Leibniz e o inconsciente antes de Freud

Fausto Antonio de Azevedo

“Na linguagem corrente, o termo inconsciente é utilizado como adjetivo, para designar o conjunto dos processos mentais que não são conscientemente pensados. Pode também ser empregado como substantivo, com uma conotação pejorativa, para falar de um indivíduo irresponsável ou louco, incapaz de prestar contas de seus atos.

“Conceitualmente empregado em língua inglesa pela primeira vez em 1751 (com a significação de inconsciência), pelo jurista escocês Henry Home Kames (1696-1782), o termo inconsciente foi depois vulgarizado na Alemanha, no período romântico, e definido como um reservatório de imagens mentais e uma fonte de paixões cujo conteúdo escapa à consciência.

“Introduzido na língua francesa por volta de 1860 (com a significação de vida inconsciente) pelo escritor suíço Henri Amiel (1821-1881), foi incluído no Dictionnaire de l’Académie Française em 1878.

“Em psicanálise, o inconsciente é um lugar desconhecido pela consciência: uma ‘outra cena’. Na primeira tópica elaborada por Sigmund Freud, trata-se de uma instância ou um sistema (Ics) constituído por conteúdos recalcados que escapam às outras instâncias, o pré-consciente e o consciente (Pcs-Cs). Na segunda tópica, deixa de ser uma instância, passando a servir para qualificar o isso e, em grande parte, o eu e o supereu.”1

É com essa citação acima que Elizabeth Roudinesco e Michel Plon iniciam o texto relativo ao verbete “Inconsciente” em seu “Dicionário”. E vale muito destacar como imediatamente prosseguem: “A historiografia científica, desde Lancelot Whyte até Henri F. Ellenberger, tem demonstrado que Freud não foi o primeiro pensador a descobrir o inconsciente ou a inventar essa palavra para defini-la. No entanto, foi ele, sem dúvida, quem acabou por fazer dele o principal conceito de sua doutrina, conferindo-lhe uma significação muito diferente da que fora dada por seus predecessores. Com Freud, de fato, o inconsciente deixou de ser uma ‘supraconsciência’ ou um ‘subconsciente’, situado acima ou além da consciência, e se tornou realmente uma instância a que a consciência já não tem acesso, mas que se revela a ela através do sonho, dos lapsos, dos jogos de palavras, dos atos falhos etc. O inconsciente, segundo Freud, tem a particularidade de ser ao mesmo tempo interno ao sujeito (e a sua consciência) e externo a qualquer forma de dominação pelo pensamento consciente.”2

Em Freud, o surgimento objetivado da idéia de inconsciente encontra-se registrado numa das cartas de sua vasta correspondência a Wilhelm Fliess, de 6 de dezembro de 1896. Nesta correspondência ele menciona o “aparelho psíquico” e seus elementos constituintes, a saber: o consciente, o pré-consciente e o inconsciente. De certa forma, o tema plasmará toda sua obra, mas há momentos decisivos como: 1915, no artigo metapsicológico sobre “O Inconsciente”3 e 1923, em “O ego e o Id”4.

Fascinam-me a complexidade e a interminável extensão da teia de relações que compõem o avanço do pensamento humano e de sua história. São correntes de incontáveis elos, sempre, que nos levam ao que hoje temos como estabelecido e que, à vista simplista, parece sempre que foi “descoberto” ou “inventado” há não muito tempo por um “Fulano de Tal”.

Destarte, claro está que prever, antever e discutir um “inconsciente” não foi, nem é, prerrogativa da psicanálise. Antes mesmo de Freud (e em paralelo), tal dimensão já havia sido tratada por filósofos como Leibniz, Wolff, Kant, Herbart, Schopenhauer, Hartmann, Hegel, Schelling, Bergson, bem como por psicólogos e por escritores. Na segunda metade do século XIX eram frequentes, entre intelectuais, os debates sobre o inconsciente, que, a partir da Alemanha, se estenderam por Europa e Américas. Mesmo aqui entre nós brasileiros, o gênio de Machado de Assis enseja publicar, em 1885, na Gazeta de Notícias, “O Cônego, ou Metafísica do Estilo”, texto no qual incita os leitores a subirem “à cabeça do cônego”, Matias, que é solicitado a fazer um sermão para uma festa próxima. Num dado ponto, o narrador diz: “Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito.”5 Está ou não Machado falando do inconsciente?… E para não abandonar de imediato a maravilhosa literatura em língua Portuguesa, ocorre-me um cirúrgico soneto do grande poeta português Antero de Quental6:

O Inconsciente7

 

O Espectro familiar que anda comigo,

Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,

Que umas vezes encaro com desgosto

E outras muitas ansioso espreito e sigo.

 

É um espectro mudo, grave, antigo,

Que parece a conversas mal disposto…

Ante esse vulto, ascético e composto

Mil vezes abro a boca… e nada digo.

 

Só uma vez ousei interrogá-lo:

Quem és (lhe perguntei com grande abalo)

Fantasma a quem odeio e a quem amo?

 

Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos,

Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos…

Mas eu por mim não sei como me chamo…

Para Freud, a produção artística se origina no próprio inconsciente do artista, que “projeta seu mundo de fantasias interior em sua obra”8. Disse Freud na “Gradiva”:

“Talvez tenhamos produzido apenas uma caricatura de uma interpretação, atribuindo a uma inocente obra de arte propósitos desconhecidos pelo autor, e demonstrando assim, mais uma vez, como é fácil vermos em toda a parte aquilo que se procura e que está ocupando nossa mente — possibilidade da qual a história da literatura nos fornece os exemplos mais estranhos. Que o leitor decida agora se essa explicação o satisfaz. Naturalmente preferimos optar pela outra alternativa. Acreditamos que o autor não necessitava conhecer essas regras e propósitos, podendo então tê-las refutado de boa fé, mas acreditamos também que nada descobrimos em sua obra que ali não exista. Provavelmente bebemos na mesma fonte e trabalhamos com o mesmo objeto, embora cada um com seu próprio método. A concordância entre nossos resultados parece garantir que ambos trabalhamos corretamente. Nosso processo consiste na observação consciente de processos mentais anormais em outras pessoas, com o objetivo de poder deduzir e mostrar suas leis. Sem dúvida o autor procede de forma diversa. Dirige sua atenção para o inconsciente de sua própria mente, auscultando suas possíveis manifestações, e expressando-as através da arte, em vez de suprimi-las por uma crítica consciente. Desse modo, experimenta a partir de si mesmo o que aprendemos de outros: as leis a que as atividades do inconsciente devem obedecer. Mas ele não precisa expor essas leis, nem dar-se claramente conta delas; como resultado da tolerância de sua inteligência, elas se incorporam à sua criação. Descobrimos essas leis pela análise de sua obra, da mesma forma que as encontramos em casos de doenças reais. A conclusão evidente é que ambos, tanto o escritor como o médico, ou compreendemos com o mesmo erro o inconsciente, ou o compreendemos com igual acerto.”9 (Grifos meus.)

Por sua marcante presença e por sua complexidade, muitos autores têm desenvolvido trabalhos abordando a história da idéia de inconsciente10, cite-se, por exemplo: Antonio Quinet, com “A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma”; Henri F. Ellenberger, com “The Discovery of the Unconscious”; Luiz Alfredo Garcia-Roza, com “Freud e o inconsciente”.11

Dentre todos os grandes estudiosos antes apontados que se ocuparam do inconsciente, a um filósofo em particular cabe destaque, e com muita justiça: a Leibniz. Abbagnano, em seu obrigatório “Dicionário”12, assim começa o texto relativo à palavra “Inconsciente”:

“O ingresso dessa noção em filosofia deve-se a Leibniz, que frisou a importância das ‘percepções insensíveis’ ou ‘pequenas percepções’, de que não se toma ciência e sobre as quais não se reflete. Para Leibniz, são essas percepções que ‘formam o não-sei-quê, os gostos, as imagens das qualidades sensíveis, claras no conjunto mas confusas nos detalhes, as impressões que os corpos que nos rodeiam exercem sobre nós e que envolvem o infinito, os vínculos que cada ser tem com o restante do universo’ ”.13

Leibniz

Gottfried Wilhelm von Leibniz (Leipzig, 1º/julho/1646 – Hanôver, 14/ novembro/1716), um “racionalista crítico”, que adotou muitas vezes o pseudônimo Teófilo – “amigo de Deus”, é sempre multicaracterizado como um filósofo, cientista, matemático (a ele se credita a criação do termo “função”, em 1694, usando tal terminologia para descrever uma quantidade relacionada com uma curva; da mesma forma, atribui-se a ele, tanto quanto a Newton, o desenvolvimento do cálculo moderno, em particular, o desenvolvimento da Integral e da Regra do Produto), diplomata, bibliotecário. Mas o leque de seus interesses e campos para os quais efetivamente contribuiu é bem mais amplo que isso: direito (articulou matemática com direito), jurista, político (no sentido superlativo do termo), historiador, enciclopedista, inventor (máquina de calcular, por exemplo), acadêmico (“por iniciativa sua foi fundada a Academia de Ciências de Berlim”14– 1700 – da qual foi o primeiro presidente), semiólogo, etc.

Seu lema era “Theoria cum Praxi” (teoria e prática). Ao período de sua morte ele caíra em desgraça na corte de Hanôver: sobreviveu apenas dois anos à sua grande protetora naquela corte, a rainha Sofia. A corte de nem lhe organizou as honras fúnebres; o funeral teve presença apenas de seu secretário pessoal e sucessor na biblioteca de Hanôver. Seus restos foram colocados numa tumba sem nome, na qual posteriormente se inscreveu “Ossa Leibnitii” (Esqueleto de Leibniz)15.

Leibniz tem sido referido como o fundador a filosofia alemã (assim como Descartes o foi para a francesa e Ortega y Gasset para a espanhola). Foi o primeiro a observar que “as leis do pensamento” são assunto de análise combinatória. Em De Arte Combinatória (1666), propôs um modelo científico que se tornou a teoria que antecedeu da computação moderna: todo raciocínio, qualquer descoberta, verbal ou não, se reduzem a uma combinação ordenada de elementos (por exemplo, binária) tais como números, palavras, sons ou cores.

Perdeu o pai, Friedrich Leibnütz (luterano, notário e professor de moral na Universidade Leipzig), quando estava com apenas seis anos de idade. Desde cedo revela-se um grande leitor, e o será por toda a vida. Concha Roldán16, grande especialista na obra de Leibniz, assim comenta a seu respeito:

“Leitor insaciável de História, poesia e literatura, soube tirar partido da biblioteca paterna, que a mãe pôs à sua disposição quando ele tinha 8 anos, para ajudá-lo a ultrapassar o duro golpe da morte prematura do pai (1652). Pouco inclinado para os jogos próprios da sua idade, construiu o seu mundo mergulhando nos livros, de modo que aos 12 anos tinha aprendido não só a balbuciar o grego, como a ler corretamente em latim, algo que pôde demonstrar aos 13 anos quando compôs em apenas três dias um poema de trezentos versos hexâmetros latinos, que teve a oportunidade de ler em público, em 1659, em uma festa da escola na qual lhe tinham pedido para substituir outro aluno que estava doente. No seu refúgio da biblioteca paterna, aprendeu a compensar de maneira autodidata os ensinamentos que recebera na escola de São Nicolau de Leipzig (1653-1661), alternando a leitura dos clássicos com a dos padres da Igreja, que lhe serviram de fundamento tanto para a lógica aristotélica como para metafísica escolástica”17.

São muitas, mundo afora, as instituições dedicadas ao filósofo alemão, considerado um autor ubíquo na história do saber humano, bem como os especialistas que consagram suas vidas inteiras a percorrer o “palácio” ou o “labirinto” leibniziano, e mesmo depois de alguns séculos desde sua época, ele é tido como um autor de influência contemporânea pelo tanto que se antecipou a seu tempo18.

Leibniz, um humanista e renascentista que se encaixa no limiar do aparecimento da Filosofia Moderna (ainda que visto como um pensador do Barroco por Gilles Delleuze19 e, segundo Julian Marías, ele fecha tal período da filosofia20), apoia sua filosofia, dentre outros elementos, em três princípios fundamentais: o da não contradição ou de identidade (fundamenta as verdades necessárias), o da razão suficiente (fundamenta as verdades contingentes)21, e o da perfeição. Este, segundo Concha Roldán, nos é apresentado por Leibniz “mais do que como complemento, como colofão que coroa o princípio de razão na sua aplicação ontoteológica e ética, ou seja, no momento de explicar a existência do mundo e as razões que fundamentam a escolha da vontade”22, o que acaba por nos introduzir na tão debatida e polêmica idéia de estarmos no melhor dos mundos possíveis, contra o que Voltaire apontou sua sátira em “Cândido, ou o otimismo” (1759).

Leibniz desenvolve um pensamento novo, o qual considera que existem elementos que fogem à nossa consciência e conteúdos, dos quais não temos conhecimento, mas que, no entanto, estão sim na base dos nossos desejos. Ora se isso não é o inconsciente da psicanálise! Sua teoria das “pequenas percepções” ou “percepções insensíveis”, com forte fundo metafísico, fala de percepções que nos escapam à consciência, porém que, mesmo isso ocorrendo, afetam o indivíduo, o que, por óbvio, podemos ver como uma forma de antecipação do inconsciente. Saliente-se aqui que ele não foi um precursor de Freud, mas sim da teoria do inconsciente. Em “Princípios da Filosofia ou Monadologia”, no parágrafo XIV, ele afirma:

“O estado passageiro que envolve e representa uma multiplicidade na unidade ou na substância simples não é outra coisa senão o que se chama a PERCEPÇÃO, a qual deve distinguir-se da apercepção ou da consciência, como se mostrará adiante. E foi nisto que os cartesianos falharam bastante, não tendo considerado para nada as percepções que não se apercebem. Foi igualmente o que fez acreditar que só os Espíritos eram Mónadas e que não havia Almas dos Animais nem outras Enteléquias; e que os fez confundir, com o vulgo, um longo atordoamento com uma morte a rigor, o que os fez ainda cair no preconceito escolástico das almas totalmente separadas e, do mesmo modo, fortaleceu os espíritos mal formados na opinião da mortalidade das almas.” (Grifo meu.)

Portanto, a questão das pequenas percepções que vamos absorvendo de nosso entorno parece essencial para explicar essa gênese da idéia de um inconsciente. Diz Leibniz nos Novos ensaios23 – um diálogo frustrado, dirigido contra o “Ensaio acerca do Entendimento Humano” do empirista Locke:

“Para melhor julgar sobre as pequenas percepções que somos incapazes de distinguir em meio à multidão delas, costumo utilizar o exemplo do bramido do mar, que nos impressiona quando estamos na praia. Para ouvir este ruído como se costuma fazer, é necessário que ouçamos as partes que compõem esse todo, isto é, os ruídos de cada onda, embora cada um desses pequenos ruídos só se faça ouvir no conjunto confuso de todos os outros conjugados, isto é, no próprio bramir, que não se ouviria se esta onda que o produz estivesse sozinha. Com efeito, é necessário afirmar que somos afetados, por menos que seja, pelo movimento desta minúscula onda, e que temos alguma percepção de cada um dos seus ruídos, por menores que sejam; se assim não fosse, não teríamos a percepção de cem mil ondas, pois cem mil ondas nunca poderiam produzir alguma coisa. Jamais dormimos tão profundamente, que não tenhamos algum sentimento fraco e confuso; e jamais seríamos despertados pelo maior ruído do mundo, se não tivéssemos alguma percepção do seu início, que é pequeno, da mesma forma como jamais romperíamos uma corda com a maior força do mundo, se ela não começasse a ser esticada um pouco por esforços iniciais menores, ainda que esta primeira pequena distensão da corda não apareça.”24

Um bramir que não se ouviria se esta onda que o produz estivesse sozinha…

A respeito, assim comenta, em artigo de 2018, Lívia Santos:

“Para Leibniz, ao ouvir o barulho das ondas do mar quebrando na praia, por exemplo, ouvimos um todo uniforme, como se tratasse de um único estímulo; entretanto, esse barulho é resultado da junção de incontáveis mônadas, cuja percepção individual escapa à nossa consciência: cada uma delas são pequenas percepções que, para se tornarem conscientes, precisam ter uma intensidade mínima (provocada pela junção de diversas delas) e ser foco da atenção (…). Entretanto, ainda que não se tornem conscientes, as pequenas percepções afetam o indivíduo e produzem inquietações. (…) Ou seja, o desejo e o prazer são constituídos por uma série de pequenas percepções das quais não temos consciência, mas que nos movem em determinada direção.”25

A zona de clareza que se tem sobre o mundo, neste caso ouvindo o barulho do mar, é o produto de percepções pequenas demais para que estejamos conscientes delas. Simplificando as coisas, o que temos são duas ondas cuja diferença entre elas, quando relacionadas ou combinadas, desaparece e produz uma percepção consciente, que nós ouvimos.

De acordo com Richard Franks e George Ross (quando vêm tratando das opiniões diferentes entre Leibniz e Descartes, no tangente à natureza e ação da alma humana, aquele mais alinhado à teoria escolástica-aristotélica de que a alma não é mais do que a forma do corpo, este ajustado à teoria platônica e agostiniana de que a alma e o corpo são substâncias inteiramente separadas):

Embora a maior parte de nossas percepções esteja, como antes das outras mônadas, abaixo do limiar da consciência, em certos momentos algumas de nossas percepções são suficientemente claras e distintas para suscitar a consciência – um estado em que não só percebemos, mas estamos cientes de nós mesmos como percipientes. De modo similar, nossos desejos e ambições não são meramente comportamentos inconscientes dirigidos a fins, mas se estabelecem no contexto de autoaperfeiçoamento, racionalidade e livre escolha.26

Mônada é palavra que se origina do grego antigo e quer dizer unidade. Trata-se da estrutura metafisica do mundo, segundo Leibniz. Elas são as substâncias simples, sem partes, que entram na formação dos compostos. São os elementos das coisas; não têm “janelas”, portanto não há nada que possa se desprender de uma e passar para outra e influir nela. Elas têm qualidades e são distintas entre si e mudam de modo contínuo, mas essa mudança não é extrínseca e sim a manifestação de suas possibilidades internas.27

As mônadas têm percepções, que nem sempre são iguais: podem ser claras ou obscuras, distintas ou confusas. Já as coisas têm percepções insensíveis, sem consciência, e o homem também, em graus distintos. Uma sensação é uma idéia confusa. “Quando as percepções têm claridade consciência e vêm acompanhadas da memória, são apercepções, e estas são próprias de almas. Entre as almas há uma hierarquia, e as humanas chegam a conhecer verdades universais e necessárias; então se pode falar de razão, e a alma é espírito. No alto da hierarquia das mônadas está Deus, que é ato puro.”28

O fato é que, conforme Leibniz, a percepção é estado passageiro, sendo o espírito geralmente passivo, embora não deixe de perceber o que percebe. Já o pensamento seria explicado por uma operação do espírito sobre suas próprias idéias, focando nelas um dado grau voluntário de atenção. Portanto, possuímos “pequenas percepções”, das quais não temos consciência, que existem a todo o momento, porém sem a “apercepção”, vale dizer, em seus termos, percepção consciente através da reflexão. Ora, esse território só pode ser o de um inconsciente, atrevo-me. Esse tipo de não inclusão de tais percepções menores ao processo aperceptivo se daria por conta de serem insignificantes, ainda que de modo não nítido. Leibniz imagina uma continuidade (o mesmo que para as transformações da natureza – a lei da continuidade: a natureza não dá saltos, “Deus nada faz fora da ordem”), de sorte que, “gradualmente”, iríamos das menores percepções até as maiores e vice-versa. Enfim, o resultado, a apercepção de um conteúdo, dependeria de sua força em conquistar a nossa atenção (vir para o consciente… e para isso precisamos de “forças” e trabalho…). Todavia, ressalve-se ainda, ele entende que as ditas pequenas percepções são infinitamente maiores em quantidade – e bem mais eficazes – do que se pode pensar, sendo necessárias para a apercepção.

Vídeos indicados:

  • Javier Echeverría – La figura histórica de Gottfried Leibniz

Echeverría é filósofo e matemático, especialista em Leibniz, membro da Sociedad Española Leibniz. Ver: https://es.wikipedia.org/wiki/Javier_Echeverr%C3%ADa

Sites indicados:

  • Leibniz Brasil

https://leibnizbrasil.pro.br/

  • Sociedad Española Leibniz

http://www.leibnizsociedad.org/

Notas e Referências

[1] Elizabeth Roudinesco, Michel Plon. Dicionário Psicanálise. [Tradução: Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Supervisão: Marco Antonio Coutinho Jorge] Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Verbete “Inconsciente”, p. 374-8.

[2] Idem. p. 375.

[3] Sigmund Freud. “O Inconsciente”. (1915) In: A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Edição Standard Brasileira, Vol. XIV, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974.

[4] Sigmund Freud. “O ego e o Id”. (1923) In: O ego e o ID e outros trabalhos. Edição Standard Brasileira, Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974.

[5] Machado de Assis. “O Cônego ou Metafísica do Estilo”. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível no “Domínio Público”: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000272.pdf. Acessado em 26/março/2020.

[6] Antero Tarquínio de Quental (1842, Açores 1842 – 1891), poeta que se dedicou também à filosofia e à política. Fundou a Sociedade do Raio, em Coimbra, com o intento de renovar o país pela literatura. Publicou os primeiros sonetos em 1861. Em 1866, Lisboa, viveu como operário, trabalhando no ofício de tipógrafo. Em 1868, criou o Cenáculo, do qual participaram, dentre outros, Eça de Queirós, Abílio de Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão. Foi um dos fundadores do “Partido Socialista Português”. Deu início, com Oliveira Martins, ao jornal “A República – Jornal da Democracia Portuguesa” e depois, na “Associação Internacional dos Trabalhadores” (AIT), apresentou idéias anarquistas. Com José Fontana, em 1872, edita a revista “O Pensamento Social”. Em 1879, muda-se para o Porto e, em 1886, publica a que é considerada pelos críticos como sua melhor obra poética, “Sonetos Completos”, de cunho autobiográfico e simbolista. Na altura de 1891, com distúrbio bipolar, padecia de depressão permanente. Suicidou-se, em 11 de setembro, com dois tiros, num banco de jardim junto ao Convento de Nossa Senhora da Esperança (Campo de São Francisco), onde na parede pode-se ler a palavra “Esperança”. Fernando Pessoa, em carta a Bentley, assim o saudou: “Properly speaking there has been on Portuguese literature before Antero de Quental; before that there has been either a preparation for a future literature, or foreign literature written in the Portuguese language.” [Fernando Pessoa. Carta a William Bentley, 1915.in “Correspondência 1905-1922”, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 197.]

[7] Antero de Quental, in: “Sonetos de Antero” (1861). Ver: Antero de Quental. Os Sonetos Completos. 1ªed. Porto: Porto Editora, 2016. 176 p.

https://www.portoeditora.pt/produtos/ficha/os-sonetos-completos/16489689

[8] JEAN-Michel Quinodoz. Ler Freud – Guia de leitura da obra de S. Freud. [Tradução: Fátima Murad.] Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 92.

[9] Sigmund Freud. “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen.” (1906) In: “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos. Edição Standard Brasileira, Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974. p. 83.

[10] Cesar Rey Xavier. A História do Inconsciente ou a Inconsciência de uma História? Revista da Abordagem Gestáltica, v. XVI, n. 1: 54-63, 2010.

Hélio Honda. Notas Sobre a Noção de Inconsciente em Wundt e Leibniz. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 20, n. 3: 275-277, 2004.

Lívia Gomes Santos. O inconsciente além da Psicanálise. Multitemas, Campo Grande/MS, v. 23, n. 54: 243-264, 2018.

[11] Referências:

  • Antonio Quinet. A descoberta do inconsciente – do desejo ao sintoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. 164 p.

https://zahar.com.br/livro/descoberta-do-inconsciente

  • Henri F. Ellenberger. The Discovery of the Unconscious: The History and Evolution of Dynamic Psychiatry. New York: Basic Books (AZ), 1970. 976 p.

https://www.basicbooks.com/titles/henri-f-ellenberger/the-discovery-of-the-unconscious/9780465016730/

  • Luiz Alfredo Garcia-Roza. Freud e o inconsciente. 24ª.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 236 p.

https://zahar.com.br/livro/freud-e-o-inconsciente

[12] Nicola Abbagnano. Dicionário de filosofia. [Tradução da 1ª. ed. brasileira coordenada e revisada por Alfredo Bocci, revisão Ivone Castilho Benedetti.] 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes 2007.

[13] Idem. p. 550.

[14] Julián Marias. História da filosofia. [Tradução Cláudia Berliner. Revisão técnica: Franklin Leopoldo e Silva.] São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 257.

[15] Gottfried Wilhelm Leibniz. Discurso de metafísica. Monadología. Escritos. Estudo introdutório Javier Echeverría. (Serie Biblioteca de Grandes Pensadores.) Madrid: Editorial Gredos, 2011. p. 38.

[16] Concha Roldán Panadero (Madrid, 14 de septiembre de 1958) apresentou a seguinte tese à Universidade Complutense de Madrid, em 1987: Contingencia y necesidad en Leibniz. El problema de la libertad. Fundou, em 1989, juntamente com Quintín Racionero, a Sociedade Espanhola Leibniz para estudos do Barroco e da Ilustração. Tem vários textos e livros publicados a respeito de Leibniz.

[17] Concha Roldán. Leibniz –No melhor dos mundos possíveis. [Tradução: Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 14-15.

[18] Ver: “Atualidade do pensamento de Leibniz: antecipar-se ao seu tempo”. In: Concha Roldán. Leibniz –No melhor dos mundos possíveis. [Tradução: Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 123-6.

[19] Gilles Delleuze. A Dobra – Leibniz e o Barroco. 6ª ed. Campinas/SP: Papirus, 2012. 240 p.

[20] Julián Marias. História da filosofia. [Tradução Cláudia Berliner. Revisão técnica: Franklin Leopoldo e Silva.] São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 258.

[21] Em Leibniz, Princípios de Filosofia ou Monadologia, parágrafos 31 e 32:

31 — Os nossos raciocínios estão fundados em DOIS GRANDES PRINCÍPIOS, O DA CONTRADIÇÃO em virtude do qual julgamos FALSO o que implica contradição e VERDADEIRO o que é oposto ou contraditório com o falso. (Teod., §s. 44 e 169).

32 — E O DA RAZÃO SUFICIENTE, em virtude do qual consideramos que nenhum facto poderia ser verdadeiro ou existente, nenhuma Enunciação verídica sem que haja uma razão suficiente para que isso assim seja e não de outro modo, ainda que estas razões as mais das vezes não possam ser conhecidas por nós. (Teod., §s. 44 e 196).

[22] Concha Roldán. Leibniz –No melhor dos mundos possíveis. [Tradução: Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 70.

[23] Quanto às obras de Leibniz, explica Julian Marías: “(…) escreveu inúmeros livros de matemática, física, história e, sobretudo, filosofia. Quase todas as suas obras estão escritas em francês ou em latim e apenas poucas e secundárias, em alemão. Esta língua ainda não tinha cultura filosófica, e só a adquiriu nas mãos de Wolff, discípulo de Leibniz.” “As principais obras filosóficas de Leibniz são: dois livros extensos, os Nouveaux essais sur l’entendement human e a Théodicée (o primeiro dirigido contra o Essay concerning human understanding do filósofo inglês Locke, não foi publicado em vida de Leibniz, porque Locke morreu enquanto era preparada sua publicação; a Teodicéia discute o problema da justificação de Deus, ou seja, o de sua bondade e onipotência em relação com o mal e com a liberdade humana (…).” Ver: Julián Marias. História da filosofia. [Tradução Cláudia Berliner. Revisão técnica: Franklin Leopoldo e Silva.] São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 258.

[24] Gottfried Wilhelm Leibniz. Novos ensaios sobre o entendimento humano. (1765.) [Tadução: Luiz João Baraúna.] Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. p. 27.

[25] Lívia Gomes Santos. O inconsciente além da Psicanálise. Multitemas, Campo Grande/MS, v. 23, n. 54: 243-264, 2018. Disponível em: https://www.multitemas.ucdb.br/multitemas/article/view/1738. Acessado em 25/março/2020.

[26] Richard Franks, George MacDonald Ross. “Spinoza e Leibniz”. In: Nicholas Bunnin, E. P. Tsui-James (org.) Compêndio de Filosofia. 2ª. ed. [Tradução: Luiz Paulo Rouanet.] São Paulo: Edições Loyola, 2007. p. 718.

[27] Julián Marias. História da filosofia. [Tradução Cláudia Berliner. Revisão técnica: Franklin Leopoldo e Silva.] São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 260-1.

[28] Idem. p. 264.