As três perguntas definitivas
Fausto Antonio de Azevedo
Resumo:
O texto procura apresentar algumas respostas, ou pelo menos reflexões, quanto a três perguntas definitivas e milenares: De onde venho?, Quem sou?, Para onde vou?. E tenta fazê-lo à luz de algumas idéias básicas e teses de Catarina de Sena e da Psicanálise.
Abstract:
The article seeks to present some answers, or at least reflections, regarding three definitive and millennial questions: Where do I come from ?, Who am I ?, Where do I go ?. And he tries to do it in the light of some basic ideas and theses by Catarina de Sena and Psychoanalysis.
Não haverá exagero em assumirmos que as três perguntas definitivas (todos os tempos e sociedades) são:
- De onde venho?
- Quem sou?
- Para onde vou?
Afinal de contas é bastante aceitável, e até natural, que queiramos saber minimamente de nós mesmos, a nosso respeito, o porquê de estarmos aqui e no que isso tudo resultará.
Religiões, filosofias e ciências têm se debruçado continuamente sobre isso, aliás não é descabido dizer que tudo que esses três braços da existência humana fazem e têm feito é unicamente voltado a tentar responder parcial ou totalmente às três perguntas acima. Responderam? Não. Responderão? Quem sabe?… Alguma delas avançou mais do que as outras duas: Não. São complementares? São. São porque trazem formas diferentes de saberes, todos eles necessários ao experimento humano1.
1. DE ONDE VENHO
“Tu és aquela que não é; Eu, ao contrário, Sou Aquele que Sou.”2
Catarina de Sena
Se eu sou o que não é, como disse Santa Catarina de Sena3, então talvez eu possa estender tal pensamento cogitando que eu não sei de onde vim; noutras palavras, “todo meu ser é recebido”, o meu ser e tudo que eu sou agora e aqui me foi dado, eu não participei da minha constituição, sequer da decisão da minha existência; de alguma maneira eu fui pensado antes de mim, eu fui planejado antes de existir/ser.
Pelo viés da religião cristã isso se deu pelo fato de eu fazer parte dos planos de Deus, fui previsto, fui imaginado, fui desenhado por Ele. Se minha visão não é da fé cristã, poderia eu supor,por exemplo, que fui “planejado”, “desenhado”, ao acaso pela natureza. É certo que vim, na percepção mais imediata, de um homem e uma mulher, que correspondem por óbvio ao meu pai e à minha mãe (no entanto, a partir de agora nem mesmo isso será absolutamente assim, já adentramos uma era des-referencial…).
Considerando-se que, em sua maioria, os bebês provêm da decisão e do desejo disso, de forças que atuaram num homem e numa mulher (e há dúvidas quanto ao fato de que isso ainda constitua uma maioria), e entrando-se também pelo viés do explicar psicanalítico, acabamos por ler aqui e acolá, que tal bebê, menino ou menina, muito antes da fecundação de um óvulo por um espermatozóide já existe no desejo deste homem-pai e desta-mulher mãe: tem nome escolhido, roupas, berço, quarto, brinquedos e um enredo; mais ainda, já tem para si os sonhos de futuro de seu pai e de sua mãe, já tem, de empréstimo, uma personalidade…
É disso tudo que venho; venho, mas não necessariamente sou!
Seja como for, a partir dessa minha ontologia que se fez sem mim, a partir desse caldo fundente, a partir desse magma vulcânico e a partir de um determinado dia, uma data no meu tempo futuro não sei quando, serei obrigado a tomar na mão as rédeas da minha existência e a me (re)constituir de alguma maneira no turbilhão de todas essas dúvidas, expectativas, dínamos e vácuos.
Para Catarina de Sena, por sermos o que não somos e termos recebido nosso ser, advêm desse fato, ou devem advir, em relação ao Deus criador (e por que não a todo o demais?) as seguintes virtudes: a humildade, o amor, a gratidão, a confiança, a obediência. Entendo que, destarte, a primeira grande lição que posso tirar desse processo (o qual, a despeito de se referir em tudo à minha pessoa é completamente impessoal) é a lição de que nada mais me resta a não ser uma permanente e absoluta humildade (um oposto à vaidade e à soberba4), pelo menos essa deveria ser a lição percebida por mim e seu consequente grande aprendizado. Eu nada fui nesse processo anterior a mim que me pensou, me gerou e me fez estar aqui; eu não tinha a importância tanta e toda que hoje imagino ter, eu não era o destaque, eu não era o rei no tabuleiro de xadrez, eu não era nem mesmo “Sua Majestade o bebê”5 ainda. Eu nasci como a culminância de uma longa sequência que, apesar de estar de alguma maneira totalmente voltada para mim, dedicada a mim, não me conferia qualquer importância especial: ninguém sabia quem seria eu, nem mesmo eu! Nada fiz para ganhar essa existência; embora haja o que eu possa fazer para mantê-la e isso é tudo, e já é muito. Portanto, creio que deva vestir a túnica da humildade e aceitar que não fui autor de mim, embora o quisesse muito (e embora um dia eu-próprio tenha escrito contrariamente, afirmando, na contracapa de um dos livros publicados, ser o autor de mim).
Durante os meus anos de paciente em psicanálise um ponto sistemática e repetidamente destacado pela competente psicanalista que tive a sorte de conhecer era, precisa e cirurgicamente, o de que eu enxergasse e, mais ainda, aceitasse as minhas limitações – que eram/são nem mais nem menos do que as limitações do humano. Todavia, o eu, dono de um nariz muito empertigado, permanente e orgulhosamente realçado por minha mãe e pelas histórias familiares que cá e lá ouvia, como do famoso “não trazer desaforo para casa”, relutou muito em adotar a percepção que agora ele (re)descobre e absorve a partir de um co-refletir com Agostinho e com Catarina de Sena (em que pese estarem separados por mil anos, estes dois grandes doutores da Igreja exibem teologias e antropologias bastante assemelhadas).
Suponho poder parar por aqui, com o destaque cristalizado de que seja pela visão da fé cristã (ou de outras religiões inclusive), seja pelo saber laico das ciências, da filosofia, da psicologia, da psicanálise, eu não fui de fato o autor de mim, não vim de algo planejado por mim. Posso até, quem sabe, a partir do “De Onde Venho?”, entender melhor o que sou e, desde tal ponto, tentar co-autorizar aquilo que virei a ser, meu devir. Apenas um ponto final: para os cristãos haverá sempre o conforto, mesmo que filhos de pais desconhecidos e ausentes, da crença em terem sido amados desde a origem e desde sempre por seu Deus criador…
2.QUEM SOU?
“O encontro com Deus não acontece ao homem para que ele se ocupe de Deus, mas para que ele coloque à prova o sentido da ação no mundo. Toda revelação é vocação e missão. Mas o homem, cada vez mais, em vez de atingir a atualização, realiza uma volta ao revelador, ele quer se ocupar de Deus e não do mundo. Só que nenhum Tu vem ao encontro dele, o ensimesmado. Ele não pode estabelecer na coisidade senão um Deus-Isso, senão querer que conhece Deus como um Isso e falar dele. Assim como o homem egomaníaco, em vez de viver diretamente alguma coisa, seja uma percepção ou uma inclinação, reflete sobre o seu Eu que percebe e que sente inclinação e por isso malogra a verdade do fenômeno, do mesmo modo, o homem ávido de Deus (que de resto pode estar de acordo com o egomaníaco numa mesma alma) em vez de deixar agir sobre si a graça, reflete sobre aquele que concede este Dom e assim não atinge nenhum nem outro.”6
Martin Buber
Ainda que eu não saiba completamente quem sou, e não sei, quero partir de uma constatação peremptória: a vida é muito breve! E, ademais, é contingente. E se assim o é, só me resta torná-la o máximo possível fecunda, no sentido da compreensão, da elevação, do aperfeiçoamento, da humildade antes aludida e do desprendimento do não-essencial.
Uma prática que se pode estipular para inquirir o “Quem Sou?” é tentar saber quem é o outro. Quem é aquele que não sou eu? Se é pelo outro que me formo e constituo, então quem é ele? Este seria um método, digamos, de retroalimentação recíproca permanente: conhecer-me para conhecer o outro e conhecer o outro para conhecer-me e (re)conhecer-me na face do outro. Mas esse já é assunto para possível “outro” ensaio7.
Bem, por enquanto vou dizer que podemos intentar a resposta à segunda pergunta formulada seja de modo afirmativo seja de modo negativo. Isto é, para tentar saber quem sou posso começar por rascunhar (mas depois passe-se a limpo…) tudo o que não sou, exemplo: não sou humilde, não sou honesto comigo mesmo, não sou controlado, não sou sereno, não sou persistente, não sou bondoso nem caridoso nem altruísta nem respeitoso, não sou fiel, não privo da verdade, não valorizo e atendo o outro; enfim, seria o inventário do que não sou de virtuoso e que, seguramente, alicersaria uma boa imagem do que sou, uma vez que numa espécie de aritmética de subtração, ao reiterar tudo que não sou de bons predicados, sobraria diante de mim o que sou… Quem tem coragem?8
É mais comum que se queira proceder à autoinvestigação daquilo que se “é” enumerando ponto a ponto exatamente o que se é, conhecendo-se. Em todas as épocas e civilizações tem o ser humano buscado ao limite conhecer a si tanto quanto intenta conhecer o mundo em que vive. Ele almeja intensamente conhecer ambos os mundos: o interior e o exterior.
Quanto ao primeiro, o interior, como antecipei, todas as artes, religiões, saberes e ciências têm prestado sua colaboração – mas nenhum desfecho alvissareiro ainda se deu, vale dizer, ainda prosseguimos na expectativa de auferir um autoconhecimento pleno e inteiro, o que sempre nos escapa. Quanto ao segundo, o exterior, com o que já se sabe (e é um nada, perto do que há de haver…) a sensação é realmente de que parece estar se formando e consolidando um hiato abissal entre ele e o anterior…9
Claro está que se precisa pelo menos de um método, e é bem disto que se trata, para sondarmos nosso interior. A dificuldade, uma delas, como já apontado por muitos outros, é sermos, ao mesmo tempo, observadores e observados, é querermos objetivamente buscar o autoconhecimento tendo como ferranenta para isso a nossa subjetividade. A empreitada não é nada fácil, mormente nos tempos atuais, com tantos e potentes apelos/estímulos/ruídos para que permaneçamos “fora de nossa casa”, o que não deixa de ser uma estratégia venenosamente imposta a nós.
Conhecer-se é desbastar as arestas e desamarrar os nós que nos mutilam e nos prendem fora de nós. Trata-se de uma tarefa de cunho eminentemente pessoal (ainda que possa contar com o concurso de um mestre, um diretor expiritual, um filósofo, um psicanalista, etc.), daí a grande dificuldade sempre, uma vez que exige de um lado determinação, a famosa força-de-vontade (ou “apetite”, como disse São Tomás de Aquino10), sublihando-se que a assunção de nossos desejos de hoje conformarão nossa realidade do amanhã (daí a enorme importância de bem os conhecermos); de outro, um certo grau de capacidade intelectual, psicológica, e de boas informações. Uma das amarras, que é da profunda ordem interior de cada qual e ficou bem iluminada a partir dos corajosos e vigorosos trabalhos de Sigmund Freud, é aquela que se refere a todo universo de nosso psiquismo: olhá-lo com a máxima clareza possível, atravessando as camadas “arqueológicas”, os véus (véu de Maya, cf. Shânkara…) com que o vamos recobrindo/disfarçando, voluntariamente ou não, é bastante difícil e frequentemente doloroso.
A psique (estado psíquico ou psiquismo) é aquela instância dentro de nós, soma de consciente e incosciente, que se encontra em processo contínuo de construção, e, ao mesmo tempo, numa espécie de equilíbrio dinâmico consigo mesma, desde e a partir do nosso nascimento, sem que objetivamente tomemos parte dessa construção inicial, e que, constituída, nos influenciará permanentemente, quer queiramos quer não. A palavra vem do grego antigo, com o sentido original de sopro, respiração, e era para aquele povo uma idéia que, justamente, caracterizava o auto – o “si mesmo”.
Mas o ganho de conhecer-se tanto quanto possível, inclusive nos limites, não se traduz em benefícios imediatos e temporais, como poder, riqueza, domínio, ou o que quer que seja de tal ordem. Conhecer-se deve ter muito mais a ver com conquistar transcendentais11, valores eternos, como o bem, a verdade, a unidade, o belo. Santa Catarina de Sena, no “Diálogo”, explicita que Jesus é que revela que o passo primeiro e fundamental para se alcançar a “Verdade” é o conhecimento de si. Leia-se:
“O Caminho para atingir o conhecimento verdadeiro e a experiência do meu ser – Vida eterna que eu sou – é este: nunca abandones o autoconhecimento! Ao desceres para o vale da humildade, reconhecer-me-ás em ti, e de tal conhecimento receberás tudo aquilo de que necessitas.”12
Para Catarina, o conhecimento de si só pode ser alcançado – ou deve atribuir-se – a uma luz divina. A busca do conhecimento de si, via iluminação divina, purifica as manchas da alma; leva-nos a provar a verdade eterna; “humilha” o homem (faz-lhe alcançar a humildade) e o faz conhecer seu não-ser aí nele mesmo; renova e fortalece nosso amor próprio; conhecendo-nos mais, maiores são as chances de que nos aproximemos – em conhecimento (conhecer para crer…) – de Deus; faz o homem conhecer a virtude e a virtude vir a ele; apazigua tempos de tentação; o conhecimento de si deve ser “temperado” com o conhecimento de Deus. Ora, em que pese a forte tinta da fé religiosa presente na escrita catariniana, se a miramos momentaneamente por fora de tal contexto religioso, captamos nitidamente uma essência que se aplica em cheio ao modo de pensar mais contemporâneo da filosofia, da psicanálise e da ciência, no sentido de que é só com a mais profunda compreensão de si e dos (nossos) mecanismos internos de operação mental que o ser humano que somos hoje pode, minimamente, querer aspirar a uma vida independente, não repetitiva em seus erros e pacífica no quanto cabível. Estamos sob o jugo de uma ferrenha disputa entre, de um lado, as forças que pretendem nos obrigar a um raciocínio/comportamento de manada, e, de outro lado, a imperiosa necessidade de vôo liberto, tanto quanto possa insubmisso, anárquico até, e independente.
Santa Catarina está preocupada com o bem-estar do homem nessa vida terrena, com seus acertos, virtudes, realizações e felicidade. Neste sentido, entende que tal estado só pode ser verdadeiramente conquistado por meio de sua união com Deus. A alegria e a plenitude do homem estão em seu encontro com o Senhor. Ora, precisa o homem, então, trilhar o caminho que o leve lá, ou seja, ao conhecimernto de si e deste a Deus, superando os muitos obstáculos que se apresentam em tal jornada, a saber: (i) aqueles que são introjetados e atuam desde fora: dificuldades como a imaturidade, a ignorância, os erros que se comete; e (ii) os que ganham curso e repercussão interior: o cinismo, o desespero. Outros obstáculos têm gênese, de fato, mais comumente interna, são conjunto de certas miudezas que se formam e agem dentro da própria “casa” de cada qual, e que poderíamos perceber como bem do seu plano psíquico, mandatários psicológicos, mas equívocos; eles são: (i) retaliação ou desforra e exibição de conquistas (aquilo que se fará quando adulto, nosso “script” pessoal, para compensar os males que se tenha sofrido ou as faltas e depreciações que se experimentou em criança); (ii) investimentos afetivos, isto é, barganhar compensações afetivas pela doação, ou mesmo compra dissimulada de determinados tipos de favores ou aceitação; (iii) medos e seu antídoto mais frequente, que é a acumulação: o medo de qualquer forma de escassez conduz a pessoa a acumular seja o que for – um medo permanentemente operando é o motor da angústia, que, para que o ser sobreviva, precisará se dissipar, fechando o circuito em direção à acumulaçao e/ou consumo; (iv) necessidades (desejos) percebidas como intensas, urgentes e imediatas e que precisam ser aplacadas; (v) insegurança, que motiva a pessoa a procurar repetida e insistentemente a aprovação de terceiros para seus planos e atos.
Conhecer-se é optar por “atravessar a ponte” (por sob a qual escorrem os onstáculos) seguindo para dentro de sua própria casa, é “entrar” em si, em sua história, com seus dramas e senões, superando todos os entraves anteriormente relacionados, e, para Santa Catarina a ponte (uma das mais vigorosas imagens de sua doutrina cristã) que permite ultrapassar o rio dos pecados (entraves) é representada por Cristo. É ele a ponte13 a nos levar da margem do rio caracterizada pelo mundano (desconhecimento de si, despercepção do outro, valores alheios, cobiça, luxúria, plêiade de seduções prejudiciais tão ostensivamente em voga no atual momento histórico, sobretudo pelo ininterrupto acinte da mídia e dos interesses desse modo de viver “des-almado” que insistem em desviar, em distrair o ser humano de preocupações críticas e reflexões maiores) para a margem referenciada como a da utopia (ainda sempre, por que não?!) e do amor potencialmente realizáveis.
Esse jogo eu-dentro-de-mim / eu-fora-de-mim, tão bem revelado por Santo Agostinho nas Confissões 14 (quando ele comenta que o Senhor estava dentro de si e ele não o percebia por se achar, ele próprio, fora, derramado sobre as “coisas” do mundo), é o que jogamos todos nós cada vez mais em nossos dias – e o santo Bispo vivia no século IV –, independentemente daquilo que estamos a procurar dentro, conforme a fé e o entender de cada um. O fato impactante é que nos deixamos ir no turbilhão das águas do rio, arrastados pelos modismos e palavras de ordem do comportamento geral (mimetismo), e nos afastamos sempre mais de nossa singularidade, de nossa interioridade e daquilo de bom que há dentro dela; portanto, assim, cada um só faz mais se distanciar do conhecimento de si.
Tal jogo de posições dentro / fora se instala não só nesse apontado aspecto religioso, mas também na prática da psicanálise freudiana (o diálogo divã-poltrona…). Na psicanálise, psicanalista e analisante têm cada qual o seu lugar, sua posição. Se a do analisante é aquela de quem traz/precisa trazer para a cena toda sua subjetividade, a do psicanalista, sua posição/função é a de se destituir de sua subjetividade, vale dizer, sua função não se ancora na pessoa (ser) que ele também é, mas, tanto quanto possivel seja, na destituição desse ser, uma espécie de des-ser, de não-ser naquele momento de sessão, como se fosse o não-ser do fiel diante de um fenômeno maior de vida que se manifesta ali, naquele preciso instante, o qual sinto por completo, mas não consigo apreender. Na margem do rio do analisante, ele “fitando” o rio do inconsciente, se logra levar a êxito seu processo de análise, produz também uma destituição, subjetiva, porque ele reelaborou, reformulou, ressignificou, metaforizou sua carga inconsciente, descristalizando seu(s) sintoma(s) e a eles dando vazão (parto, maiêutica pessoal, graça…), suscitando, assim, possibilidades de um novo ver/viver; em suma, analista e analisante instados a se confundirem com o poder de falar e o de escutar, numa relação única e indefinível, com uma expectativa telelológica esculpida (inscrita diriam alguns) num desejo de outro futuro.15
Quadro de composição multifacetada no qual se há um bipolo operacional atuando, divã-poltrona, poltrona-divã, também há no mínimo uma duplicidade em cada um dos dois polos: o interor e o exterior de cada qual…
Catarina raciocinará com a dialética não-ser / ser. Alcançado o conhecimento de si, mercê da vitória na luta contra os obstáculos, por determinação e inspiração em Cristo, a pessoa que crê entenderá que “sou o que não-é” e que “Deus é o que é”, é o que sempre foi; vale dizer, e eis o significado: eu não me dou o ser a mim mesmo, eu não me crio, isto é, eu recebo meu ser desde outra instância, seja a providência divina na visão religiosa, sejam os progenitores, por óbvio, na visão puramente biológica mecanicista, sejam as figuras de pai e mãe, sobretudo, na explicação psicanalítica. (Foucault, na sua “Analítica da Finitude”, em As palavras e as coisas, recorda-nos que em termos ontológicos o homem não é, mesmo, a fonte do mundo, de seu corpo, sua linguagem, etc., contudo, epistemologicamente ele deveras é, ou pode ser, a fonte de seu conhecimento – e eu então sublinharia do conhecimento de si.)
Assim, fica fácil de ver que se eu não sou o criador de mim, há algo que necessariamente deve estar antes, e na concepção católica de Catarina trata-se de Deus, que por nos criar e estar conosco, compartilha conosco “nosso” eu, não restando mais lugar/oportunidade para todos aqueles agentes (obstáculos malignos) que disfarçadamente nos comandavam, e, por isso, fica clara a resposta para a pergunta: “Quem é o Senhor que vive em mim?” – para ela só pode ser Deus, mas é o Deus em parceria com cada qual de nós, numa espécie de operação conjugada. Eu falei no início de uma necessidade de um método para busca do autoconhecimento, e é esse método que venho aqui tecendo linha após linha, muito inspirado em Catarina; todavia, para os que não se sentem confortáveis numa rota de tão forte fé, podemos extrair seus pilares universalmente válidos. Ora, desvestidos dos engodos mundanos dos obstáculos, na mirada heróica ao espelho de um eu mais autêntico, pode-se colocar a falar e a viver dentro de nós o “eu-verdadeiro”, puro no sentido de ser próprio e imaculado às opiniões terceiras e intoxicantes, e bem assim não orgulhoso nem narcísico, mas sereno e sabedor de suas limitações e de sua finitude, disso construindo sua força e sua grandeza, nisso forjando sua substância e seu discurso pessoal.
E nesse ponto podemos, então, saltar para as considerações que Catarina faz relativamente à palavra. O “conhecimento de si em Deus” e o “conhecimento de Deus em si” é uma dialética robusta que, ao lado da fé, só é possivel pela “rota” da palavra. Em psicanálise sabe-se muito bem da importância da palavra, a “talking cure” de Anna O. ecoa nos ares até nossos dias; a dança “lacaninana” dos significantes/significados continua a assombrar a cabeça de muitos dedicados psicanalistas e, no tocante àquela Anna, Lacan dizia: “Quanto mais Anna dava significantes e tagarelava, melhor a coisa ia.”16
Estudando o dom e o papel da linguagem humana em relação à fé, Catarina perceberá a existência de três funções máximas no uso da palavra: (1) verbalizar as próprias falhas, denunciando-as (estado de penitência); (2) louvar a Deus (estado de adoração); e (3) edificar outros (estado de caridade). (Fica irresistível a provocação de associar a isso o caminho de uma pretensa cura psicanalítica: 1. entrar em contato com e verbalizar seus recalques, seus fantasmas, num estado penitencial de desnudamento diante de si; 2. saudar o processo e encantar-se com – adorar – a descoberta/diagnóstico; 2. edificar-se novo pela cura, um outro eu renascendo daquele que portava suas patologias.)
Essa forma de via ou caminho da palavra estrutura a vida de quem busca e pratica o conhecimento de si mesmo, retroalimentando o processo de aprender no caminho ao tempo em que, simultaneamente, realiza o que nele (no caminho) está preconizado. Entende Catarina que o uso ajustado da palavra, já o ser liberto dos esvaziamentos de si que o rio traiçoeiro do pecado sempre acarreta (os tantos cantos das sereias e as seduções manipuladoras da vida corrente, como, por exemplo, a já citada propaganda, a autoajuda, os sofistas, as loterias…), ao esclarecer no quantum máximo atingível a natureza de cada um, suas verdadeiras marcas e papéis, o aproximará inapelavelmente das grandes virtudes, resgatando o ser do pseudo conhecimento de si, aquele que tende a se instalar baseado exclusivamente em seu mundo subjetivo. Paradoxalmente, a rota e a prática devida da palavra eleva o ser humano a uma condição em que o conhecimento se torna inefável e pode apenas ser experienciado e vivenciado. Já aqui saliento novamente algo muito aproximado do terceiro estádio, o religioso, da visão de Kierkegaard para o crescimento humano17.
O processo de conhecer-se a si, quando alcança êxito, coloca cada um de nós num mesmo patamar, que, para Catarina, se refere aos desejos profundos, caracterizados pelas palavras/tríade (i) sabedoria (verdade), (ii) amor e (iii) poder (memória, no sentido de Santo Agostinho, memória de si). Todos nós, não importa qual a condição atual de cada um, queremos conhecer a verdade, queremos ser amados e queremos ter o poder (capacidade) para atingir nossos propósitos mais próprios e, portanto, neste fato fica registrada uma antropologia. “Antropologia”, em verdade, que é o estudo prático de erros e acertos acumulados, que cada um de nós, a cada dia, desempenha no próprio existir, a fim de que consiga obter um pouco mais de compreensão para a perplexidade que nos paralisa diante do fenômeno de ser.
3.PARA ONDE VOU?
Depois do que já foi visto até aqui parece-me que uma única resposta que cabe à pergunta “para onde vou?” é que só há um lugar para onde eu deva ir, aquele lugar no qual eu possa, ou para o qual eu possa, realmente, investir; o eu do suposto ou do aceito estabelecido, como queiram, de que não me constituí, não decidi pela minha existência, não vim a esse mundo e essa vida a partir de um projeto meu, que eu próprio tenha intuído, e, adicionando a isso o fato antes exposto de que muito pouco eu sei de mim e muito pouco posso de fato saber de mim, a meu respeito, a meu verdadeiro respeito, e buscar esse conhecimento é uma jornada árdua; tudo que posso imaginar, portanto, no sentido de para onde vou é que irei, obrigatoriamente, para o melhor de mim, posto que é aí onde resta campo para eu poder atuar, agir e operar no meu aperfeiçoamento, constituir no eu que aqui chegou por todos esses oblíquos e confusos caminhos, o seu melhoramento e o seu aperfeiçoamento permanentes.
Alguns fulminantemente estarão me perguntando “e para quê?” Ora, responderá o religioso: “para chegar até a Deus”; e poderá dizer o não-temente: “para chegar até à melhor versão de mim”, o que seria a maior de todas as conquistas disponíveis para uma vida.
Mas também aqui Catarina nos aporta um ensinamento muito valioso e prático: se queremos saber para onde vamos, basta pesquisar a quem obedecemos, a quem ou a quê, nos diz ela. Se ouço e obedeço a Deus (daí o grande valor que ela atribui à obediência) por certo é a ele que chegarei; se ouço e obedeço a imperativos morais, éticos, de alteridade, de bondade, de verdade, chegarei, muito possivelmente, a algum porto seguro da sabedoria e terei dado sentido e propósito maior à minha vida. Agora, se ouço e obedeço ao dinheiro, ao poder, aos prazeres apenas…
Bibliografia de interesse
Em Português
João Alves Basílio. Vida de Santa Catarina de Siena. 1ª. ed. São Paulo: Paulus Editora, 1993. 9ª. reimpressão, 2018, 92 p.
Santa Catarina de Sena. Cartas completas. São Paulo: Paulus Editora, 2016. 1344 p. (https://www.paulus.com.br/loja/cartas-completas_p_4362.html)
Santa Catarina de Sena. O Diálogo. 1ª. ed. São Paulo: Paulus Editora,1985. 17ª. reimpressão, 2019. 416 p. (https://www.paulus.com.br/loja/o-dialogo_p_1094.html)
Sigrid Undset. Catarina de Siena. [Trad.: Maria H.A. Lima Senise]. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1956. 287 p. Disponível em:
http://alexandriacatolica.blogspot.com/2011/07/catarina-de-siena-sigrid-undset-livro.html)
Em Inglês, Espanhol e Italiano
Blessed Raymond of Capua. The Life of St. Catherine of Siena. [Trad.: George Lamb.] Rockford, Illinois: TAN Books, 2003.
Catherine of Siena. The Dialogue. ed. Suzanne Noffke. New York: Paulist Press, 1980.
Fry Nelson Medina, O.P. Sobre el Conocimiento de Sí Mismo. 40 p. Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/95890/295119.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Girolamo Gigli (ed.) L’opere di Santa Caterina da Siena, 4 vols., Siena e Lucca, 1707-1721.
Giuliana Cavallini (ed.). Il Dialogo della divina Provvidenza: ovvero Libro della divina dottrina. 2 ed., Siena: Cantagalli, 1995. [Edição crítica italiana.]
Idem. 26 Prayers is Catherine of Siena, Le Orazioni, Rome: Cateriniane, 1978. [Edição crítica italiana.]
McDermott, Thomas, O.P. Catherine of Siena: spiritual development in her life and teaching. New York: Paulist Press, 2008.
Ver também:
Centro Internacional de Estudos Catarinianos
http://www.centrostudicateriniani.it/it/1/1cronologia.html
Notas e referências
[1] A respeito, é bastante recomendável a leitura da Encíclica do papa São João Paulo II Fides et Ratio. Ver na íntegra em: http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091998_fides-et-ratio.html.
[2] Santa Catarina de Sena. O Diálogo. 1ª. ed. São Paulo: Paulus Editora,1985. 17ª. reimpressão, 2019. 416 p. (https://www.paulus.com.br/loja/o-dialogo_p_1094.html)
[3] Em artigo anterior pude aprofundar um pouco mais algo a respeito da vida e da obra de Catarina Benincasa, Santa Cataria de Sena. Ver: “Catarina de Siena e o conhecimento de si” https://tempoanalise.com.br/catarina-de-siena-e-o-conhecimento-de-si/.
[4] Ver: “Quem tem coragem de confessar sua vaidade?” https://tempoanalise.com.br/quem-tem-coragem-de-confessar-sua-vaidade/.
[5] “His Majesty the Baby” expressão usada por Freud, em 1914, no artigo “Introdução ao narcisismo”, no qual ele diz que um excesso de admiração dos pais aos filhos pode não ser nada além do que um narcisismo profundo de cada qual deles. Ver as interessantes informações de Elisabeth Roudinesco em seu livro “Diconário amoroso da psicanálise”, página 155. (Tradução: André Telles, 1ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.)
[6] Martin Buber. Eu e Tu. [Tradução do alemão, introdução e notas por Newton A. Von Zuben.] 10ª. ed. São Paulo: Centauro, 2001. p. 126.
[7] Seguramente guiado nesse tema e propósito pelas mãos firmes de Martin Buber, sobretudo em seu livro “Eu e Tu” (Tradução do alemão, introdução e notas por Newton A. Von Zuben. 10ª. ed. São Paulo: Centauro, 2001. 170 p.) e pela obra filosófica de Emanuel Levinas.
[8] Ver: “Quem tem coragem de confessar sua vaidade?” https://tempoanalise.com.br/quem-tem-coragem-de-confessar-sua-vaidade/.
[9] Ver: “Catarina de Siena e o conhecimento de si” https://tempoanalise.com.br/catarina-de-siena-e-o-conhecimento-de-si/.
[10] Gustavo dos Santos Oliveira. O pensamento de São Tomás de Aquino e Ontopsicologia: uma breve elucidação acerca do conceito de intelecto. Saber Humano, Edição Especial: Cadernos de Ontopsicologia, 2016. p. 90-103. Disponível em:
(Acessado em 1/fev./2020.)
Ver também:
Santo Tomás de Aquino. O Apetite do Bem e da Vontade. São Paulo: Ed. Edipro, 2015. 176 p.
https://www.edipro.com.br/produto/o-apetite-do-bem-e-da-vontade-2/
[11] Transcendentais são as propriedades superiores, essenciais e absolutas do ser (ente), conforme a filosofia clássica. Contudo, de alguma forma, são discutidas desde Parmênides, vindo a Sócrates, Platão, Aristóteles. Na Idade Média, pelos filósofos católicos, como Alberto Magno, Tomás de Aquino, Duns Escoto. Os transcendentais típicos são o Um, o Bem e o Verdadeiro. São Tomás de Aquino, na “Suma Teológica”, nos apresenta seis transcendentais do ente, que, ao mesmo tempo como que equivalem a seis sinônimos do próprio ente, sua realidade última:
- Verum = verdadeiro;
- Bonum = bom;
- Pulchrum = belo;
- Res = coisa e as palavras derivadas: real, realmente, realidade;
- Aliquid = outro algo, ou a idéia de alteridade, vale dizer, a delimitação de um ente relativamente a qualquer outro;
- Unum = um, uno.
[12] Santa Catarina de Sena. O Diálogo. 1ª. ed. São Paulo: Paulus Editora,1985. 17ª. reimpressão, 2019, p. 33.
[13] Descrição da Ponte
“(…) Quero descrever-te a ponte. Já disse que ela se estende do céu à terra, graças à união (hipostática) que realizei com o homem formado do limo da terra. Essa ponte é meu Filho e possui três degraus; dois deles foram construídos no madeiro da cruz e o terceiro, quando ele na amargura bebeu fel e vinagre. Em tais degraus reconhecerás três estados da alma, como abaixo explicarei. O primeiro degrau é formado pelos pés; significam o amor, pois como os pés transportam o corpo, assim o (duplo) amor faz caminhar a alma. Os pés cravados na cruz servem-te de degrau para atingir a chaga do peito, que te revela o segredo do coração. Após subir até aos pés pelo amor, o homem fixa o pensamento no coração aberto de Cristo e saboreia sua caridade inefável e consumada. Disse caridade ‘consumada’, porque Cristo vos ama sem interesse pessoal; em nada sois de utilidade para ele, que forma uma só coisa comigo. Vendo-se amada, a pessoa se enche de caridade. Enfim, após atingir o segundo degrau, chega-se ao terceiro, que é a boca de Cristo. Nela o homem encontra a paz, depois (de vencer) a grande guerra contra as próprias culpas. No primeiro degrau o cristão se afasta da afeição terrena, despoja-se dos vícios; no segundo, adquire as virtudes; no terceiro, goza a paz. São três, portanto, os degraus da ponte: passa-se do primeiro ao segundo, para atingir o último. A ponte é alta; quando se passa por ela, a água do pecado não atinge a alma. Em Jesus não houve pecado.”
Santa Catarina, “Diálogo”, partes 11, 12.
Não há como não se associar aqui essa passagem da Santa aos três estádios do caminho traçado por Kierkegaard para obtenção de uma paz interior sábia e definitiva, junto ao sagrado: os estádios estético, ético e religioso. Em que pese, quiçá, uma certa dificuldade de aproximação dos iniciais de cada sequência, os dois seguintes guardam muita conexão. Ver: Kierkegaard: quando a filosofia não expulsa a religião, no Portal Tempo Análise: https://tempoanalise.com.br/kierkegaard-quando-a-filosofia-nao-expulsa-a-religiao/, e A vontade como antídoto ao nosso desespero kierkegaardiano, também no Portal Tempo Análise: https://tempoanalise.com.br/a-vontade-como-antidoto-ao-nosso-desespero-kierkegaardiano/.
[14] Santo Agostinho. Confissões. Le livros. p. 47. Disponível em:
http://lelivros.love/book/baixar-livro-confissoes-santo-agostinho-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/ (Acessado em 20/jan/2020.)
[15] Ver: “Catarina de Siena e o conhecimento de si” https://tempoanalise.com.br/catarina-de-siena-e-o-conhecimento-de-si/.
[16] Jacques Lacan. O Seminário. Livro 11: os quarto conceitos fundamentais da psicanálise. 1964 [Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tad.: M.D.Magno.] Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 155.
[17] Ver:
- “A vontade como antídoto ao nosso desespero kierkegaardiano” https://tempoanalise.com.br/a-vontade-como-antidoto-ao-nosso-desespero-kierkegaardiano/ e
- “Kierkegaard: quando a filosofia não expulsa a religião” https://tempoanalise.com.br/kierkegaard-quando-a-filosofia-nao-expulsa-a-religiao/
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