Chiara Lubich, o projeto Geração de Futuro e os jovens nem-nem
Parágrafo I
Esta triste designação nem-nem que incluí no título acima tem sido aplicada a jovens brasileiros que nem estudam nem trabalham. De fato, trata-se de uma ocorrência registrada em âmbito mundial, em dezenas de países, que é causada por uma variedade de fatores. Mesmo a OIT – Organização Internacional do Trabalho já alertou para a questão (https://www.ilo.org/brasilia/temas/emprego/lang–pt/index.htm). No recente 6 de novembro, o IBGE nos informou que, em 2018, 23% de nossos jovens de 15 a 29 anos (o equivalente a 10,9 milhões de seres humanos) nem estudavam nem trabalhavam: a terra brasilis não os via nem amparava! Considerando-se que, segundo o próprio IBGE, nossa população atual está em 210.707.798 habitantes (em 11/11/2019, 17 horas, no site https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html), a triste categoria nem-nem alcança o desagradável marco de 5%! Este, foi o maior índice da série histórica.
Os dados são da pesquisa Síntese de Indicadores Sociais (SIS) 2019, do IBGE, que analisa as condições de vida da população brasileira (ver Akemi Nitahara em EBC-Agência Brasil). E a informação prossegue: “dos jovens que concluíram o ensino médio, há mais nem-nem entre quem fez ensino regular do que entre os que concluíram o ensino técnico”, como era de se esperar. A análise machuca ainda mais quando os dados estatísticos são abertos. Destarte, no segmento mulheres – as jovens – “há um percentual elevado de mulheres, mulheres com filhos e também mulheres que realizam afazeres e cuidados domésticos que impedem que elas possam ir para o mercado de trabalho”: entre os homens de 25 a 29 anos na condição nem-nem, 51,5% estavam desocupados e procuravam trabalho; entre as mulheres na mesma idade a maior proporção está fora da força de trabalho, com 67,7% delas sem procurar trabalho.
Parágrafo II
Na página web da Avvenire, no também recente 9/11/2019, Riccardo Maccioni escreve: “Chiara Lubich em direção à beatificação” e a matéria assim começa: “É um primeiro passo. Mas importante. Decisivo. Daqueles que marcam o ritmo nas montanhas, para que, depois, a escalada pareça mais fácil. Em 10 de novembro, às 16h30, na Catedral de São Pedro, em Frascati, o bispo Monsenhor Raffaello Martinelli conclui a fase diocesana da causa de beatificação e canonização de Chiara Lubich. Isso significa que, após quase cinco anos de coleta de documentos e testemunhos, o processo “processual” continuará no Vaticano. A Congregação para as Causas dos Santos investigará o heroísmo das virtudes da fundadora do Movimento dos Focolares.” Mas quem é Chiara Lubich e de que se trata este Movimento? Chiara Lubich, nascida Silvia Lubich (Trento, 22/1/1920 – Rocca di Papa, 14/3/2008) foi a fundadora do Movimento dos Focolares, o qual se propõe à construção de um mundo unido, em “que todos sejam Um”. No início da década de 1940, com pouco mais de vinte anos, trabalhava como professora em escolas primárias da cidade natal e ingressou no curso de filosofia da Universidade de Veneza. Procurava a verdade profunda das coisas, exatamente no período da Segunda Guerra Mundial, época plena de ódio e violência. Enquanto desmoronavam casas, seres humanos e todas as coisas, descobre que Deus era para ela o único ideal que não passava. Compartilhou a descoberta com outras moças e, juntas, formaram um pequeno grupo, constituindo assim o primeiro núcleo do futuro Movimento. Em 1943, como animadora da Terceira Ordem Franciscana, é atraída pela escolha radical de Deus feita por Clara de Assis, e decide tomar o seu nome. No mesmo ano, a 7 de dezembro, decide dedicar-se para sempre a Deus com o voto de castidade e este dia será considerado como a data de nascimento do Movimento dos Focolares. Sua casa foi destruída por um violento bombardeio que atingiu Trento no dia 13 de maio de 1944. Os familiares refugiaram-se nas montanhas. Foi quando Chiara decidiu permanecer em Trento para sustentar os ideais e a vocação. Em 1964, fundou a “cidadezinha” de Loppiano nas colinas de Valdarno, próxima a Florença. A primeira de uma série de outras cidades em vários países do mundo que trabalham em prol de um Mundo Unido, onde se procura viver a espiritualidade da unidade todas as horas do dia em todos os aspectos da vida. Em 1966, propôs aos jovens a radicalidade do Evangelho dando vida ao Movimento Gen (Geração Nova). Em 1977, recebe, em Londres, o prêmio Templeton para o desenvolvimento das religiões. Em 1996 recebe o prêmio de Educação para a Paz daquele ano. Em 1991, aqui no Brasil, choca-se com o contraste social e pela miséria das favelas, e na então Mariápolis Araceli, hoje Mariápolis Gineta Calliari, arredores de São Paulo, dá início à proposta de uma Economia de Comunhão, na época um projeto e hoje uma realidade mundial em crescente desenvolvimento dessa nova teoria e práxis econômica (ver página da Anpecom – Associação Nacional por uma Economia da Comunhão ). Em 1997 e 1998 dedica-se a abrir novas perspectivas de diálogo inter-religioso. Em setembro de 1998, em Estrasburgo, recebe do Conselho Europeu o Prêmio Direitos Humanos. Sua obra de amor e fé materializa-se e pereniza-se no Movimento dos Focolares, de direito Pontifício, aprovado pelos Papas João XXIII, Paulo VI, João Paulo II, e Bento XVI e que se estende pelo mundo em mais de cento e trinta nações. Para conhecer mais e melhor essa grande e prática líder espiritual ver “Quem é Chiara Lubich” em http://www.focolares.org.br/chiaralubich/quem-e-chiara-lubich/. Há também livros que abordam sua vida, como o de Jim Gallagher – Chiara Lubich – Servant of unity, publicado pela CTS – Catholic Truth Society, Londres (http://www.ctsbooks.org/chiara-lubich/), em 2015, e o de Armando Torno, Chiara Lubich – A biography, publicado pela New City Press, Nova Iorque (https://www.newcitypress.com/chiara-lubich.html), em 2013. Um pouco de sua obra escrita pode ser apreendido nos livros “Jesus Abandonado”, “A vontade de Deus”, “O amor ao irmão”, “O amor mútuo”, “Jesus Eucaristia”, “A unidade”, todos, dentre outros documentos, lançados pela Editora Cidade Nova (https://www.cidadenova.org.br/).
Parágrafos de Síntese
Também em 2019 (como nos dois fatos acima mencionados), a SMF – Sociedade Movimento dos Focolari (https://smf.org.br/) deu a largada em seu projeto “Geração de Futuro”, no escopo maior do Programa de Valorização da Vida, atingindo a região dos municípios de Vargem Grande Paulista e São Roque (ver informes em https://tempoanalise.com.br/geracao-de-futuro-esta-chamando-a-atencao/; https://tempoanalise.com.br/projeto-geracao-de-futuro/; https://tempoanalise.com.br/geracao-de-futuro-valorizando-a-vida/; https://tempoanalise.com.br/professora-maria-jose-siqueira-coordena-capacitacao-para-facilitadores-do-projeto-geracao-de-futuro/).
O projeto, em sua primeira turma (Turma Dom Emílio Majer), oferece um curso complementar de aprofundamento do autoconhecimento, da autoestima, de valores éticos, morais, sociais e de aprimoramento de noções e aplicações das TIC – Tecnologias da Informação e Comunicação a um público especial: jovens que já se encontram na incômoda posição nem-nem ou podem vir a nela estar com brevidade. O intento é o de fortalecer suas capacidades e habilidades para a inserção no competitivo mercado de trabalho ou, até mesmo, inspirá-los a estabelecer algum negócio próprio e, ainda, aumentar suas probabilidades de conquista de um lugar em cursos universitários, e, quem sabe, inspirá-los a trabalhar por um mundo de Paz, um Mundo Unido…
A síntese a que me referi no título deste tópico vem do fato de que se pode ver nessa categoria de jovens nem-nem, que nossa sociedade em seu malogro produz, a mesma estampa do “Jesus abandonado” de que nos fala Chiara:
“Jesus abandonado é proposto por João Paulo II a toda a Igreja, mas não é só ele que faz isso. Santos antigos e alguns teólogos modernos já o apresentaram ao povo cristão. E também o nosso Movimento, para o qual Jesus abandonado é um elemento central.
É exatamente por isso que hoje gostaríamos de propor, a todos nós, Jesus que grita forte: ‘Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?’ (Mc 15,34).
É a sua paixão interior, é a sua noite mais tenebrosa, é o vértice dos seus sofrimentos. É o drama de um Deus que grita: ‘Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?’
Mistério infinito, dor abissal, que Jesus experimentou como homem e que revela a medida do seu amor pelos homens, pois Ele quis tomar sobre si a separação que os mantinha afastados do Pai e entre si, adulando-a. […]
Não é semelhante a Ele o angustiado, o só, o árido, o decepcionado, o frustrado, o fraco…? Não o espelha cada divisão dolorosa entre irmãos, entre Igrejas, entre porções de humanidade com ideologias contrastantes? Não é imagem de Jesus que, por assim dizer, perde a noção de Deus, ao fazer-se ‘pecado’ por nós – como diz São Paulo (cf. 2 Cor 5,21) -, o mundo ateísta, laicista, decaído bem todo tipo de aberração?” (Grifo meu.) (LUBICH, Chiara. Jesus abandonado. Organização de Hubertus Blaumeiser. Trad. Eustáquio Rosa. Vargem Grande Paulista/SP: Ed. Cidade Nova, 2016. P 183-184.
Sim, um nem-nem, tal jovem, é quem sob essa circunstância e momento se vê abandonado pela estrutura social e, quiçá, familiar (aquela de fato e com certeza; e essa, como temos visto, frequentemente). É alguém a quem se subtrai o porvir, uma perspectiva de crescimento e de inserção na vida própria e no futuro. Crime maior talvez não exista. E tenho questionado a mim, a psicanalistas, a educadores, qual a provável natureza e extensão do dano psíquico que essa realidade pode (e provavelmente o faz) produzir em tais jovens. (Ademais, particularmente não posso deixar também de ver antecipadamente um traço nefasto do Homo sacer, conforme o filosofo italiano Giorgio Agamben, nesses nem-nem brasileiros na medida em que o conceito representa a vida indigna de ser vivida, o limiar – limbo – depois do que a vida deixa de ser politicamente relevante para o Estado e então pode ser eliminada. Reflete Agambem que “existem vidas humanas que perdem a tal ponto a qualidade de bem jurídico, que a sua continuidade, tanto para o portador da vida como para a sociedade, perdeu permanentemente todo o valor”, e acrescenta que toda a sociedade fixa este limite, toda a sociedade – mesmo as mais modernas – decide quais sejam seus “homo sacer”. É possível, aliás, que este limite, do qual depende a politização e a exceção da vida natural da ordem jurídico-estatal tenha se alargado na história do Ocidente e passe hoje – no novo horizonte biopolítico dos estados de soberania nacional – necessariamente ao interior de toda a vida humana e de todo o cidadão. Ver AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. [Trad. Henrique Burigo.] Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.)
Ora, o propósito do Geração de Futuro, cumprindo um imperativo focolarino, lubichiano, é atuar tanto na atenção individual a cada jovem participante do projeto (seja alguém já excluído na invisibilidade nem-nem ou alguém em risco real de que isso se dê), reconhecendo nele o rosto, a face do outro, a face ferida da alteridade pela condição a ela imposta de abandono, restituindo-lhe a chance e a dignidade segundo mesmo uma ética que transita desde uma filosofia levinasiana até um ideal altamente cristão de amor ao próximo, quanto atuar simultaneamente no coletivo, seja por meio de um alerta crítico à sociedade, seja pelo desenvolvimento de uma tecnologia completa que poderá ser replicada para grupos cada vez maiores e em distintas localidades/configurações do país.
Enfim, sempre vale o registro do quanto uma ação ética e moralmente perfeita, concebida sob o preceito da verdade do/no amor, com a força de uma filosofia clara e corajosa, pode se estender e se magnificar no tempo, abrangendo mais e mais pessoas e locais, numa progressão como que geométrica a partir de seu epicentro, e, por meio do ensinamento e da profunda sinergia comunal com os posteriores, realizar obras de grande relevância e transformadoras para pessoas que sofreram o abandono e sociedades que ainda padecem do desvio de percepção. A jovem Chiara, sob o impacto da destruição da guerra, construiu uma visão esperançosa e firme de futuro, que por meio do trabalho corajoso e incansável, alcançou o mundo e vem atravessando o tempo, para, quanto a nós aqui, entremear-se, por exemplo, com as estatísticas negativas do IBGE para os nem-nem e suscitar um projeto capaz de questionar essa malfadada história e esforçar-se por modificar esse destino. E peço emprestadas a Chiara suas palavras: “Nada do que é feito por amor é pequeno…”
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