamento que você lhe ofertou com sua afirmação. Como é difícil – mas não impossível – entender verdadeiramente o que é justo e praticar uma justiça sempre maior e correta, consoante os princípios superiores e não conforme os mesquinhos interesses mundanos, sempre tão ligados ao poder e à riqueza material!

O COMBINO E A LEALDADE

fausto antonio de azevedo

Para Let

Teria não mais do que cinco anos. Vivia conosco desde que nascera. Eu e ela éramos amigos, parceiros, companheiros: avô e neta! Desde aquele tempo já demonstrava personalidade forte, uma decisão sempre inabalável de estar mais certa do que todos os demais. Isso era verdadeiramente uma benção e uma graça. Por certo que o avô – falante irritante, ao modo burrinho do filme Shrek (2001) – tinha seu arsenal de jogos e manias que a deixavam brava. Naquele dia, combináramos um pacto (na linguagem dela um combino) e eu lhe prometi solenemente que seria fiel, seria completamente leal ao combino e à minha palavra. No entanto, chegado o momento de pôr em teste a tal lealdade, não resisti e fiz o que garantira não fazer… Ela, com um rostinho fechado entre a braveza e a desilusão, olhando-me de baixo para cima, dedo em riste, protestou, dizendo: “Meu avô, este não era o nosso combino!”. Foi só então que, primeiro aprendi a palavra combino e, segundo, percebi o quanto podemos magoar ao frustrar uma garotinha não honrando aquilo que, por iniciativa própria e numa escolha totalmente livre, havia eu prometido.

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O menino que colhia caju – e a felicidade
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O menino que colhia caju  –  e a felicidade

para J.V.

Há tempos, um conhecido psiquiatra em São Paulo equiparou o eterno objeto de nosso desejo –  a felicidade  – à imagem de um garotinho, seu neto, de quatro ou cinco anos, parado absorto embaixo de uma jabuticabeira, escolhendo – e comendo! –pérolas negras de jabuticaba (a etimologia da palavra é discutida e parece diversa; em todo caso, vem do tupi yauoti ‘kaua, para jabotekava, do nome indígena tupi jaboté, um tipo de botão e Kava, fruto semelhante, portanto, algo como: “frutas em botão”; poderia também significar “gordura de jabuti”, pela junção de îaboti, jabuti, e kaba, gordura). Nunca esqueci a bela imagem (se alguém souber exatamente a citação dele, foi num programa de televisão, por favor, pode me corrigir).

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Reflexões sobre a Inteligência Artificial, Ética, Sociedade e a Psicanálise

Por Ulisses Caballi Filho[1]

Como seriam nossas vidas sem uma sociedade ética?

Que tal aguçar a discussão que está por vir?

Vejamos:

Quantas vezes, nos últimos tempos, imaginamos uma sociedade regida pela Inteligência Artificial?

Mas afinal, o que é IA? Optei por duas definições.

Veja a primeira a seguir:

A inteligência artificial (IA) é um conjunto de tecnologias que permitem aos computadores executar uma variedade de funções avançadas, incluindo a capacidade de ver, entender e traduzir idiomas falados e escritosanalisar dados, fazer recomendações e muito mais. 

A IA é a espinha dorsal da inovação na computação moderna, agregando valor para indivíduos e empresas. Por exemplo, o reconhecimento óptico de caracteres (OCR) usa IA para extrair texto e dados de imagens e documentos, transformando conteúdo não estruturado em pronto para negócios, dados estruturados e insights valiosos. (Definição Google).

Façam suas apostas: será que foi a própria IA que se definiu deste modo?

(   ) Sim ou (   ) Não

Para a segunda definição encontrei a autora Dora Kaufman[2], que contribui deste modo:

A inteligência artificial hoje é fundamentalmente modelos estatísticos que, baseados em dados, calculam a probabilidade de eventos ocorrerem. Esse pequeno avanço tem sido responsável por transformações na economia, nas relações pessoais, na sociedade em geral, mas estamos a léguas de distância da chamada general AI (ou strong AI ou full AI), que, supostamente, seria uma inteligência artificial dotada de capacidades de nível humano. (Desmistificando a Inteligência Artificial, cap. Fundamentos e Lógica da IA, pg. 11)

Isso não se trata de mais uma ficção hollywoodiana. De fato, já ultrapassamos a hora da pergunta clássica:

Quem vencerá o duelo:

(   ) Máquina ou (   ) Humanidade

Passados um quarto do século XXI, ainda existem fortes convicções sobre a permanência do pensamento do binário…

(   ) Ser ou (   ) Não ser, eis a questão[3]!

Continuando com as provocações vale destacar as irmãs Wachowski[4], pioneiras ao levar inovação à Sétima Arte no ano de 1999 com o filme Matrix.

Agora, é Real: a IA chegou!

Pesquisa feita no BING para imagens de Neurônios sendo indicado o banco de imagens da https://pixabay.com/get/

Antes, temos que voltar à questão da ética e entender qual função essa palavra exercerá entre as estrelas: IA e Sociedade. Torcemos que seja além do Simbólico papel de figurante.

Mas afinal, o que é ética? Optei por essas duas versões.

Veja a primeira nas palavras do filósofo Aristóteles:

A ética (do grego ethos, “costume”, “hábito” ou “caráter”) está diretamente relacionada com a ideia de virtude (areté) e da felicidade (eudaimonia).

Já a segunda foi retirada do Dicionário Aurélio:

Reunião das normas de juízo de valor presentes em uma pessoa, sociedade ou grupo social: a ética parlamentar o impediu de transgredir suas convicções[5].

Mais uma provocação:

Numa sociedade cada vez mais individualista, seria possível usar felicidade para um bem coletivo?

(   ) Sim ou (   ) Não

Seguindo a linha das definições, faltou explorar o conceito de sociedade. Então vamos lá.

Mas afinal, o que é a Sociedade?[6]

Temos em sua origem etimológica: latim societas, -atis. Sociedade. O dicionário Priberam lista 11 mandamentos (grifo do autor), para definir esse substantivo feminino.

Selecionei duas:

1. Reunião de pessoas, unidas pela origem ou por leis (grifos do autor). 2. União de pessoas ligadas por ideias ou por algum interesse comum. = Agremiação, Associação.

Para não fugir da lógica textual, temos mais uma definição de sociedade.

Veja a seguir, nas palavras do também filosofo, Durkheim:

O conceito de fato social (fait social), cujas características básicas seriam sua exterioridade e coercividade, ou seja, os fatos sociais são independentes de nossas vontades e de nossas consciências, regendo nossas ações de forma impositiva[7].

Agora, pergunto-lhes, onde está o diferente?

(   ) Prefiro não saber (   ) Se não é comigo, não me importo

Dando uma pausa nas provocações para resgatar o também pioneiro no campo das emoções, trata-se, de Sigmund Freud, neurologista e fundador da Psicanálise. Em 1895, prestes a completar 40 anos, Freud escreve uma carta[8], datada em 27 de abril, para seu amigo Wilhelm Fliess. Na ocasião, Freud se queixa de estar demasiadamente absorvido pela sua “Psicologia para Neurologistas”, em suas palavras:

“Sinto-me literalmente devorado por ela, a ponto de ficar exausto e me ver obrigado a interromper. Nunca passei por uma preocupação tão grande assim. E dará algum resultado? Espero que sim, mas é um trabalho difícil e lento”.

Pesquisa feita no Bing para imagens de Freud e Fliess foi indicado essa foto que provém do Wikimedia Commons, um acervo de conteúdo livre da Wikimedia Foundation que pode ser utilizado por outros projetos na https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:FreudFliess1890.jpg Freud, mais alto a esquerda e Fliess a direita. 

Coincidências não existem, é melhor pensar que é cômico: estou com a mesma idade que Freud tinha quando se inclinou para os estudos psicanalíticos. O que houve depois já virou fato, e a Psicanálise permanece sendo transmitida até hoje. Longe da erudição que Freud apresentou ao longo dos anos, sigo um próprio caminho, neste meu tempo de vida e amadurecimento. Dentro do possível, tento estudar o tema de IA e suas implicações para o desenvolvimento psíquico.

O avanço das novas tecnologias e a capacidade de transformar o mundo digital em um ecossistema é tão rápido quanto a velocidade dos neurônios em movimento. Em uma pequena comparação, a cada 300 milissegundos surge uma ferramenta, uma funcionalidade, um App. Portanto, uma criação, mas onde está o criador?

Por isso, faz-se necessário um novo projeto de psicologia científica que consiga mensurar, processar, analisar e compartilhar, principalmente no que diz respeito ao direcionamento dos recursos humanos alocados conforme suas competências.

Freud, certeiro, afirmou que seria exaustivo.

Em 2024, chegamos em um resultado e seguimos com aquela preocupação citada na carta de Freud, mas mudamos a pergunta: e o que disso tudo? Devemos esperar dificuldades e lentidão no trabalho; no entanto, temos o dever de usar esse tempo de lentidão a nosso favor para definir qual será a ética e as Owner Responsabilities, na implantação dos algoritmos de IA. Diante de uma sociedade, espera-se que não haja exclusão dos indivíduos.

Pesquisa feita no BING para imagens de Sociedade antes de sugerir o quadro Os Operários de Tarsila do Amaral, o App traz a seguinte definição: Eu entendo que você precisa de imagens da sociedade. A sociedade é um conceito amplo e complexo, que envolve as relações humanas, as instituições, as culturas, as normas e os valores que organizam a vida coletiva. Existem diferentes formas de representar a sociedade por meio de imagens, dependendo do ponto de vista, do objetivo e do contexto do autor.

Alguns meses após a primeira carta temática entre os amigos citados acima, mais precisamente em 20 de outubro, Freud se manifestou de maneira muito mais otimista:

“Durante uma noite em que estive muito ocupado… de repente as barreiras caíram por terra, os véus se desfizeram e me foi possível enxergar desde os detalhes das neuroses até os determinantes da consciência. Tudo pareceu encaixar-se e as engrenagens se ajustavam, dando a impressão de que o conjunto era realmente uma máquina que logo começaria a andar sozinha”.

Eis que surge a frase secular “uma máquina que logo começaria a andar sozinha”, Freud, um humano além dos tempos, deixou um legado, agora é conosco…

O que vamos fazer com esse dilema?

Perto de encerrar essa reflexão, usarei uma frase do professor André Filipe[9] citadas no minicurso: Inteligência Artificial, Ética, Sociedade.

Veja a seguir:

                  “A IA vai liberar o potencial humano”.

Concordo, não de modo tão otimista como Freud relatou na carta, mas, por ter uma característica pessimista e melancólica em relação à vida humana, diante de tanta alienação que poderia ser evitável se houvesse um interesse social que desafiasse os padrões na busca de novas ideias que compartilhassem o bem coletivo.

Enfim, preciso fazer mais uma provocação:

Quais pulsões a IA vai potencializar nos humanos?

Assinale abaixo a sua resposta:

A) Pulsão de Vida

B) Pulsão de Morte

C) Pulsão de Destrutividade

D) Nenhuma das Alternativas


[1] Ulisses Caballi Filho é psicanalista formado pelo CEP e psicólogo pela FMU, com especializações em Psicopatologia (PUC-COGEAE), Psicologia Esportiva (CEEPE) e Violência e Reinserção Social (UNIFESP). Ele possui experiência em Educação, Assistência Social e consultório, cofundou a Tempo Análise. Atualmente, cursa um MBA Executivo no Insper, onde também atua como coordenador operacional de Pós-Graduação Lato Sensu.

[2] Professora da PUCSP, doutora pela USP, Pós-doutora na COPPE-UFRJ e no TIDD PUCSP, Colunista Época Negócios, colaboradora dos jornais O Globo e Valor Econômico. Pesquisadora dos impactos éticos/sociais da IA descrição publicada no https://www.linkedin.com/in/dorakaufman/

[3] Frase de Hamlet, no Ato III, Cena I de A Tragédia de Hamlet. Escrita por William Shakespeare, do ano de 1623.

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Lilly_e_Lana_Wachowski

[5] https://www.dicio.com.br/etica/

[6] https://dicionario.priberam.org/sociedade

[7] https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/978-85-309-6411-5/epubcfi/6/14[%3Bvnd.vst.idref%3Dfrontmatter01]!/4/38/3:161[o%20p%2Clan]

[8] FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, 1996. 24 v. (1895[1950]). Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. I, p. 335-454

[9] https://www.insper.edu.br/pesquisa-e-conhecimento/docentes-pesquisadores/andre-filipe-de-moraes-batista/

Artigos

UMA OUTRA FORMA DE SE FAZER PSIQUIATRIA

fausto antonio de azevedo

Cada vez mais tem-se discutido o alcance, de maneira ampla e integrada, passando-se por diversas disciplinas, os métodos e a real eficácia da abordagem psiquiátrica atual para as difíceis questões da mente e do psiquismo.

Veja-se, por exemplo, dentre tantas outras, a obra corajosa do psiquiatra Guido Arturo Palomba chamada Decadência da Psiquiatria Ocidental., de 2021, pela Editora Del Rey (https://www.editoradelrey.com.br/direito/introducao-ao-estudo-do-direito/decadencia-da-psiquiatria-ocidental-9786500315462 ). O autor é Psiquiatra Forense, Ex-presidente e Membro Emérito da Academia de Medicina de São Paulo, Membro Titular da Academia Paulista de História, Membro Titular da Academia Cristã de Letras e Diretor Cultural da Associação Paulista de Medicina. Na Introdução, logo no primeiro parágrafo, pode-se ler:

“Os psiquiatras hodiernos passaram e passam por lavagem cerebral, somente possível por desconhecimento do arco histórico que lhes permitiria resistir à atual decadência da psiquiatria. Veriam como a especialidade foi se desenvolvendo desde os primeiros tempos para se organizar no século XIX e atingir o seu apogeu no século XX. Ajudaria a formar a consciência de como e por que tão rapidamente decaiu nessas duas primeiras décadas do século XXI, sendo a especialidade médica que mais se deteriorou no período. Os atuais fundamentos da especialidade, métodos de avaliação e sistemas de classificação parecem feitos sem conhecimentos mínimos do que seja uma verdadeira doença mental, com graves consequências na terapêutica. A Psiquiatria de hoje não tem bordas, limites rígidos a definir o que é e o que não é patológico, permitindo chamá-la de especialidade lassa, cujos diagnósticos e quadros clínicos foram e são alargados praticamente ad infinitum.”

Todavia, ao mesmo tempo que tantas críticas são feitas, há obras e testemunhos de psiquiatras que se devotam à psiquiatria colocando o paciente em primeiro lugar, sua história, sua trajetória, ouvindo-o de maneira larga e profunda, aos moldes do que era feito na Psiquiatria Dinâmica – para os céticos a respeito, que se veja, por exemplo, o cuidadoso descritivo apresentado por Roudinesco e Plon em seu excelente Dicionário de Psicanálise (

“Inicialmente utilizado por Gregory Zilboorg, em 1941, e depois por Henri F. Ellenberger, o termo psiquiatria dinâmica é empregado pelos historiadores, de um modo geral, para designar o conjunto das escolas e correntes que se interessam pela descrição e pela terapia das doenças da alma (loucura, psicose), dos nervos (neurose) e do humor (melancolia), segundo uma perspectiva dinâmica, ou seja, fazendo intervir um tratamento psíquico ao longo do qual se instaura uma relação de transferência entre o médico e o doente. Assim, incluem-se na psiquiatria dinâmica todas as formas de tratamento psíquico que privilegiam a psicogênese e não a organogênese das doenças da alma e dos nervos, desde o magnetismo de Franz Anton Mesmer até a psicanálise, passando pelo hipnotismo e pelas diversas psicoterapias.

Vista por esse prisma, a psiquiatria dinâmica relaciona-se, em primeiro lugar, com a psiquiatria, da qual toma emprestadas as classificações e a clínica; em segundo, com a psicologia, que postula um dualismo da alma e do corpo e propõe técnicas de observação do sujeito; e finalmente, com a tradição dos antigos curandeiros, da qual pôde emergir a própria idéia de uma cura transferencial.” (Grifo meu; Dicionário de psicanálise/ Elisabeth Roudinesco, Michel Plon; tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge. — Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 627)

Assim, no rol das esperanças, quero agora me referir ao recentemente lançado no Brasil: Que artista o meu artista – A vida de Simonetta Magari.

Neste pequeno notável livro, imbricam-se – de fato – as vidas, ou pensamentos e obras, de três maiores e magistrais artistas, a saber: Deus! desde sempre; a focolarina e psiquiatra Simonetta Magari (de quem o livro trata); e o escritor-autor Fabio Ciardi, que foi quem com imensos carinho, denodo, talento e lealdade redigiu o texto. O grande pano de fundo é a vida de Simonetta: de sua infância e seus sonhos primaveris, à difícil opção, tomada com calma, reflexão e determinação, por um modelo incomum de vida, até sua escolha profissional, posta a serviço daquele projeto de vida, e já na fase derradeira, a coragem incomparável que emerge de seu delicadíssimo quadro de saúde e a mantém perseverante em seu caminho, fé, lógica e escolha. Aquela escolha que se deu lá antes, nos anos jovens, mas que se susteve e se fortaleceu a cada avanço e cada percalço, para culminar, nos tempos do martírio da doença, numa clareza ímpar de sua visão e percepção da vida, valorizando-a de maneira total!

No livro, inúmeras lições podem ser encontradas: de vida, de amor, de fé, de diligência, de bondade etc. Todavia, fiel ao título dessa nota, restrinjo-me apenas ao lá anunciado, isto é, o aspecto psiquiátrico. E vou direto ao coração de nosso debate: páginas 44 e 45. Permitam-me a longa citação, mas a Simonetta Magari fala e o grande amigo Fabio Ciardi escreve:

“Você sabe quem é uma focolarina?

“Ela é a guardiã da chama, daquele fogo que Jesus veio trazer à terra. Ela a conserva com zelo, não comum uma pobre vestal forçada pelo destino, mas com a paixão de um amor tão forte quanto o fogo que Jesus acendeu em seu coração.

“Não é um recipiente refratário, inerte: deixa-se queimar por aquela chama, que a envolve a transforma em fogo.

“É uma pessoa que inflama como foi inflamada e expande o incêndio do amor: dá alegria a Jesus, que veio entre nós realizando o desejo Dele de ver o próprio fogo arder e se espalhar por toda a terra.

“É uma pessoa que mantém viva aquela chama do amor que se fez pessoa ao lado das outras: Jesus no meio no focolare.

“Como, então, não permanecer sempre uma ‘popa’*, uma criança, com o encanto do primeiro amor?

“Os frutos são evidentes (…) Testemunho milagres contínuos em minha vida e também no meu trabalho. Sou psiquiatra e psicoterapeuta e não consigo expressar o espanto ao ver pessoas se curarem e se libertarem da prisão do próprio eu, que paralisa, acorrenta. Quando consigo fazer-me um com o outro e levá lo a não ser para ser, a vida e o amor nascem em pessoas entorpecidas há anos. Quando um eu se reforça e se torna nós, o psicoterapeuta ou o medicamento não são mais necessários. Testemunho com respeito sagrado o florescimento do relacionamento com Deus em almas que pensavam que não o tinham. Consigo levar a descobrir o ouro que existe em meio a tanta lama de imoralidade…

“Não lhe contei o que descobri ainda em Ancona. Alvoradas maravilhosas. Nuvens escuras e ameaçadoras que pairam sobre o ar revolto e fazem a pele arrepiar. Céus muito límpidos de um azul tênue que acolhem o nascer do sol com serenidade e calma, sem se perturbarem. A alternância de véus com as mil cores do arco-íris que envolvem um sol ardente que nasce aguerrido, com força, dominando o próprio céu. Nunca uma manhã é como a outra. Que grande artista é o meu artista. Compensa com as suas alvoradas os meus ocasos de Anzio.”

[Popa: termo utilizado no Movimento dos Focolares que provem do dialeto da região de Trento, Itália, que significa criança. (N. d. T.)]

Curto e comovente livro. Conciso no raciocínio e na linguagem, larguíssimo no amor e transcendência. Provocativo e inspirador. Faz parar, faz pensar, faz querer agir!

Parabéns e agradecimentos a Simonetta e a Fabio.

Anotem:

Fabio Ciardi, conforme apresentado no livro, professor emérito do Instituto Teológico Claretianum, de Roma, e diretor do Centro de Estudos dos Missionários Oblatos de Maria Imaculada, autor de muitas obras, é quem nos traz um tanto da vida e das reflexões, dos sofrimentos e do amor, do ensimesmamento e da entrega de Simonetta Magari.

Simonetta Magari

Para os que têm facilidade de leitura no idioma italiano, indico Simonetta Magari: a tu per tu con la Sla, em: https://www.cittanuova.it/simonetta-magari-grande-donna-dio-la-sla/?se=026

Assim escreveu Fabio Ciardi, em 6 de outubro de 2024, por ocasião do terceiro aniversário de falecimento de Simonetta Maggari:

“Hoje na Madonna del Carmine recordamos o terceiro aniversário da morte de Simonetta Magari.

“Lembrei-me especialmente do ‘fio vermelho’ que guiou toda a sua vida: a consciência de estar nas mãos de Deus que trabalhou nela para torná-la uma obra-prima. Ela o escreveu ainda pequena, e o escreveu no final da vida, na carta dirigida ao Papa: «Sinto-me um ‘banco’ onde todos podem sacar, porque a relação com Deus é sempre Deeper. A doença é o Seu cinzelamento, com o qual Ele faz da sua obra uma obra-prima. São justamente os golpes que mais doem que dão a forma. A doença é um privilégio e uma dádiva Dele, o que me leva a dizer, apesar do sofrimento, que este é o período mais lindo da minha vida porque experimento uma alegria que nunca senti antes. No entanto, estou consciente de que a minha força vem do amor daqueles que me rodeiam e da unidade que existe no lar que torna Jesus visível entre nós”.

(https://fabiociardi.blogspot.com/2024/10/ricordando-simonetta.html – Tradução pelo recurso do Google tradutor)

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VIDA

Quantas pessoas já não se dedicaram a tentar entender e explicar o que é a vida: poetas, escritores, dramaturgos, cientistas, filósofos, religiosos, psicanalistas; todos estes ao longo do tempo, e outros, têm buscado interpretar, decifrar o que é a vida. A lista seria – e é – interminável. Vejamos, por exemplo, um pequeno trecho inicial da abordagem de um filósofo muito respeitado por sua obra e por seu dicionário, Abbagnano (Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 5ª. ed., São Paulo, Editora Martins Fontes, 2007):

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Fim!

Autor: Ulisses Caballi Filho
Chegou o mês de setembro. Em tempos passados, aguardava-se ansiosamente o feriado da Independência para celebrar o fim de um período em que a pátria amada estava sob o domínio de outra nação. Em um piscar de olhos, dois séculos se esvaíram no tempo. E esse é o tempo que não tem hora marcada; chega sem avisar. Aquele grito de “Independência ou Morte” [1] hoje parece inexistente em uma sociedade hiper conectada, entretanto desconexa, além de dividida e marcada por preconceitos e vieses.

A vida passa como um raio que poderia destruir ideologias vãs, mas não é bem assim. Sabemos que, para o show continuar ou para a vida propriamente dita, é necessário pedir bis em uníssono; não podemos esquecer de fazer isso juntos e em coro, gritando “mais um”, mesmo que, se não houvesse, teríamos tentado. Então, vamos nos arriscar mais agora em busca de re-viver esse grito de “Independência ou Morte”, como ouvimos e cantamos em “Refuse/Resist[2]“!

                        Foto:  https://www.sepultura.com.br/

Mas por que recusa/resista? Muita coisa aconteceu nesses mais de 200 anos de independência. A banda Sepultura[3], talvez, precisasse de um volume quádruplo do Chaos A.D.[4] para alinhavar o que ocorreu de lá para cá. Enfim, isso não será possível, pois a banda chegou a um quinto do período de nossa independência como país. Aos 40 anos, foi difícil não ficar emocionado ao ouvir Black Sabbath e Titãs precedendo a abertura magistral de “Refuse/Resist”. Logo me perguntei: o que será do Sepultura depois disso?

A perspectiva da finitude para os músicos do Sepultura é algo que ocorre diariamente, desde a saída dos dois irmãos. Mesmo em tempos distintos, essa mudança foi sofrida. Apesar disso, os Cavalera deixaram sua marca tatuada na história da banda. Por situações advindas, escolhas foram feitas, e o legado que a banda construiu ao longo dessas quatro décadas não pôde ser compartilhado em comunhão até o momento. A vida é uma espécie de fotografia revelada, que apenas em seu negativo podemos realmente recordar, repetir e elaborar.

Como se não bastasse um show, fui à segunda noite, um pouco mais fortalecido emocionalmente. Mesmo assim, ao ouvir “Inner Self[5]“, cogitei escrever algo a respeito. Aqui estou, tentando voltar a exercitar minhas habilidades enquanto adolescente, talvez pela vontade de gritar ao mundo como bem fez Derrick Green. Em duas noites consecutivas, havia uma terceira no domingo, e até pensei em ir; um é pouco, dois é bom e três seria demais? Mas já tinha comprado o ingresso para a peça A Mulher da Van[6], derivada do filme *A Senhora da Van*, ambas inspiradas no livro homônimo de Alan Bennett[7]. O filme é interpretado por Maggie Smith[8] e a peça, por Nathalia Timberg[9], ambas ratificam a existência da beleza na velhice. Aos poucos, por oportunidades de mercado, a velhice passa a ser chamada de economia dourada. Apenas um parêntese para conectar a importância de ter uma velhice ativa e bem instruída, de modo que seja possível, como Nathalia, usar a tecnologia como auxílio, empregando um tablet, uma espécie de teleprompter que guiou a potência de sua voz, enrouquecida pelo tempo, longe do gutural de Derrick, mas tão poderosa quanto. Assim, no domingo à tarde, após duas noites intensas de metal, busquei algo mais relaxante e fui ao teatro assistir à peça A Mulher da Van, com Nathalia Timberg. Aos 95 anos, fazendo a personagem se lançar ao palco mesmo numa cadeira de rodas, ela pôde se divertir quando empurrada de um lado ao outro do tablado. E o que foi aquela última gargalhada?

Foto: Priscila Prade https://www.sescsp.org.br/programacao/a-mulher-da-van/

Persiste a dúvida sobre o que será da arte quando não houver mais Sepultura e Nathalia Timberg. Sim, fiz a conexão; já havia dado o spoiler acima de que é possível mostrar que pode existir união nas diferenças. Veja que, de um lado, temos a transição entre o vigor da música pesada e do outro a sensibilidade do teatro, revelando uma mudança no cenário artístico, além de um convite à reflexão sobre o legado que essas expressões culturais deixarão. A união de diferentes formas de arte e a continuidade do grito de resistência e expressão, seja no metal ou no teatro, nos lembra que a luta pela resistência e pela verdade continua, mesmo quando as vozes mais poderosas se tornam silenciadas pelo tempo.

Sendo o momento de começar a dizer adeus, novamente apropriando-me de outro spoiler e conectando com a psicanálise freudiana, vemos que, ao longo dos anos, apesar das inúmeras situações criadas sobre sua persona, Freud pôde aprofundar seus pensamentos e motivações, especialmente no que se refere às questões da finitude.

Vejamos que o texto Recordar, Repetir e Elaborar[10] traz o sentido de rememorar o que foi vivido anteriormente, tempos passados, de modo que essa memória possa nos permitir olhar para frente e ter a capacidade de enxergar o fim. No entanto, essa capacidade muitas vezes esbarra em comportamentos repetidos, padronizados e até mesmo ritualísticos. Entretanto, não podemos esquecer o sentido literal da palavra; ou seja, um rito é um processo necessário para entender o fechamento de um ciclo. Um comportamento repetitivo é uma espécie de muralha que nos impede de acessar o grande ato da maturidade, que reconhece sua força e capacidade de deixar legados, mesmo se aproximando da finitude. Sepultura e Nathalia conseguiram romper essa muralha para acessar o infinito da história. A turnê de encerramento presenteou seus fãs com a importância de recordar o passado, refletir sobre as conquistas e celebrar o fim da banda com os fãs.

Não se sabe se a peça *A Mulher da Van* será o último papel interpretado por Nathalia, mas a atriz voará infinitamente por suas atuações e narrativas históricas. Por fim, existe um legado a seguir, uma possibilidade de encontrar nas experiências vividas um novo entendimento de si diante do próprio fim.

Vejamos abaixo como Freud, finalizou o texto: Recordar, Repetir e Elaborar (1914):

Eu poderia me deter aqui, se o título deste ensaio não me obrigasse à exposição de mais um ponto da técnica psicanalítica. Como se sabe, a superação das resistências tem início quando o médico desvela a resistência jamais reconhecida pelo paciente e a comunica a ele. Mas parece que os principiantes da análise se inclinam a tomar esse início pelo trabalho inteiro. Com frequência fui consultado a respeito de casos em que o médico se queixou de haver mostrado ao doente sua resistência, sem que no entanto algo mudasse, a resistência havia mesmo se fortalecido e toda a situação se turvado ainda mais. Aparentemente, a terapia não estava indo adiante. Essa expectativa sombria resultou sempre errada. Em geral a terapia fazia progresso; o médico tinha apenas esquecido que nomear a resistência não pode conduzir à sua imediata cessação. É preciso dar tempo ao paciente para que ele se enfronhe na resistência agora conhecida,* para que a elabore,* para que a supere, prosseguindo o trabalho apesar dela, conforme a regra fundamental da análise. Somente no auge da resistência podemos, em trabalho comum com o analisando, descobrir os impulsos instintuais que a estão nutrindo, de cuja existência e poder o doente é convencido mediante essa vivência. O médico nada tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem um curso que não pode ser evitado, e tampouco ser sempre acelerado. Atendo-se a essa compreensão, ele se poupará muitas vezes a ilusão de haver fracassado, quando na realidade segue a linha correta no tratamento. Na prática, essa elaboração das resistências pode se tornar uma tarefa penosa para o analisando e uma prova de paciência para o médico. Mas é a parte do trabalho que tem o maior efeito modificador sobre o paciente, e que distingue o tratamento psicanalítico de toda influência por sugestão. Teoricamente pode-se compará-la com a “ab-reação” dos montantes de afeto retidos pela repressão, [ab-reação] sem a qual o tratamento hipnótico permanecia ineficaz.

Dito isto, agora é com você.


[1] Pintura do artista brasileiro Pedro Américo, inspirada numa frase suspostamente dita por Pedro 1º.

[2] Música lançada em 1993, no álbum Chaos A.D

[3] A banda foi formada em 1984 em Belo Horizonte, Brasil, por Max Cavalera (vocal e guitarra), Igor Cavalera (bateria), Paulo Jr. (baixo) e Jairo Guedz (guitarra). A formação atual inclui Derrick Green (vocais), Andreas Kisser (guitarra), Paulo Jr. (baixo) e Greyson Nekrutman.

[4] Álbum lançado em 19 de outubro de 1993.

[5] Tradução livre: Eu interior. 2ª faixa do Álbum Beneath the Remains, lançado em 1987.  

[6] Mary Shepherd é uma senhora idosa, que mora dentro de uma van. Devido aos seus hábitos, os moradores não gostam quando ela decide estacionar o carro próximo à sua casa. O único que a tolera é o escritor Alan Bennett. Após algum tempo, os moradores conseguem proibir que qualquer carro fique estacionado no bairro, mas a sra. Shepherd encontra uma saída.

[7] Conhecido é Sir Alan Bennett, um dramaturgo, roteirista e ator britânico. Ele nasceu em 1934,

[8] Margaret Natalie “Maggie” Smith, atriz britânica, nascida em Ilford, 28 de dezembro de 1934.

[9] Nathalia Timberg, atriz brasileira, nascida no Rio de Janeiro, em 05 de agosto de 1929.

[10] Obras completas, Freud, Sigmund. Vol. 12, trabalho original publicado em 1914. 

FONTE: https://tempoanalise.com.br/fim/