Literatura e Psi: o Verbo, a Profecia e suas relações psíquicas

Ulisses Caballi Filho

“somos o que fazemos do tempo ou somos o que o tempo nos faz?” (M.D. 1941-2008)

“Seria mais fácil aprender japonês em braile” do que escolher uma obra literária para abrir esta seção! Apropriei-me das palavras do poeta e musico Djavan na tentativa de deixar uma fenda para a futura seção em nosso Portal Música e Psi.

Por hora, este dispositivo tem objetivo de partir da compreensão singular para o entendimento coletivo da alma humana. Temos um vasto legado ocidental de grandes autores que fizeram isso de forma arrebatadora. Podemos citar, Freud, Cervantes, Mann, Orwell, entre outros, todos com total relevância poética.

É certo que minhas habilidades estão muito longínquas das dos ídolos mencionados, mas continuo minha saga na tentativa de conhecer mais sobre o imaginário, que nos cerceia por meio da escrita e suas possíveis interpretações. E, para quem gosta de listas e tarefas, como alvo de sarcasmo e provocação ao meu lado obsessivo, hoje em dia, já “controlado” deixarei as indicações de leitura ao final da seção.

“da a imaginação o que é da imaginação: a liberdade das palavras de obedecer paixões” desejo e associação livre… (M.D. Pag. 98)

Sem mais elucubrações, recentemente me deparei com dois autores de origens distintas, lá do outro lado do globo: um marroquino e outro palestino. O que teriam eles em comum com a Psi?

No ensaio de não ser repetitivo e de cair na tentação do comum e habitual – sempre mais do mesmo – para usar meus escritores preferidos, como Fiódor Dostoiévski, Jostein Gaarden, Marcel Proust, James Joyce, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa e Castro Alves, imaginei que algum desses dois autores, que li recentemente, seria mais inovador do que os demais nomeados, que provavelmente estão em várias estantes.

Entre os dois escritores, cujos nomes ainda não mencionei e dos quais apenas deixei dicas com as duas citações acima, optei pelo palestino para inaugurar esta jornada entre Literatura e Psi, principalmente pela essência do título de sua obra.

Em minha opinião, há uma força motriz da Psi, inimaginável. Veja o livro abaixo:

Da presença Da ausência[1], primeira obra de Mahmud Darwich lançada em terras tupiniquins. Seria uma mera semelhança com o jogo narrado por Freud em 1920, quando observou seu neto pronunciar as palavras fort e da, ao brincar com um carretel lançado para longe e puxado para perto.

Em minha interpretação, uso fort como representação da ausência e da para marcar a presença. Agora é a sua vez! Vamos brincar! O que você entende sobre presença e ausência?   

Suponho que você tenha feito isso: brincar, mesmo que simbolicamente, com as palavras que dão título ao livro. O simples ato desse exercício simbólico pode ser considerado saudável, principalmente nos dias de lutas que vivemos, ou em que tentamos sobreviver a bombardeios de todas as esferas, sejam digitais ou tradicionais.

Com mais esse tema para minha wishlist de indagações, volto à tela do computador para continuar a escrita e penso: quem é o autor?

Uso a orelha do livro para descrever o autor:

Nasceu na aldeia de Al-Birwe, Galileia, Palestina, em 13 de março de 1941. Foi, e ainda é, mesmo depois de sua morte em 2008, o poeta nacional da Palestina. Poeta da solidão, do exílio, da interioridade, da transcendência, mas também da resistência.

Existe algo mais Psi do que esta última frase destacada? Em minha opinião não há ato mais psicanalítico do que escrever poemas… Quem nunca usou essa ferramenta para ressignificar algo?

Mais uma vez, não pretendo ser redundante nesta fala, mas é a mais pura verdade quando leio a seguinte estrofe:

“O discurso do pai é falido diante do filho herói, um pai que vencido pelo filho”, poema VII pág. 67

A relação entre pai e filho é um dos pilares fundamentais da psicanálise, e Freud bebeu de fontes da mitologia grega, que fincou seu conceito do Complexo de Édipo. Tentarei acoplar a citação acima, com um recorte feito por Freud em 1912, no artigo “Sobre a Psicologia do Colegial”, onde ele descreve:

“A necessidade orgânica introduziu nessa relação uma ambivalência afetiva que encontramos expressa do modo mais comovente no mito grego de Édipo. O garoto pequeno tem de amar e admirar seu pai, que lhe parece o mais forte, o melhor e mais sábio dos seres; o próprio Deus é uma elevação dessa imagem do pai, tal como ela se apresenta na psique infantil. Mas logo aparece o outro lado desse relacionamento afetivo. O pai é também percebido como o poderoso perturbador da vida instintual, torna-se o modelo que não apenas se quer imitar, mas também liquidar, a fim de lhe tomar o lugar. O impulso afetuoso e o hostil em relação ao pai persistem lado a lado, muitas vezes por toda a vida, sem que um elimine o outro. Nessa coexistência de opostos se acha o caráter disso que denominamos ambivalência emocional. Na segunda metade da infância vem a ocorrer uma mudança nessa relação com o pai, mudança cuja magnitude é difícil imaginar. O garoto começa a lançar o olhar além de sua casa, para o mundo real lá fora, e inevitavelmente faz descobertas que solapam sua elevada estima original do pai e promovem seu desprendimento desse primeiro ideal. Vê que o pai não é o homem mais poderoso, mais sábio, mais rico etc., fica insatisfeito com ele, aprende a criticá-lo e a classificá-lo socialmente, e o faz pagar caro, geralmente, a decepção que ele lhe causou. Tudo de promissor, mas também tudo de chocante que caracteriza a nova geração, tem por condição esse desprender-se do pai. (FREUD, 1912/14, Totem e Tabu, cia das Letras).

Na citação de Marwich, o filho superou o discurso do pai, assim como fez Édipo, que, ao ser confrontado por uma comitiva de um velho homem, foi provocado pelos soldados de seu até então desconhecido pai, Laio. Mal poderia imaginar que a profecia do Oráculo de Delfos estava prestes a se concretizar, ali, diante de sua ira. Édipo, enfurecido pela jovialidade, revidou o ataque dos soldados e do velho “desconhecido”. Nessa contenda, apenas um soldado saiu ileso, ele teria outra função importante na trama futuramente. E, mais uma vez, os deuses debocharam dos planos de Édipo, que fugiu de casa por temor de matar seu pai e desposar sua mãe. A lição registrada foi que, apesar de tentar esquivar-se do destino, ele já estava cravado. As linhas escritas por Sófocles, de forma contundente, fizeram da obra “Édipo, o Rei”, um clássico grego de parricídio. Eis um bom motivo para recorrer ao título de Darwich e indagar: “Da Presença da Ausência” se constituiu a relação parricida entre Édipo, o filho (presente), e Laio, o pai (ausente).

Joseph Blanc, 1867 – O assassinato do rei Laio por Édipo[2]

Avançando na leitura ainda no mesmo capítulo, deparo-me com esta provocação à sociedade “pré-moderna/liberal”:

o vitupério é a virilidade da língua que tem força para segurar touros pelos chifres sempre que o rouxinol parar de cantar, sempre que o cavalo não-sangue-puro ceder à tentação de ser burro. o vitupério é a derrota do cavalheirismo que compensa a incapacidade de fingir vitória por magnificar a eloquência à perda do trono. Mas o vitupério intoxica o público raivoso e tortura o vencedor com o zumbido do enxame de crianças que o perseguem com terror e fúria. o vitupério priva ao vencedor de coroar a vitória com êxtase. Capítulo VII.

O discurso psicanalítico é fruto de grandes revoluções, e este é o melhor momento para rever nossas prioridades e reivindicar o papel de escuta e fala em prol da manutenção da espécie.

Como:

Disseste: essa estrada é nossa estrada no discurso do amanhã. Disse: nossa jornada começou. Pág. 88

Nasceria aqui uma nova abordagem a fim de superar os velhos saberes impostos por nossa História, repleta de pensamentos claudicantes e obsoletos?

Ninguém sabe como este enredo acabará ao fim de nossa presença; apenas inúmeras perguntas ainda estarão por vir após a nossa ausência. Triste e verdadeira melancolia do valor do amanhã…

Logo:

Muito tempo se passou entre a entrada e a saída, o que te dá vez se despedir do exílio com verdadeira melancolia. (Pág 139 cap XVI).

Darwich transformou a poesia em grandes enredos. O livro Da Presença da Ausência é essencial para a compreensão das funções psíquicas e pode contribuir em muitos ensinamentos sobre a vida.

Saudade é dor que não sente saudade da dor, é dor que o ar fresco causa vindo de morros distantes, dor da busca da alegria perdida. Mas é uma dor saudável, pois ela nos lembra que sofremos de esperança… por paixões! (Pág 129 poema 14).

(Mahmud Darwich – 1941-2008)[3]

Caro leitor, se você ficou curioso para conhecer o autor marroquino, aguarde o próximo artigo. Mas antes de finalizar este enredo repleto de conjecturas, vamos incluir mais um recorte da obra de Marwich:

Se eu fosse você e você fosse eu, amigo,

então a gente adia nosso encontro para mitos.

Por qual caminho (segu)ir?


[1] Editora Tabla.

[2] https://pt.wikipedia.org/wiki/Laio#/media/Ficheiro:Joseph_Blanc_Le_meurtre_de_La%C3%AFus.JPG

[3] https://es.wikipedia.org/wiki/Mahmud_Darwish