É LIVRE O PODEROSO? (Ou, Boécio e as Virtudes – I)
Mas tu me dirias: “As honrarias e os altos cargos proporcionam àqueles que os exercem honra e dignidade.” O quê? Acaso as magistraturas possuem a propriedade de dotar de virtude as pessoas que as exercem e livrá-las dos seus defeitos? Ocorre o contrário! Longe de fazer desaparecer a corrupção, elas a põem à mostra; é o que explica nossa indignação ao vê-las cair nas mãos dos criminosos: eis por que Catulo, sem levar em conta a cadeira curul onde se assentava Nório, deu-lhe o apelido de “estruma” (chaga horrenda). Queres ver como os cargos honoríficos exercidos pelos celerados cobrem-se de desonra? Sua ignomínia seria menos percebida se suas funções honoríficas não os distinguissem dos outros. E, quanto a ti mesmo, não é verdade que todo tipo de perigo ao qual estavas exposto fazia-te reconhecer que partilhavas o consulado juntamente com Decorato, que sabias ser um tolo e bufão metido a delator? É com efeito impossível adivinharmos por que as funções honoríficas dignas de respeito são ocupadas precisamente por pessoas que estimamos indignas. Mas, se tu visses um homem sábio, poderias por acaso considerá-lo indigno de respeito ou da sabedoria que ele possui? Claro que não! Na verdade, o mérito possui efetivamente uma dignidade que lhe é própria e que se comunica imediatamente às pessoas de bem. Mas, como as honras prestadas pelo povo não podem ter o mesmo efeito, fica claro que as honrarias não contêm em si mesmas nenhuma dignidade e beleza. Ainda quanto a esse assunto, é preciso acrescentar que, se a baixa condição de um homem não é medida pelas pessoas que o desprezam, as honras, além de não tornarem respeitosas aquelas pessoas a quem são conferidas quando estas se expõem à multidão, tornam ainda mais grave a situação dos desprezados. Mas isso também tem suas consequências, pois as pessoas más também empanam as honras com sua infâmia. E, para que reconheças que essas honras, que não tem valor em si mesmas, não proporcionam o verdadeiro respeito, faço-te a seguinte pergunta: se um homem que já exerceu por várias vezes a função de cônsul encontra-se de passagem entre os povos bárbaros, essas distinções honoríficas torná-lo-ão mais respeitável aos olhos daqueles povos? Ora, se as honrarias possuíssem algum poder por si mesmas, elas sempre se distinguiriam onde quer que fosse, tal como o fogo que aquece da mesma maneira por toda a Terra; mas uma vez que essas distinções não possuem tal propriedade, ao contrário da falsa opinião dos homens, mostram-se insignificantes assim que se apresentam a pessoas que não as consideram honrarias. Mas isso acontece nos próprios lugares onde foram criadas. A pretura, magistratura que outrora conferia grande poder, é hoje em dia um título sem valor e um grande fardo para o Senado. Quem cuidava do abastecimento da cidade era tido outrora por um personagem de grande importância; hoje, nada é considerado mais aviltante que a pretura. O motivo é que, como já dissemos pouco acima, aquilo que não tem em si próprio nenhum mérito é avaliado pelas opiniões da multidão, que o exaltam ou o rebaixam. Se, de um lado, as honrarias não proporcionam a consideração e, de outro, poluem-se ao contato com pessoas desonestas, se com o tempo elas vão perdendo seu antigo resplendor assim como o seu valor junto à estima do povo, como acreditar que possuem algo de bom em si mesmas para que mereçam ser desejadas e, ainda por cima, transmitidas aos outros homens?
As virtudes, tão bondosa e sabiamente preconizadas por Aristóteles, caem cada vez mais em desuso; nossas sociedades atuais abandonam qualquer vislumbre virtuoso de conduta pessoal, tendendo sempre ou para excessos ou para insuficiências. Veja-se, por exemplo, o que se vai passando, mundo afora, com a virtude da Justiça. Cada qual assevera-se o direito de julgar e não ser julgado, lastreado que está em sua matriz consolidada de egoísmo e narcisismo, até mesmo os que, em função de seu cargo, deveriam, pelo contrário, ser exemplos seguros e intocáveis de equilíbrio, sabedoria e neutralidade e, ao que tudo indica, jamais leram o “Ética a Nicômaco”. Ah, e, por oportuno, nem leram também o “Reflexões sobre a Vaidade dos Homens” (1752!), do grande filósofo brasileiro Matias Aires (Editora Escala, 2008).
Ora, o longo texto em itálico no primeiro parágrafo, é uma citação do item III. 7, página 48 (Editora WMF Martins Fontes, 2023, 3ª. ed.), na voz da bela Filosofia, da imorredoura obra de Boécio, “A consolação da Filosofia”, escrita no longínquo ano de 523, porém, ao que se constata, talvez mais atual agora do que em seu próprio tempo! Ou não?! A mencionada obra é composta por cinco livros (como capítulos): Livro I: A Filosofia; Livro II: A Fortuna; Livro III: A Felicidade; Livro IV: O Livre Arbítrio e O Mal; Livro V: A Providência Divina. E escrita durante seu terrível e definitivo cativeiro, sob cruéis torturas e às portas de sua execução. (Ver Prefácio de Marc Fumaroli na supracitada publicação).
No terceiro livro, “A Felicidade”, a Eudaimonia em Aristóteles, queda cabalmente demonstrado que ela não advém dos prazeres, da riqueza, do poder, da celebridade, de cargos e honrarias, de atributos físicos etc., ou seja, de nada que opera no terreno da mundanidade, posto que tudo daí é passageiro, nem advém daquilo que para ser, demanda ações de terceiros, mas tão somente daquilo que for superior no espírito e cultivado pela alta filosofia (e pela religiosidade, ouso eu). Ou seja, segundo a própria forte senhora Filosofia, o que é da Fortuna e ela nos empresta, num dado dia ela tomará de volta, e assim sempre girará sua roda…
Nosso psiquismo se forma, e resulta, a parir dos inúmeros fatores que o influenciam (do meio interno e do meio externo a nós), num processo demorado, contínuo e complexo. As adversidades são muitas, bem como as marchas e contramarchas, os medos, traumas, recalques etc., ao lado de acertos, por óbvio, e desse caldo amalgamado sobrevirá uma personalidade razoável para a convivência/conveniência adulta ou um perfil patológico. Este, atualmente, tem-se disseminado de forma como que epidêmica, como, por exemplo, os neuróticos atuantes, que têm sido socialmente aceitáveis, e com um pé na psicose (vivem numa realidade própria, cultural, política, econômica etc.) e o outro pé na perversão: manipulam e anulam, com todo ímpeto, a alteridade, de acordo com o que lhes convém). Se não possuímos o equilíbrio interior e um sólido sistema de crenças e valores, os agrados da Fortuna só farão descortinar as monstruosidades que aguardavam sua oportunidade. Como seria bom se eles soubessem ler!…
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