O Livre Arbítrio em Boécio (Ou, Boécio e as Virtudes  – II)

Às vezes é bem difícil mesmo. E sabem o porquê? Porque cada vez mais somos menos treinados para isso. Mas eu pediria calma ao simpático serzinho do desenho acima, ou pelo menos suficiente paciência para conhecer o poderoso argumento de Boécio que veremos a seguir.

“O livre arbítrio existe e nenhum ser dotado de razão poderia existir se não possuísse a liberdade e a faculdade de julgar.” (Boécio, A consolação da filosofia) e, ademais, tomando-se a premissa de sua existência, então ele, o livre arbítrio, “é um bem em si mesmo” (Santo Agostinho, O livre arbítrio. São Paulo, Ed. Paulus, 1997, 304 p.; Col. Patrística – Vol. 8. Disponível em: https://loja.paulus.com.br/patristica-o-livrearbitrio-vol-8/p – Título do Capítulo 18 O livre-arbítrio é um bem em si mesmo). Temos aqui duas referências suficientemente vigorosas para assegurar um bom começo…

Acrescente-se ainda, por excesso de zelo, a citação de Etienne Gilson, destacado filósofo francês, historiador da filosofia e um dos mais respeitados especialistas na neoescolástica, que assim condensou as reflexões de Santo Agostinho a respeito de liberdade, vontade e graça:  “Duas condições são exigidas para fazer o bem: um dom de Deus que é a graça e o livre-arbítrio. Sem o livre-arbítrio não haveria problemas; sem a graça, o livre-arbítrio (após o pecado original) não quereria o bem ou, se o quisesse, não conseguiria realizá-lo. A graça, portanto, não tem o efeito de suprimir a vontade, mas sim de torná-la boa, pois ela se transformara em má. Esse poder de usar bem o livre-arbítrio é precisamente a liberdade. A possibilidade de fazer o mal é inseparável do livre-arbítrio, mas o poder de não fazê-lo é a marca da liberdade. E o fato de alguém se encontrar confirmado na graça, a ponto de não poder mais fazer o mal, é o grau supremo da liberdade. Assim, o homem que estiver mais completamente dominado pela graça de Cristo será também o mais livre: ‘libertas vera (p.18) est Christo servire’ ” (cf. Gilson, “Introduction à l’étude de Saint Augustin”, pp. 202ss, In: Sto. Agostinho, O livre arbítrio. S. Paulo, Paulus, 1997, 304 p., Introdução – 9. A vontade, a liberdade e a graça).

Segundo o dicionário eletrônico Caldas Aulete, livre arbítrio é: capacidade e poder de decidir livremente, sem coação (https://www.aulete.com.br/arb%C3%ADtrio).

Alguns diriam “trata-se da liberdade de cada qual” e não se pode negar que a aproximação é muita.

Se tomarmos como referência – o que, por sinal. deve ser feito – aquele pensamento de Boécio escrito no início, logo fica evidenciado que o amplo debate a respeito dessas duas dimensões máximas, o determinismo e o livre arbítrio, é, em última análise, uma bobagem. Ou seja, o determinismo absoluto não pode determinar Deus, que, por ser Deus, independe de tudo. Da mesma maneira não cabe a discussão de se Deus é livre ou não, porque ele está acima disso! De certo modo, o desdobramento dessa lógica acaba por se aplicar também ao ser humano, na medida em que: se eu for determinado em apenas uma das minhas possibilidades de vida, eu o serei em todas, ao menos isso poderá se dar, e, portanto, resulta claro que se tal acontecer é o mesmo que não ter a própria vida. Por outro lado, eu também não posso gozar, como humano, de liberdade absoluta, porque isso implicaria em interferir na condição de vida de todos os demais: a minha liberdade absoluta seria uma forma de determinação para a vida dos outros e não poderia haver, simultaneamente, duas pessoas gozando de liberdade absoluta no mesmo tempo e no mesmo espaço, porque uma delas precisaria se sobrepor à outra, logo, só restaria uma única pessoa. Ao invés de determinações, talvez fosse mais adequado ou conveniente pensarmos em condicionantes ou condições: a condição para eu ser livre é que as minhas escolhas feitas de maneira completamente liberta não impliquem em prejuízos ou anulações das opções de vida de outrem.

Retomando a análise boeciana:

“Agora concordo e vejo que tudo se passa como dizes”, disse eu. “Mas, nesse encadeamento de causas solidárias umas às outras, resta-nos ainda um pouco de livre arbítrio ou o encadeamento do destino abrange também os movimentos da alma humana?” “Sim”, respondeu ela, “o livre-arbítrio existe, e nenhum ser dotado de razão poderia existir se não possuísse a liberdade e a faculdade de julgar. Com efeito, todo ser naturalmente capaz de usar a razão possui a faculdade do juízo, que lhe permite distinguir cada coisa. Portanto, é ele que julga o que deve ser evitado e o que deve ser procurado. E, assim, procura-se tudo aquilo que se julga ser desejável, enquanto se faz de tudo para evitar o que se julga deva ser evitado. E é dessa forma que os seres providos de razão são igualmente providos da faculdade de dizer sim ou não. Mas atenta para o fato de que nem todos os seres a possuem na mesma proporção. De fato, as substâncias celestes e divinas possuem um juízo profundo, uma vontade sem mácula e a capacidade de realizar seus desejos. Quanto às almas humanas, são necessariamente mais livres quando se mantêm na contemplação da inteligência divina, e menos livres quando descem para juntar-se às coisas corporais, e menos livres ainda quando se ligam à carne. E elas alcançam o fundo da servidão quando, levadas pelos vícios, deixam de ter a posse de sua própria razão. Pois quando seus olhos deixam de ver a luz da verdade suprema para baixarem sobre o mundo inferior e as trevas, sua visão logo se distorce sob o véu da ignorância, e essas almas são perturbadas por uma servidão da qual elas mesmas são responsáveis, sendo, de uma certa forma, prisioneiras de sua própria liberdade. E no entanto a compreensão da Providência, que prevê todas as coisas desde a eternidade, vê tais coisas e dispõe tudo o que está predestinado a cada uma, segundo seu mérito. (Grifos meus.) (Boécio. A consolação da Filosofia. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2023, 3ª. ed. V. 3).

E neste ponto vem a genialidade de Boécio, quando explica, via Filosofia:

(…) Procuremos portanto ver o que é a eternidade, pois é ela que nos esclarece sobre a natureza divina bem como sobre sua sabedoria. Pois bem, a eternidade é a posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada, tal como podemos concebê-la conforme ao que é temporal. Com efeito, todo ser que vive o presente no tempo vem do passado e caminha para o futuro, e não há nada relacionado ao tempo que possa abarcar toda a extensão de uma vida ao mesmo tempo. Esses seres não podem apreender novamente no dia seguinte o que já foi perdido no anterior, e numa vida vivida dia a dia só se pode viver o momento presente, transitório e fugaz. Portanto, aquele que está sujeito à lei do tempo, mesmo se, como pensava Aristóteles, sempre começa e jamais cessa de ser e cuja vida se desenrola segundo o ritmo de um tempo ilimitado, não pode no entanto ser concebido como um ser eterno. Pois, mesmo que a extensão de sua vida seja ilimitada, não pode apreender e abarcar totalmente e de uma só vez sua vida, já que não possui mais o passado e ainda não desfrutou o futuro. Por conseguinte, aquele que apreende e possui de uma só vez a totalidade da plenitude de uma vida sem limites, à qual não falta nada do futuro nem nada escapa do passado, esse sim pode ser considerado com razão como um ser eterno, e é necessário que ele esteja sempre presente e em plena posse de si mesmo, já que para ele o presente abarca todo o tempo ilimitado.(Boécio, A consolação… V.11)

Ora, a clareza de Boécio ilumina o caminho para nosso pensar, e tal luz tem-se mantido por séculos, em que pese os muitos ataques daqui e dali. Na apreensão de Deus, o tempo não é linear, sequencial, susceptível a causas e efeitos nessa linearidade. Deus, como ser eterno, o apreende de uma só vez, em todas as suas etapas e fases e momentos e épocas etc. Com tal maneira, eterna, de apreendê-lo, Ele, Deus, onisciente que é, passa a saber o que nos acontecerá, mas não determina os acontecimentos implicados, já que esses serão exclusivamente produtos de nosso livre arbítrio. O fato de Ele ter ciência prévia do que se passará no depois de cada um de nós, não quer dizer que foi Ele quem determinou tal depois. Simplesmente não há esse determinismo… (Aliás, que ele exista é bem uma imensa comodidade para muitos ou tantos quanto preferem “terceirizar” suas responsabilidades: “não fui eu que quis/fiz, foi o destino (ou a doença) e sua inexorável determinação”. Que conveniente!)

Por devido, cabe aqui salientar que o livre arbítrio de que falamos é aquele que se aplica à liberdade de escolha de questões ou demandas ou inquietações de uma ordem metafísica. Aqui não estamos a falar das necessidades doa dia a dia, das escolhas necessárias naquilo que é da ordem mundana. Nestas, o entorno, o ambiente e suas configurações, por certo podem exercer um papel influenciador, como já longamente debatido por Burrhus F. Skinner e outros no behaviorismo.

Também devemos destacar todo o enorme aporte feito pela Psicanálise e sua vasta literatura, que nos demonstram de há muito e cada vez mais, a influência marcante do Inconsciente sobre nossas escolhas e atitudes: Freud, em sua Conferência XVIII – Fixação em traumas — O Inconsciente, diz a certa altura, já no último parágrafo do texto:

(…) Mas a megalomania humana terá sofrido seu terceiro golpe, o mais violento, a partir da pesquisa psicológica da época atual, que procura provar o ego que ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente. Os psicanalistas não foram os primeiros e nem os únicos que fizeram essa invocação à introspecção; todavia, parece ser nosso destino conferir-lhe expressão mais vigorosa e apoiá-la com material empírico que é encontrado em todas as pessoas. (Grifo meu.) (Sigmund Freud. Conferência XVIII – Fixação em traumas — O Inconsciente. In: Freud. Conferências introdutórias sobre psicanálise (Parte III). Obras completas de Freud, Volume XVI (1916-1917), p. 292. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1996).

Eita!, na perfeita expressão nossa. O homem não é senhor em sua própria casa. Isto é, quando escolhemos, nossa escolha é completamente consciente e racional, ou é manobra do Inconsciente com seu material recalcado, mas que insiste sempre em vazar? Quanto a isso, por ora vamos fazer como no basquete ou no futebol de salão: pedido de tempo. Noutro momento retomaremos.