“NÃO É JUSTO, MEU AVÔ!”

fausto antonio de azevedo
Para M. H.

DICE – DEUSA GREGA DA JUSTIÇA

Felizes os que têm fome e sede da justiça,

porque serão saciados.

Mateus 5:6

Teria por volta de quatro anos. O neto caçula. Numa tardinha, à hora da refeição em família, ele, sentado à cabeceira da mesa, aguardava que a diligente mamãe lhe preparasse o lanche. Nisso entretido e conversando com ela, nem percebeu que o avô subtraiu para si o aguardado sanduíche, assim que a mãe o colocou sobre a mesa. Ao se virar, ele olhou espantado para mim, tal avô, e, constatando que eu comia com apetite o que se destinara a ele, não reagiu da maneira mais frequentemente vista com as crianças, seja clamando a ajuda da mãe, seja chorando, seja com qualquer outro tipo de birra ou pirraça; pelo contrário, fitou-me fundo por alguns instantes e soltou a frase acachapante: “Não é justo, meu avô!

Pois bem, e o que é justiça então?

O Dicionário Caldas Aulete eletrônico, registra alguns de seus significados para o substantivo feminino justiça. O primeiro: “1.  Situação em que cada um recebe o que lhe cabe, como resultado de seus atos ou de acordo com os princípios e a lei da sociedade em que vive [Antôn.: injustiça.]” e, o segundo: “2.  Capacidade ou virtude de ser imparcial ao julgar e de ser conforme à lei e à ética; ISENÇÃO [Antôn.: injustiça.]” (https://www.aulete.com.br/justi%C3%A7a).

Pelos dois sentidos iniciais presentes no dicionário referido, mais aquela citação do apóstolo Mateus (5.6), epígrafe a este texto, fica muito contundente que, em nossos tempos presentes, a justiça verdadeira não tem sido praticada nem mesmos pelos titulares da Justiça.

Etimologicamente, justiça vem do latim iustitia (com “i”, já que no latim não existe a letra jota “j” e com “t” em vez de “c”). Ela é composta pela palavra iustus, da qual derivam justo, injusto etc. Iustus, por sua vez, forma-se por ius (direito, justiça), associada à raiz indo-europeia yewes (lei). Acrescenta-se do sufixo tus, indicativo do que recebeu a ação (como em adultos, sensatos) e do sufixo ia, que forma adjetivos abstratos femininos (como alegria, vitória e outros) (https://etimologias.dechile.net/?justicia). Como se vê, sua formação é tão complexa quanto seus significados e sua prática, daí, talvez, a sempre apontada dificuldade dos magistrados no seu exercício.

A mitologia grega nos oferece, de seu vasto panteão de deuses e deusas, a deusa Dice (Dike ou Astreia), como a personificação da justiça (correspondente à deusa Iustitia da mitologia romana, restauradora das violações das leis). Dice e suas irmãs, Eunomia e Irene, eram as três Horas, filhas de Zeus e Têmis. Dice se incumbia da vigilância das atitudes humanas e, se necessário, apresentava queixas a Zeus, quando, por exemplo, um juiz violava a própria justiça. Sabiamente, a deusa buscava, por um lado, corrigir e punir a injustiça cometida e, por outro lado, tratava de recompensar a virtude. Dice, que tinha uma filha, Hesíquia, representante da tranquilidade da consciência, é apresentada descalça e com os olhos abertos e atentos à verdade, enquanto a Iustitia romana o é de olhos vendados, empunhando uma espada e uma balança. Consoante o que se lê no site do Supremo Tribunal Federal (STF), “os gregos colocavam a balança com os dois pratos na mão esquerda da deusa Diké, mas sem o fiel no meio, e em sua mão direita estava uma espada e estando de pé com os olhos bem abertos declarava existir o justo quando os pratos estavam em equilíbrio.” E mais “Segundo IHERING, 2004 ‘o direito não é mero pensamento, mas sim força viva. Por isso, a Justiça segura, numa das mãos, a balança, com a qual pesa o direito, e na outra a espada, com a qual o defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a fraqueza do direito. Ambas se completam e o verdadeiro estado de direito só existe onde a força, com a qual a Justiça empunha a espada, usa a mesma destreza com que maneja a balança”.

https://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=dike#:~:text=Divindade%20grega%20que%20representa%20a,Dice%2C%20ou%20ainda%2C%20Astreia).

E o que nos diz a filosofia? No Dicionário de Filosofia, de Abbagnano, pode-se ler:

JUSTIÇA (gr. SiKatoaúvn; lat. Justitia; in. Justice, fr. Justice, ai. Gerechtigkeít; it. Giustizia). Em geral, a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem. Podem-se distinguir dois significados principais: 1- como conformidade da conduta a uma norma; 2como eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas), entendendo-se por eficiência de uma norma certa capacidade de possibilitar as relações entre os homens. No primeiro significado, esse conceito é empregado para julgar o comportamento humano ou a pessoa humana (esta última, com base em seu comportamento). No segundo significado, é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento. A problemática histórica dos dois conceitos, ainda que freqüentemente interligada e confundida, é completamente diferente.”

(Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, Editora Martins Fontes, 2007, p. 593-6.)

E a partir desses dois conceitos se estenderá uma longa discussão mediada por muitos pensadores e filósofos.

No largo domínio do pensamento religioso cristão a respeito, destaco – e vale lembrar – que Deus tem a justiça como um atributo próprio de Si, inerente, inseparável e inextricável. E, por isto, Ele é perfeita, total e integralmente justo, desprovido de qualquer injustiça. Ele, e só Ele, é a referência e o padrão daquilo que é justo, correto e reto, e, assim, deriva que justiça só pode ser tudo aquilo que se encontra de acordo com o que é justo, é correto e reto. E saliento mais o que segue.

Armindo dos Santos Vaz, em seu artigo O específico da justiça na Bíblia hebraica, quando comenta: “Recapitulando os elementos da justiça na Bíblia hebraica, encontramos em primeiro lugar uma relação entre pessoas e não simplesmente uma lei. A pessoa será justa ou injusta, não por cumprir rigorosamente os preceitos em causa, mas por se relacionar justa ou injustamente com outra pessoa. A justiça bíblica é então a relação que promove e realiza o sentido radical da vida humana.” E mais:

“Toda a experiência de fé do Israel bíblico fazia finca-pé na profundíssima captação da identidade entre Deus e a justiça. Há em toda a Bíblia hebraica poucos conceitos tão vinculados a Deus como o de justiça. Para o israelita crente, Deus não existe sem a justiça. Precisamente por isso, a pessoa que ama Deus não pode ser tocada pela injustiça (Sab 2). A tal ponto se dá essa identidade entre Deus e justiça que a palavra “justo” desloca a sua significação da pessoa que pratica a justiça nas relações humanas para a pessoa que está em paz com Deus e que, por isso, não pode ser atingida pelo fracasso ou pelas injustiças humanas.

“Porque a realização da justiça sempre acontece no terreno das relações inter-humanas, na Bíblia hebraica aquilo a que chamamos amor é parte integrante da justiça, é a alma da justiça. O amor gera a atmosfera e o ambiente em que pode prosperar a justiça. Dá a visão e a consciência daquilo que é justo e dá força para conceder aos outros o que lhes é devido. Podemos dizer que, sem amor, a justiça não consegue viver. Quem quiser alcançar só a justiça não o conseguirá. Para alcançá-la, é preciso pôr a mira mais longe: é necessário o amor. O amor exige a justiça e a justiça não pode prescindir do amor.

Os políticos do nosso tempo beijam quase diariamente a palavra ‘justiça’. Como se a amassem!… Só a ama quem dá o peito às injustiças que se cevam nas relações sociais. Exigir justiça lutando contra a injustiça, com palavras e atitudes proféticas, libertadoras é estar convencido de que só o amor ao ser humano é construtivo e forte. Nessa luta bíblica também entra a oração dos salmistas. O orante que pede justiça divina não luta contra a própria desgraça mas contra o mal feito a seres humanos. A forma de viver segundo a justiça [şedāqāh] e a bondade [hesed], convida a contribuir para a construção de uma ordem planetária [şedeq], fundada na fidelidade aos valores da justiça.”

(Armindo dos Santos Vaz, O específico da justiça na Bíblia hebraica. Cultura  –  Revista  de  História  e  Teoria  das  Ideias, Vol. 30, 2012– A justiça na Antiguidade. https://journals.openedition.org/cultura/1563.)

(Grifos meus.)

De acordo com Dom Paulo Mendes Peixoto, Arcebispo Metropolitano de Uberaba, assim como encontramos no site da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB:

“O apóstolo Paulo mostra os parâmetros que envolvem o sentido da justiça na bíblia, quando ele diz: ‘Nele se revela a justiça de Deus, que vem pela fé e conduz à fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’ (Rm 1,17)’. Isso significa que a justiça está em sintonia com a vontade de Deus e na realização autêntica dos atos do ser humano na relação com as pessoas e com toda a natureza.

As leis são promulgadas para fazer acontecer, na prática, o cumprimento da justiça entre as pessoas. Os fariseus e doutores da lei quiseram incriminar Jesus dizendo que Ele não observava as leis de seu tempo. Ele era inclusive colocado à prova porque não poderia ser contra as leis. Mas para Jesus a pessoa humana está acima da lei, principalmente quando o seu cumprimento ocasiona injustiça.

As palavras bíblicas mostram claramente que Deus age com justiça e é misericordioso, que perdoa a mulher adúltera (Jo 8,1-11), exige mudança de vida e fará seu julgamento final. Então, estão bem relacionadas, a justiça, a misericórdia e o cumprimento das leis que, para fazer o bem, devem ser justas. Querem justificar determinados erros instrumentalizando a aplicação das leis, fazendo injustiça.

As repetidas práticas de injustiça acabam chegando a um final desconcertante. Como diz o ditado: ‘Mais cedo ou mais tarde a casa cai’. Significa que a injustiça não se justifica e não tem estabilidade. E estamos assistindo as consequências dessa realidade. Podemos citar os acontecimentos drásticos dos últimos tempos, violência, prisão de políticos, derramamento de lama etc.

Para o sentimento bíblico, a ação de injustiça mina a riqueza contida na vida cristã, destrói a conduta de quem a pratica e causa transtornos de identidade pessoal. A consciência do ser humano é um lugar sagrado, onde mora a divindade. E é justamente nela que o indivíduo consegue construir a vida de sintonia e de amor com Deus e realizar o exercício pleno da justiça e da caridade.

Sem nenhum legalismo e nem intimismo, podemos dizer que a verdadeira justiça significa fazer um processo de identificação com Jesus Cristo, ser seguidor de seus ensinamentos, mesmo que para isto haja sofrimentos. (…) (https://www.cnbb.org.br/a-justica-na-biblia/). (Grifos meus.)

Fechando a breve digressão acima, quanto ao binômio religião-justiça, embora não seja aqui o lugar para desenvolver mais a fundo e pertinentemente a indicação que farei, não posso conter o desejo de mencionar e indicar o excelente texto “Paradoxos do Cristianismo”, capítulo VI do livro Ortodoxia, de Gilbert K. Chesterton (Jandira/SP: Editora Principis, 2019, páginas 100-127).

Percorrendo agora um pouco do vasto domínio da Psicanálise, quero ater-me a um aspecto particular do assunto, enfocado por Maíra Gomes e Fernando Aguiar em seu artigo, Sobre sujeito do direito e sujeito da psicanálise. E quero iniciar anotando o próprio resumo do artigo, que já é bastante claro e didático:

“Considera-se que o conceito psicanalítico de inconsciente contribui para que o Direito possa ser mais plenamente uma prática de justiça. Em outros termos, para que o Direito exerça eminentemente a garantia de direitos, e não a imposição de deveres. Coloca-se aqui em diálogo o Direito e a Psicanálise a partir de suas noções de sujeito, demarcando-se onde se aproximam ou se distanciam epistemologicamente esses campos do saber. Nessa direção, as lições da Psicanálise sobre a subjetividade daquele que comete crimes são exemplares, alertando que não é a repressão que possibilita a inscrição da alteridade, e que responsabilização não se obtém pela via da culpabilização. Encontra-se, na Justiça Restaurativa, uma maior perspectiva de diálogo entre Direito e Psicanálise.”

(Maíra Marchi Gomes, Fernando Aguiar, Sobre sujeito do direito e sujeito da psicanálise, Cad. Psicanál. (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 40, n. 39, p.191-212, 2018. https://pepsic.bvsalud.org/pdf/cadpsi/v40n39/v40n39a10.pdf.) (Grifos meus.)

De fato, crimes podem apresentar semelhanças entre si, do ponto de vista forense, operacional, circunstancial etc., mas os psiquismos daqueles que os cometem são, muito possivelmente, carregados de diferenças, porque são singularidades. Se o conveniente diálogo sugerido acima pelos autores puder avançar, seguramente muito se evoluirá na aplicação da justiça. O assim chamado Direito Positivo (sinta-se aí uma pitada do racionalismo do Positivismo), dizem os catedráticos, só pode se assentar na racionalidade, na “objetividade” desta, a qual, como se sabe, reside no córtex pré-frontal (PFC), em termos de anatomia cerebral, e na zona da Consciência, em termos de topologia da mente. Mas, a pergunta que não cala é, e o imenso domínio do inconsciente? Alguém poderá responder, não muito longe de estar certo, que tal inconsciente estará, por óbvio, agindo por dentro das ações do consciente, se assim se pode dizer, mas isso não creio ser o bastante para melhorar a percepção e a sensibilidade dos que analisam a gênese e a anatomia dos crimes. Veja-se os autores retro citados:

“É pertinente começar com uma menção aos princípios que são fonte do Direito Positivo: a dogmática jurídica. Assim, muito mais que nos ater às jurisprudências ou à lei em si, parece-nos fundamental analisar a racionalidade envolta na própria fundação da ciência jurídica moderna. Ou, em outros termos, abordar o enunciado que sustenta as enunciações manifestas em leis e em suas fundamentações.” (Idem a indicação da citação anterior.)

Por uma parte, o argumento da dificuldade do Direito de tipificar tantos sujeitos do direito quanto sejam os sujeitos do inconsciente, em sua miríade de ocorrências, mesmo quando considerado um só indivíduo, parece ter relevância. Mesmo assim, a estratégia reducionista de “encaixar” toda a fluidez e sutilezas de cada inconsciente numa forma única de sujeito a qual facilita ou viabiliza a prática dos tribunais, não se me apresenta como a mais inteligente. Por outro lado, a dinâmica da sociedade, cada vez mais veloz, mais “fast”, e superficial, exige respostas imediatas que só podem ser fornecidas mediante a instalação e operação de uma efetiva linha de montagem…

Citando outro autor, a saber Assis da Costa Oliveira, Maíra Gomes e Fernando Aguiar, lembram com ele que:

“(…) foi a partir da construção de uma entidade abstrata como “sujeito do Direito”, constituída por noções de igualdade e consciência (presente nos discursos tanto da vertente jus naturalista como nos da vertente jus positivista), que a subjetividade foi inserida no discurso jurídico: ‘Construção discursiva que serve a quem institui práticas políticas que necessitam de certa homogeneidade dos indivíduos, a fim de dissolvê-los numa ficção totalitária de igualdade formal que nega as diferenças e alteridades […], escamoteando as prescrições normativas de caráter coercitivo e moral no discurso da igualdade e universalidade dos dispositivos jurídicos assimilados pela ótica da cidadania e soberania política.’ ” (Idem a indicação da citação anterior.)

E mais ainda, de forma arrebatadora, salientando o que não deixa de ser um tipo de usurpação, na medida em que esse sujeito do direito é submetido a uma forma de normatização que chega mesmo a inferir a maneira mais adequada para seu gozo. Já quase chegamos ao comprimido de soma proposto no Admirável mundo novo escrito por Aldous Huxley. Vamos ler:

“De maneira mais “aplicada”, podem ser assim resumidas as enunciações nas quais o enunciado do Direito concebe o sujeito como universal e consciente: O sujeito de que o direito nos fala é o sujeito de direitos e de deveres. Ele tem sua descrição dada pela via da instância do eu, imaginária, consciente, moldado segundo o ordenamento jurídico vigente. É a pessoa que via de regra é capaz, tem pleno gozo de suas faculdades mentais, é consciente, entende o caráter criminoso ou não de seus atos e é capaz de determinar-se de acordo com este entendimento (SILVA, 2002, p. 14).

Esse sujeito é proposto como ‘normatizável’ (e, antes disso, regulável), e também como passível de proteção. Tal proteção se daria pela oferta, em nome do cumprimento de modelos de ações genéricas e idealizadas, de nominações que o representariam, dando conta do seu gozo. Uma clara demonstração de como o Direito apresenta-se como detentor do gozo do sujeito seria a ideia de ‘o que não está nos autos, não está no mundo’, que impõe ao sujeito, como condição de sua existência, a adequação à listagem de significantes-mestres, sendo as leis, as doutrinas e as jurisprudências os significantes de saber por excelência.” (Idem a indicação da citação anterior.) (Grifos meus.)

E eis a padronização reducionista do eu-sujeito em sua infinitude de variantes, só porque isto convém ao “bom” e “pleno” funcionamento da sociedade, uma fisiologia social abstrata que se quer sobrepor, com poder de mando, à natureza das funções psíquicas individuais. Aliás, neste ponto recomendo a leitura da obra O mal-estar na cultura, de Sigmund Feud.

Mas os autores em foco prosseguem, e numa linguagem que meus amigos lacanianos tanto apreciam:

“Outra demonstração de como o Direito pretende substituir o sujeito (anular a subjetividade, em nome de um saber generalizável) seria a imensidão de legislações e de alterações legislativas, tentando tudo prever, reprimir o contingente, regular o factível, mantendo no Outro do Direito (ou seja, a lei) um saber inesgotável. O Direito tenta ‘migrar o gozo para os significantes do saber, não do saber do gozo, mas do saber que, paradoxalmente, dele não quer saber, pretendendo regulá-lo com leis escritas, ignorando o impossível do gozo. Quando isso não ocorre, dá-se a foraclusão* da questão’ (SILVA, 2002, p. 15).”

(Foraclusão: De acordo com o Dicionário de Psicanálise, de Roudinesco e Plon, trata-se de um “Conceito forjado por Jacques Lacan para designar um mecanismo específico da psicose, através do qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se produz, o significante é foracluído. Não é integrado no inconsciente, como no recalque, e retorna sob forma alucinatória no real do sujeito.” / Elisabeth Roudinesco, Michel Plon, Dicionário de psicanálise, Zahar, 1998, páginas 245-246.) (Idem a indicação da citação anterior.)

“(…) mantendo no Outro do Direito (ou seja, a lei) um saber inesgotável” e, eu acrescentaria, pretensiosamente único.

Por fim, como importante reflexão, os apontados autores Maíra Gomes e Fernando Aguiar arrematam:

“A compreensão de sujeito, para a Psicanálise, por sua vez, é aquele que não pode ser apreendido a partir de manifestações como comportamentos. Haveria uma singularidade, só compreendida no discurso, e que expressaria o inconsciente. Esse sujeito não seria universal porque a concepção de causalidade linear mostra-se insuficiente para a compreensão da subjetividade humana. A Psicanálise define o humano a partir do conceito de sujeito, e este, por sua vez, só é definível a partir da noção de inconsciente. Dessa maneira, um fenômeno externo não teria um correspondente interno. Em outros termos, não é possível generalizar os efeitos subjetivos de determinada vivência objetiva, já que cada sujeito responde à realidade objetiva de maneiras singulares. A realidade subjetiva é singular, e é apenas a partir dela que se pode acessar o sujeito.” (Grifos meus.)

Sempre é bom reforçar o significado do significante singular. Diz-nos o Caldas Aulete eletrônico que singular é “1.  Único na sua espécie (objeto singular). [ Antôn.: comum. ] / 2.  Especial, raro: Possui um talento singular. [ Antôn.: comum. ] / 3.  Fora do comum (acontecimento singular); EXCEPCIONAL [ Antôn.: comum. ] / 4.  Que difere de outros (comportamento singular); INUSITADO; ESTRANHO” (https://www.aulete.com.br/singular).

Bem, se com a intromissão da Psicanálise no assunto fica criado um enorme desafio para a Justiça, aquela que quer ser justa tanto com “faltantes” quanto com juízes (e aqui não posso deixar de me lembrar do sétimo livro da Bíblia Sagrada, o segundo dos livros históricos, o Juízes), mas, sobretudo que deve ser fiel à lei estipulada e pactuada, o ônus do aumento da dificuldade, que já não era pouca, que seja lançado na contabilidade da riqueza e da complexidade da natureza humana. Não é porque ainda estamos longe de a apreender por inteiro, se é que um dia tal conquista ocorrerá, que podemos simplificá-la a nossos interesses imediatos, fazendo de conta que ela não existe. E isso é que é ser justo.

Então, neto amado: não, não foi mesmo nem um pouco justo seu avô surripiar sua tão apetitosa merenda. Ele pede as devidas desculpas e agradece o ensinamento que você lhe ofertou com sua afirmação. Como é difícil – mas não impossível – entender verdadeiramente o que é justo e praticar uma justiça sempre maior e correta, consoante os princípios superiores e não conforme os mesquinhos interesses mundanos, sempre tão ligados ao poder e à riqueza material!