O COMBINO E A LEALDADE
fausto antonio de azevedo
Para Let
Teria não mais do que cinco anos. Vivia conosco desde que nascera. Eu e ela éramos amigos, parceiros, companheiros: avô e neta! Desde aquele tempo já demonstrava personalidade forte, uma decisão sempre inabalável de estar mais certa do que todos os demais. Isso era verdadeiramente uma benção e uma graça. Por certo que o avô – falante irritante, ao modo burrinho do filme Shrek (2001) – tinha seu arsenal de jogos e manias que a deixavam brava. Naquele dia, combináramos um pacto (na linguagem dela um combino) e eu lhe prometi solenemente que seria fiel, seria completamente leal ao combino e à minha palavra. No entanto, chegado o momento de pôr em teste a tal lealdade, não resisti e fiz o que garantira não fazer… Ela, com um rostinho fechado entre a braveza e a desilusão, olhando-me de baixo para cima, dedo em riste, protestou, dizendo: “Meu avô, este não era o nosso combino!”. Foi só então que, primeiro aprendi a palavra combino e, segundo, percebi o quanto podemos magoar ao frustrar uma garotinha não honrando aquilo que, por iniciativa própria e numa escolha totalmente livre, havia eu prometido.
Hoje, transcorridos vinte e cinco anos desde a gênese do tal combino, a netinha é uma linda e completa mulher, que reside no querido Portugal, onde lida com assuntos dessa inesgotável e complexa área da informática.
Já o avô, cada vez mais retirado em sua biblioteca, a pensar as coisas da vida, decidiu rever a questão da lealdade como um dever para com a neta.
A palavra lealdade forma-se a partir de raízes latinas e significa qualidade de ser respeitoso à lei. Seus constituintes léxicos são: lex, legis, mais alis,que equivale a relativo a, mais o sufixo dade, que reporta a uma qualidade. (Conforme o DECEL – Diccionário Etimológico Castellano: https://etimologias.dechile.net/?). No Caldas Aulete eletrônico (https://www.aulete.com.br/lealdade) aprende-se que lealdade é: 1. Qualidade do que é leal. 2. Procedimento conforme às leis da honra e do dever. 3. Fidelidade aos compromissos assumidos. O mesmo Dicionário nos dá o seguinte quadro para a teia de relacionamentos da palavra:
Consoante o Dicionário de Filos0fia, de Nicola Abbagnano, (p. 601 – Editora Martins Fontes, 2007) lealdade é “Dedicação voluntária, prática e completa de uma pessoa a uma causa. Foi assim que J. Royce* a definiu em seu livro Filosofia da Lealdade (1908), assumindo-a como princípio geral da ética. A Lealdade inclui solidariedade para com os outros indivíduos, ou melhor, para com a comunidade de indivíduos, e contém o critério para julgar o valor das causas, visto que permite reconhecer como inaceitável uma causa que impossibilite ou negue a Lealdade alheia. Portanto, segundo Royce, a Lealdade à Lealdade é o critério da vida moral.” (*Josiah Royce, 20/novembro/1855 a 14/setembro/1916, foi um pragmático e filósofo idealista, que fundou o idealismo americano. Suas bandeiras incluíam a união entre pragmatismo e idealismo, sua filosofia de lealdade e sua defesa do absolutismo.)
Muito bem. Então, ser leal é ser respeitoso às leis morais, sociais, aos pactos voluntariamente assumidos, às intenções firmadas, aos projetos negociados, às esperanças anunciadas. É fácil de se notar, assim, a conexão que existe entre lealdade e fidelidade, embora esta palavra não tenha figurado no quadro acima. Se sou leal a uma promessa, sou fiel a ela. Não posso ser leal e, ao mesmo tempo, não ser fiel ao prometido. E fiel, fidelidade, estão juntas, por sua vez, à palavra fé. Esta também procede do latim, fides, com o sentido de lealdade. Fides se acompanha em latim, e por extensão no português, de uma larga família léxica com as seguintes palavras, dentre outras: fidelidade, fiel, confiar, confiança, confidência, confidente, desconfiar, infiel, infidelidade, fiar, fiado e perfídia, a qual é a quebra da lealdade, a traição (https://etimologias.dechile.net/?fe).
Lealdade, fidelidade, fé, são valores maiores, morais, constitutivos de uma cidadania sadia e de uma sociedade voltada para o respeito e o bem, bem de todos. Numa recente conversa que pude ter com onze jovens de mais uma edição do curso Escola de Jovens por um Mundo Unido, versão 2024 (ver site https://focolares.org.br/jovens-por-um-mundo-unido/ e matéria em https://cyelus.com.br/category/noticias/), abordei com eles a questão de valores e, para tanto, procurei me alicerçar em nada menos do que “os Dez Mandamentos Bíblicos”, como referência inquestionável para a delimitação balizadora da conversa. Adoto aquilo que se aprende em Êxodo 20 (1-26) e em Minha Bíblia Católica, no endereço da internet: https://bibliotecacatolica.com.br/blog/catequese/10-mandamentos/.
Os Dez Mandamentos (ou Decálogo) se dividem em três categorias: Honrar a Deus, Respeitar os pais e a família, Respeitar os outros. Os três primeiros mandamentos dizem respeito ao amor a Deus, e os sete demais, ao amor ao próximo. Com os três primeiros mandamentos é que me balizarei para falar de lealdade.
Como conhece o leitor, no Primeiro Mandamento, entendido por Jesus Cristo como o mais importante deles (Mateus 22:37), somos todos exortados a AMAR A DEUS SOBRE TODAS AS COISAS. Dele, além da escolha absoluta e inconfundível por Deus, pode-se derivar também como valor maior o amor, amor incondicional, à obra de Deus, suas criações, e, daí, o amor ao próximo, a compreensão e o respeito à alteridade. Um amor desse quilate necessariamente desagua em laços de lealdade. Como nos explicou Dom Manoel Delson, Arcebispo Metropolitano da Paraíba, em “O maior Mandamento” (https://www.cnbb.org.br/o-maior-mandamento-2/): “Amar a Deus sobre todas as coisas”, com toda a força, capacidade, entendimento e sabedoria. Esse é o maior, o primeiro mandamento. E nós sabemos que amar a Deus é, de fato, o maior deles. Mas esse mandamento desdobra-se num outro, que é o segundo: o amor ao próximo. E Jesus diz então: ‘o segundo é semelhante a este’. ‘Amai-vos uns aos outros como a si mesmo’ ”. Amar, aqui, é ter fé e lealdade para com o outro.
O Segundo Mandamento nos alerta a “Não tomar seu santo nome em vão”. Vejo nisto uma lealdade à reserva da correta e necessária sacralização. Ou seja, o valor maior e absoluto do elemento Sagrado. E disto deve decorrer a sacralização de valores referenciais para nossa vida no mundo (a então chamada vida mundana, ou seja, que está, que se dá neste mundo).
O oposto disso, em caso de não haver a devida formação de valores sacros e seu cultivo, será a banalização de um VALOR MAIOR por repetição, perda de conteúdo de seu significado, modismo, medo, incompreensão etc., será o esvaziamento do mesmo de sua transcendência e impacto. Vale lembrar que também um ato do mal pode vir a ser banalizado, por repetição do mesmo ao ponto de total depuração de seu significado maléfico, cruel e desonroso: veja-se, no tema, a obra de Hanah Arendt, Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal. (Cia. das Letras, 1999).
A reunião dos dois primeiros mandamentos leva-nos a uma reflexão maior a respeito do significado de Deus como nosso Criador e Pai. Eis a imagem a ser admirada e eleita como modelo pessoal. E nunca será uma imagem faltante, posto que, desde sempre, Ele esteve/está/estará presente junto a nós.
Se no texto bíblico trata-se de um Pai que nos traz a ordem e a lei, sem as quais nunca poderemos aspirar a um ideal de sociedade justa e feliz, na nossa relação pessoal, eclesial, com Ele ganhamos a possibilidade de uma vida em plenitude, mentalmente sã, sem as graves consequências psíquicas que, na vida mundana, acarretam a ausência e/ou o desamor do pai ou da figura paterna pelo filho. Vale transcrever, por algum grau de conexão, o que dizem Roudinesco e Plon em seu Dicionário:
“Tal como Sigmund Freud, Lacan foi acossado pela questão da paternidade. Em 1938, em seu artigo magistral sobre a família, mostrou que a psicanálise nascera, em Viena, de um sentimento de declínio da imago paterna e da vontade freudiana de revalorizá-la. Lacan adotou o mesmo modelo de reformulação simbólica da paternidade, embora integrando as teses kleinianas referentes às relações arcaicas com a mãe.
Foi em 1953, num comentário do caso do Homem dos Ratos (Ernst Lanzer), que surgiu pela primeira vez em sua pena o sintagma do nome do pai (sem hífens). Apoiando-se num livro de Claude Lévi-Strauss, As estruturas elementares do parentesco, publicado em 1949, Lacan mostrou que o Édipo freudiano podia ser pensado como uma passagem da natureza para a cultura. Segundo essa perspectiva, o pai exerce uma função essencialmente simbólica: ele nomeia, dá seu nome, e, através desse ato, encarna a lei. Por conseguinte, se a sociedade humana, como sublinha Lacan, é dominada pelo primado da linguagem, isso quer dizer que a função paterna não é outra coisa senão o exercício de uma nomeação que permite à criança adquirir sua identidade.
Lacan passou então a definir essa função como ‘função do pai’, depois, ‘função do pai simbólico’ e, ainda mais tarde, ‘metáfora paterna’, o que o levou a interpretar o complexo de Édipo não mais em referência a um modelo de patriarcado ou matriarcado, mas em função de um sistema de parentesco. Em 1956, quando de seu seminário sobre as psicoses e seu comentário sobre a paranóia de Daniel Paul Schreber, ele conceituou a função em si, grafando-a como Nome-do-Pai. O conceito foi então associado ao de foraclusão*. Evocando a natureza da relação de Daniel Paul Schreber com o pai, Lacan fez da psicose do filho uma ‘foraclusão do nome-do-pai’. Mais tarde, estendeu esse protótipo à própria estrutura da psicose.
Mediante essa interpretação inteiramente inédita do caso, Lacan foi o primeiro dos comentadores de Freud a teorizar o vínculo existente entre o sistema educacional de um pai e o delírio de um filho. É possível que essa idéia lhe tenha ocorrido a partir da lembrança da relação entre seu pai (Alfred) e seu avô (Émile), dramaticamente vivida por ele.
Nessa perspectiva e no âmbito da teoria lacaniana do significante, a transição edipiana da natureza para a cultura efetua-se da seguinte maneira: sendo a encarnação do significante, por chamar o filho por seu nome, o pai intervém junto a este como privador da mãe, dando origem ao ideal do eu na criança. No caso da psicose, essa estruturação não se dá. Sendo então foracluído o significante do Nome-do-Pai, ele retorna no real sob a forma de um delírio contra Deus, encarnação de todas as imagens malditas da paternidade.”
(Elisabeth Roudinesco, Michel Plon, Dicionário de psicanálise. Zahar, 1998. p. 541.) (Grifos meus.)
* Conceito de Lacan que designa um mecanismo específico da psicose, pelo qual se produz a rejeição de um significante fundamental para fora do universo simbólico do sujeito. Quando essa rejeição se dá, o significante é foracluído. Não é integrado no inconsciente, como no recalque, e retorna sob forma alucinatória no real do sujeito.
No Terceiro Mandamento, Guardar os domingos e festas de guarda, os dias de guarda ou de preceito, ressalta clara a idéia do valor da tradição e do respeito à tradição, respeito sob a forma de lealdade. Decorre, portanto, a boa prática dos hábitos e cerimônias. É por meio de nossas tradições e de suas práticas rituais que descobriremos nossas origens: familiares, regionais, nacionais e de fé; que herdaremos saberes; apreenderemos nosso patrimônio cultural; sentiremos nosso pertencimento, nosso orgulho virtuoso e tanto mais. E, sobretudo, aqui também está em cena o explícito exercício da linguagem.
Se a sociedade humana, como dito antes de acordo com Lacan, “é dominada pelo primado da linguagem, isso quer dizer que a função paterna não é outra coisa senão o exercício de uma nomeação que permite à criança adquirir sua identidade”, será com o cultivo das vivas tradições dessa sociedade, sua oralidade, sua, teatralidade, sua musicalidade, todas essas outras formas de linguagem, que a identidade de cada um de nós, então, se expandirá e brilhará no cenário da existência, dando-lhe valor e sentido. Por aí seremos leais aos nossos desígnios e ao mistério transcendental que transportamos em nós.
A propósito, e para sublinhar o fato, vou ao Evangelho de Mateus 13, 44, no qual se lê: “O Reino dos céus é como um tesouro escondido num campo. Certo homem, tendo-o encontrado, escondeu-o de novo e, então, cheio de alegria, foi, vendeu tudo o que tinha e comprou aquele campo.” Como bem demonstra o Padre Wander de Jesus Maia, sacerdote da diocese de Santo Amaro, em seu vídeo “O Tesouro da Tradição” (https://www.youtube.com/watch?v=K_-MsoU_5ow), pode-se entender que as tradições de um povo, de uma crença, e, eu diria, mesmo de uma família, são e possuem tesouros incomparáveis, que merecem até que nós os guardemos e voltemos para comprá-los e assim sucessivamente, tal a dimensão que assumem de pertinência e identidade e verdade. Noutras palavras, tais tesouros merecem de nós a mais pura e legítima lealdade, uma vez que eles são fontes de nossas histórias, nossas conquistas e nossa dignidade. Isso havendo, são grandes nossas chances de saúde social e saúde mental.
Freud, em Análise terminável e interminável (1937 – Obras psicológicas completas de Freud, volume 23, Editora Imago, 1996, p. 258), refletindo a respeito das muitas características da análise, fala em “lealdade catexial”, que é a lealdade do bebê, de acordo com os mandatos parentais, em relação a seus investimentos nos objetos primários. Assim, um lugar de honra para nossa catexia (catexia ou investimento, do alemão Besetzung, palavra que Freud colheu da linguagem de militares, relativa a uma mobilização da energia pulsional e que pretende associá-la a uma representação, a um grupo de representações, a um objeto ou a partes do corpo), passível de ser promovido pela análise em certo tipo de pacientes, não é outro senão a imagem/idéia/representação do Pai/do pai, de seu nome e sobrenome (o que nos define e constitui pessoal e socialmente), e das tradições familiares e sociais, que, fixados lealmente os nome e sobrenome do pai e da família, nos permitirão lugar e propósito na existência.
oooOOooo
Essas notas representam, enfim, uma da tentativa de, décadas depois, eu me desculpar com minha neta, na esperança – e que ela possa, agora adulta, entender as armadilhas e as seduções que o gosto pela pilhéria pode nos trazer – de sua boa vontade para comigo. Obviamente que, como diria um outro neto, ainda com seus oito anos “Não é justo vovô!” E eu enfatizo: não, não é justo, mas é tão mesquinhamente prazeroso… Seja como for, serviu para alguma reflexão mais profunda; para algum ensimesmamento na memória da saudade e na saudade das lembranças com você, minha neta!
E já me deixo a rememorar outra ocorrência, da qual também lhe devo uma explicação, que é responder à sua pergunta de “como é que o tucano tuca?” Alguém sabe?
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