Fim!
Autor: Ulisses Caballi Filho
Chegou o mês de setembro. Em tempos passados, aguardava-se ansiosamente o feriado da Independência para celebrar o fim de um período em que a pátria amada estava sob o domínio de outra nação. Em um piscar de olhos, dois séculos se esvaíram no tempo. E esse é o tempo que não tem hora marcada; chega sem avisar. Aquele grito de “Independência ou Morte” [1] hoje parece inexistente em uma sociedade hiper conectada, entretanto desconexa, além de dividida e marcada por preconceitos e vieses.
A vida passa como um raio que poderia destruir ideologias vãs, mas não é bem assim. Sabemos que, para o show continuar ou para a vida propriamente dita, é necessário pedir bis em uníssono; não podemos esquecer de fazer isso juntos e em coro, gritando “mais um”, mesmo que, se não houvesse, teríamos tentado. Então, vamos nos arriscar mais agora em busca de re-viver esse grito de “Independência ou Morte”, como ouvimos e cantamos em “Refuse/Resist[2]“!
Foto: https://www.sepultura.com.br/
Mas por que recusa/resista? Muita coisa aconteceu nesses mais de 200 anos de independência. A banda Sepultura[3], talvez, precisasse de um volume quádruplo do Chaos A.D.[4] para alinhavar o que ocorreu de lá para cá. Enfim, isso não será possível, pois a banda chegou a um quinto do período de nossa independência como país. Aos 40 anos, foi difícil não ficar emocionado ao ouvir Black Sabbath e Titãs precedendo a abertura magistral de “Refuse/Resist”. Logo me perguntei: o que será do Sepultura depois disso?
A perspectiva da finitude para os músicos do Sepultura é algo que ocorre diariamente, desde a saída dos dois irmãos. Mesmo em tempos distintos, essa mudança foi sofrida. Apesar disso, os Cavalera deixaram sua marca tatuada na história da banda. Por situações advindas, escolhas foram feitas, e o legado que a banda construiu ao longo dessas quatro décadas não pôde ser compartilhado em comunhão até o momento. A vida é uma espécie de fotografia revelada, que apenas em seu negativo podemos realmente recordar, repetir e elaborar.
Como se não bastasse um show, fui à segunda noite, um pouco mais fortalecido emocionalmente. Mesmo assim, ao ouvir “Inner Self[5]“, cogitei escrever algo a respeito. Aqui estou, tentando voltar a exercitar minhas habilidades enquanto adolescente, talvez pela vontade de gritar ao mundo como bem fez Derrick Green. Em duas noites consecutivas, havia uma terceira no domingo, e até pensei em ir; um é pouco, dois é bom e três seria demais? Mas já tinha comprado o ingresso para a peça A Mulher da Van[6], derivada do filme *A Senhora da Van*, ambas inspiradas no livro homônimo de Alan Bennett[7]. O filme é interpretado por Maggie Smith[8] e a peça, por Nathalia Timberg[9], ambas ratificam a existência da beleza na velhice. Aos poucos, por oportunidades de mercado, a velhice passa a ser chamada de economia dourada. Apenas um parêntese para conectar a importância de ter uma velhice ativa e bem instruída, de modo que seja possível, como Nathalia, usar a tecnologia como auxílio, empregando um tablet, uma espécie de teleprompter que guiou a potência de sua voz, enrouquecida pelo tempo, longe do gutural de Derrick, mas tão poderosa quanto. Assim, no domingo à tarde, após duas noites intensas de metal, busquei algo mais relaxante e fui ao teatro assistir à peça A Mulher da Van, com Nathalia Timberg. Aos 95 anos, fazendo a personagem se lançar ao palco mesmo numa cadeira de rodas, ela pôde se divertir quando empurrada de um lado ao outro do tablado. E o que foi aquela última gargalhada?
Foto: Priscila Prade https://www.sescsp.org.br/programacao/a-mulher-da-van/
Persiste a dúvida sobre o que será da arte quando não houver mais Sepultura e Nathalia Timberg. Sim, fiz a conexão; já havia dado o spoiler acima de que é possível mostrar que pode existir união nas diferenças. Veja que, de um lado, temos a transição entre o vigor da música pesada e do outro a sensibilidade do teatro, revelando uma mudança no cenário artístico, além de um convite à reflexão sobre o legado que essas expressões culturais deixarão. A união de diferentes formas de arte e a continuidade do grito de resistência e expressão, seja no metal ou no teatro, nos lembra que a luta pela resistência e pela verdade continua, mesmo quando as vozes mais poderosas se tornam silenciadas pelo tempo.
Sendo o momento de começar a dizer adeus, novamente apropriando-me de outro spoiler e conectando com a psicanálise freudiana, vemos que, ao longo dos anos, apesar das inúmeras situações criadas sobre sua persona, Freud pôde aprofundar seus pensamentos e motivações, especialmente no que se refere às questões da finitude.
Vejamos que o texto Recordar, Repetir e Elaborar[10] traz o sentido de rememorar o que foi vivido anteriormente, tempos passados, de modo que essa memória possa nos permitir olhar para frente e ter a capacidade de enxergar o fim. No entanto, essa capacidade muitas vezes esbarra em comportamentos repetidos, padronizados e até mesmo ritualísticos. Entretanto, não podemos esquecer o sentido literal da palavra; ou seja, um rito é um processo necessário para entender o fechamento de um ciclo. Um comportamento repetitivo é uma espécie de muralha que nos impede de acessar o grande ato da maturidade, que reconhece sua força e capacidade de deixar legados, mesmo se aproximando da finitude. Sepultura e Nathalia conseguiram romper essa muralha para acessar o infinito da história. A turnê de encerramento presenteou seus fãs com a importância de recordar o passado, refletir sobre as conquistas e celebrar o fim da banda com os fãs.
Não se sabe se a peça *A Mulher da Van* será o último papel interpretado por Nathalia, mas a atriz voará infinitamente por suas atuações e narrativas históricas. Por fim, existe um legado a seguir, uma possibilidade de encontrar nas experiências vividas um novo entendimento de si diante do próprio fim.
Vejamos abaixo como Freud, finalizou o texto: Recordar, Repetir e Elaborar (1914):
Eu poderia me deter aqui, se o título deste ensaio não me obrigasse à exposição de mais um ponto da técnica psicanalítica. Como se sabe, a superação das resistências tem início quando o médico desvela a resistência jamais reconhecida pelo paciente e a comunica a ele. Mas parece que os principiantes da análise se inclinam a tomar esse início pelo trabalho inteiro. Com frequência fui consultado a respeito de casos em que o médico se queixou de haver mostrado ao doente sua resistência, sem que no entanto algo mudasse, a resistência havia mesmo se fortalecido e toda a situação se turvado ainda mais. Aparentemente, a terapia não estava indo adiante. Essa expectativa sombria resultou sempre errada. Em geral a terapia fazia progresso; o médico tinha apenas esquecido que nomear a resistência não pode conduzir à sua imediata cessação. É preciso dar tempo ao paciente para que ele se enfronhe na resistência agora conhecida,* para que a elabore,* para que a supere, prosseguindo o trabalho apesar dela, conforme a regra fundamental da análise. Somente no auge da resistência podemos, em trabalho comum com o analisando, descobrir os impulsos instintuais que a estão nutrindo, de cuja existência e poder o doente é convencido mediante essa vivência. O médico nada tem a fazer senão esperar e deixar as coisas seguirem um curso que não pode ser evitado, e tampouco ser sempre acelerado. Atendo-se a essa compreensão, ele se poupará muitas vezes a ilusão de haver fracassado, quando na realidade segue a linha correta no tratamento. Na prática, essa elaboração das resistências pode se tornar uma tarefa penosa para o analisando e uma prova de paciência para o médico. Mas é a parte do trabalho que tem o maior efeito modificador sobre o paciente, e que distingue o tratamento psicanalítico de toda influência por sugestão. Teoricamente pode-se compará-la com a “ab-reação” dos montantes de afeto retidos pela repressão, [ab-reação] sem a qual o tratamento hipnótico permanecia ineficaz.
Dito isto, agora é com você.
[1] Pintura do artista brasileiro Pedro Américo, inspirada numa frase suspostamente dita por Pedro 1º.
[2] Música lançada em 1993, no álbum Chaos A.D
[3] A banda foi formada em 1984 em Belo Horizonte, Brasil, por Max Cavalera (vocal e guitarra), Igor Cavalera (bateria), Paulo Jr. (baixo) e Jairo Guedz (guitarra). A formação atual inclui Derrick Green (vocais), Andreas Kisser (guitarra), Paulo Jr. (baixo) e Greyson Nekrutman.
[4] Álbum lançado em 19 de outubro de 1993.
[5] Tradução livre: Eu interior. 2ª faixa do Álbum Beneath the Remains, lançado em 1987.
[6] Mary Shepherd é uma senhora idosa, que mora dentro de uma van. Devido aos seus hábitos, os moradores não gostam quando ela decide estacionar o carro próximo à sua casa. O único que a tolera é o escritor Alan Bennett. Após algum tempo, os moradores conseguem proibir que qualquer carro fique estacionado no bairro, mas a sra. Shepherd encontra uma saída.
[7] Conhecido é Sir Alan Bennett, um dramaturgo, roteirista e ator britânico. Ele nasceu em 1934,
[8] Margaret Natalie “Maggie” Smith, atriz britânica, nascida em Ilford, 28 de dezembro de 1934.
[9] Nathalia Timberg, atriz brasileira, nascida no Rio de Janeiro, em 05 de agosto de 1929.
[10] Obras completas, Freud, Sigmund. Vol. 12, trabalho original publicado em 1914.
FONTE: https://tempoanalise.com.br/fim/
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