
O irrespondível
fausto antonio de azevedo
Manhã fria em plena cidade de Salvador. Uma garoazinha à paulistana. Dia de domingo; ninguém nas praias, as ruas vazias… A netinha de cinco para seis anos gostaria de ir ao Zoológico, um passeio muito apreciado por ela naqueles tempos. Por alguma circunstância do dia, apenas este avô a levou. O Zoo estava bonito e organizado, requalificado que fora por um dedicado Diretor amigo nosso. Seguimos o roteiro habitual. A dada altura, a garoa apertou e paramos para nos proteger bem à frente do amplo espaço das aves, com óbvio destaque para as araras e tucanos. O tucano era um animal que encantava a netinha. Ela ao colo do avô, ambos ficamos absortos a observar a algaravia das aves. Eis que, rompendo nosso silêncio, a pequena neta lança à queima roupa a pergunta que permanece ecoando nos ares até hoje, porque permanece irrespondível: “Meu avô, e como é que o tucano tuca?!” Ainda não sei, minha neta, mas repare o quanto tenho me esforçado para tentar responder…
O Tucano
Eternamente para Letícia (24 anos depois)
Perguntei a Deus como é que o tucano tuca:
Ele sabe, mas me recomendou a sabedoria de pensar e crer…
Perguntei a Jesus como é que o tucano tuca:
Ele me pediu que eu me juntasse a eles.
Perguntei a Sócrates como é que o tucano tuca:
Ele me respondeu que sabe que não sabe.
Perguntei a Platão como é que o tucano tuca:
Ele se referiu à alma.
Perguntei a Aristóteles como é que o tucano tuca:
Ele sugeriu que eu procurasse na causa primeira.
Perguntei a Epicuro como é que o tucano tuca:
E para ele não importa, porque quando tuca o tucano ele não está, e quando ele está o tucano não tuca…
Perguntei a Agostinho como é que o tucano tuca:
Ele me aconselhou crer para entender.
Perguntei a Boécio como é que o tucano tuca:
E ele me incentivou a ir-me consolar com a Filosofia.
Perguntei a Tomás de Aquino como é que o tucano tuca:
E ele pensou em fazer uma Suma.
Perguntei a Descartes como é que o tucano tuca:
E ele achou óbvio: “tuca, logo existe”!
Perguntei a Pascal como é que o tucano tuca:
E ele me revelou razões que a razão desconhece.
Perguntei a Camões como é que o tucano tuca:
“As armas e os barões assinalados, / Que da ocidental praia lusitana, / Por mares nunca dantes navegados…
Pois se ao tucano cabe tucar,
A mim me cabe poetar!”
Perguntei a Galileu como é que o tucano tuca:
E ele foi rápido: “Eppur, tuca!”
Perguntei ao Newton como é que o tucano tuca:
Ele disse que investigaria e que, enquanto isso, eu desse maçãs ao tucano.
Perguntei a Locke e a Hume como é que o tucano tuca:
Ora, é uma questão de observação empírica.
Perguntei a Kant como é que o tucano tuca:
E ele refletiu tratar-se, obviamente, de uma causa a priori e ser um imperativo categórico.
Perguntei ao Espinoza como é que o tucano tuca:
E ele me aconselhou a olhar por uma lente.
Perguntei a Darwin como é que o tucano tuca:
E ele me explicou que a seleção natural pode ter a ver.
Perguntei a Hegel como é que o tucano tuca:
E ele jurou que na totalização final da história eu saberei.
Perguntei a Nietzsche como é que o tucano tuca:
E ele me encaminhou para falar com Zaratustra.
Perguntei a Comte como é que o tucano tuca:
E ele profetizou: “na moral, positivo!”
Perguntei a Freud como é que o tucano tuca:
E ele me pediu para averiguar a hipótese de um trauma infantil.
Perguntei a Lacan como é que o tucano tuca:
Bem, se tuca é porque tem significantes…
Perguntei ao Fernando Pessoa como é que o tucano tuca:
E ele me advertiu que o tucano “é um fingidor,
E chega a fingir que tuca…” O Resto, menina, é metafísica e chocolate…
Perguntei ao Sartre como é que o tucano tuca:
E ele respondeu que para os tucanos, o inferno são os outros como, araras…
Perguntei à Florbela Espanca como é que o tucano tuca:
E ela me respondeu entender mais de borboletas…
Perguntei ao Einstein como é que o tucano tuca:
E ele cogitou de ser um assunto de relatividade.
Perguntei ao Ortega y Gasset como é que o tucano tuca:
E ele disse qualquer coisa de que o tucano é ele e seus arredores.
Perguntei a Levinas como é que o tucano tuca:
E ele esclareceu que é preciso priorizar a face do outro.
Perguntei, pergunto e perguntarei,
Até que um dia, enfim, você o possa explicar para aquela netinha sua,
Que no zoológico indagou:
“Meu avô – e como é que o tucano tuca?”
E quantas não são as dúvidas e perguntas, para nós irrespondíveis, que vamos colecionando e carregando vida afora?! A respeito da própria vida, a respeito de nós, de Deus, da Morte, dos erros, dos medos, das dores, do sentido, do propósito, do antes e do depois, os porquês para tudo isso…
A busca pelas respostas começa lá, no início precoce mesmo, seja na teoria do big-bang, ou a grande expansão (do Universo), proposta pelo padre belga Georges Lemaître, seja nos ensinamentos da Bíblia. Lemaître, por sua impactante contribuição científica, também tem sido chamado de o “pai do big-bang”: padre da Igreja Católica e cientista, ciência e fé, uma conjunção possível! “Sem renunciar à sua fé católica, Lemaître falou de um passado infinito do universo, mas que não entrava em contradição com sua crença em um Deus criador do mundo, já que tanto Aristóteles quanto São Tomás de Aquino mostraram que a criação de um universo não precisaria de um começo no tempo” (de acordo com a matéria de Alberto López “El sacerdote Georges Lemaître, el padre del Big Bang que hizo cambiar de opinión a Einstein”, no El País de 17 de julho de 2018 – https://elpais.com/elpais/2018/07/17/ciencia/1531807774_529457.html).
Lemaître, Aristóteles, São Tomás, Einstein e tantos incontáveis outros expressaram seus saberes e descobertas por meio de… palavras! A palavra oral, a palavra escrita, mas sempre a palavra, um registro de sons, frequências, modulações, signos, letras, sílabas, fonemas, que dão vida às percepções, intuições, raciocínios, previsões, lógicas, suposições, teses e proposições que fazemos e que são a substância de nossas vidas.
Ora, não é à toa portanto, muito pelo contrário, que “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, Conforme Evangelho de João, no Novo Testamento, Capítulo 1, Versículo 1. Verbo, no original grego, era logos. Também “palavra” pode ser aproximada de logos. E é tal a força, o poder, do logos-palavra, que – desde ele – Deus fez tudo o que aí está! E se o Verbo é Deus, ele jamais cessará de existir, de ser, ainda que os humanos estreitem cada vez mais seus vocabulários… E se o Verbo é a palavra, e é Deus, então, sem outra possibilidade, a palavra é a verdade. “No mundo antigo e arcaico a verdade não é inteligível fora de um sistema de representações religiosas, não há verdade, aletheia, desvelamento, sem relação complementária com lethe, velamento, encobrimento, esquecimento. Não há aletheia sem as musas, a memória e a justiça. A nível do pensamento mítico, onde se encontram as mais antigas manifestações da verdade, a palavra não é um plano do real distinto dos outros. Em um sistema de pensamento em que a verdade não é um conceito, não pode ser dissociada da balança, do ato litúrgico, da função de soberania, dos quais foi sempre um aspecto, uma dimensão.” (Conforme Carlos A. Sanches em O Poder Eficaz da Palavra, https://www.youtube.com/watch?v=H6JjxbLBjEc . – Grifo meu.)
Não devemos esquecer, no contexto do poder da palavra, que a própria psicanálise freudiana nasceu, por assim dizer, de um jogo de palavras, quando Anna O. (pseudônimo para Berta Pappenheim, 27/fevereiro/1859 – 28/maio/1936), paciente primeiramente do médico Josef Breuer, chamou de “talking cure” (cura pela fala, palavra) o processo terapêutico a que se submetia, uma vez que, conforme ela falava, alguma coisa lhe acontecia, alguma coisa de bom, como uma “limpeza pela chaminé” em sua maneira zombeteira de aludir ao fato; um método catártico, a própria operação da fala tendo a propriedade de atuar como agente curativo. O fato encontra-se apresentado no livro que Breuer e Freud juntos escreveram, o famoso: Estudos sobre Histeria. Trata-se do Caso 1 Srta. Anna O., páginas 57-81, do capítulo II Casos Clínicos [Josef Breuer, Sigmund Freud. Estudos sobre a histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Volume II (1893-1895), Rio de Janeiro, Editora Imago, 1996]. Segundo o importante historiador Peter Gay (Freud – uma vida para o nosso tempo, trad. Denise Bottmann, 2ª. edição, São Paulo, Cia. das Letras, 2012, p. 87):
“Ouvir, para Freud, tornou-se mais do que uma arte, tornou-se um método, uma via privilegiada para o conhecimento, à qual os pacientes lhe davam acesso. Um dos guias a quem Freud sempre foi grato era Emmy von N., na verdade baronesa Fanny Moser, uma rica viúva de meia-idade que Freud atendeu em 1889 e 1890 e tratou com a técnica hipnoanalítica de Breuer. (…) Ao longo do tratamento, ela apresentou lembranças traumáticas altamente interessantes para Freud (…). Mas, ainda melhor, ela proporcionou uma veemente lição prática ao seu médico. Quando Freud a interrogava com insistência, ela se aborrecia, ‘muito rispidamente’, e pedia que ele parasse de ‘lhe perguntar de onde veio isso ou aquilo, mas que a deixasse me contar o que ela tinha a dizer’. Ele já havia reconhecido que, por mais tediosas e repetitivas que fossem suas narrativas, ele não ganhava nada com suas interrupções, mas que tinha que ouvir as histórias dela até o fim, com todos os seus minuciosos detalhes. Emmy von N., como ele disse à sua filha em 1918, também lhe ensinou algo mais: ‘O tratamento pela hipnose é um procedimento inútil e sem sentido’. Foi um momento decisivo, levou-o ‘a criar a terapia psicanalítica, mais sensata’. Se algum dia existiu um médico capaz de converter seus erros em fonte de discernimento, foi Freud.” (Grifos meus.)
Assim, se – ambos sob o império das palavras – de um lado o paciente fala, de outro lado o psicanalista escuta, uma escuta treinada e especializada, e entre os dois se desenrola e se desvela a grande dança das palavras e seus silêncios…, fenômeno que só se pode dar no setting (tempo, espaço e circunstâncias), entre as quatro paredes protetoras e propiciadoras, campo das histórias, pradaria das experiências, nuvem do contato entre dois inconscientes, útero de explosão de vidas, pode, finalmente, decorrer a cura, a cura pela palavra. Ressalte-se que a psicanálise tem lastro no entendimento de que os conflitos inconscientes podem ser içados à consciência e, então, analisados e entendidos, e, desta forma, tais sintomas que se manifestavam podem ser explicados e eliminados.
Segundo o Caldas Aulete eletrônico, palavra é a “Unidade da língua que, na fala ou na escrita, tem significação própria e existência isolada.” (https://www.aulete.com.br/palavra)
Palavra vem do latim parabola, que por sua vez tem raízes no grego antigo, pela junção do prefixo para, equivalendo a “à margem de…”, “contra”, mais o termo bolê, conferindo ao vocábulo a idéia de lançar, estabelecer um paralelo entre, comparar (https://etimologias.dechile.net/?palabra). Curioso salientar que outras importantes palavras fazem parte dessa “família bolê”, como: símbolo (e a palavra grafada é um símbolo…), formado pelo prefixo grego “syn”, no sentido de “junto”, “em associação” (sinergia = mesmo trabalho ou trabalho junto; sinfonia = mesmo som; sincronia = ao mesmo tempo; simpatia = mesmo páthos, etc.), e… diabo! Esta, a seu turno, vem de “dia” mais bolos, já com o sentido de aquilo que separa (lembrar, por exemplo, de diálise, como aquilo que separa e quebra, no caso certas toxinas do sangue que os rins não conseguem mais separar…).
Para o Dicionário de Filosofia, do filósofo Abbagnano (Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 740-1):
“PALAVRA (lat. Verbum- in. Word; fr. Parole, al. Wort; it. Parola). 1. Segundo a distinção feita por Saussure entre P., língua e linguagem, a P. seria a manifestação lingüística do indivíduo. Diferentemente da língua, que é uma função social, registrada passivamente pelo indivíduo, a P. é ‘o ato individual de vontade e inteligência, no qual convém distinguir: 1º. as combinações nas quais o falante utiliza o código da língua para exprimir seu pensamento pessoal; 2º. o mecanismo psicológico que lhe permite exteriorizar essas combinações’ (Cours de linguístíque génémle, 1916, p. 31).
2. O termo P. tem uma ambigüidade evidenciada pelos lógicos: por um lado, pode ser um evento individual, novo a cada vez que se repete (neste sentido dizemos, p. ex., que um livro é composto por cinqüenta mil palavras), por outro, pode significar a P.-significado, que é a mesma, por mais que se repita (neste sentido, sobre o mesmo livro, podemos dizer que é composto por cinco mil palavras). No primeiro sentido, p. ex., se a P. está for repetida dez vezes numa página será dez palavras; no segundo sentido, é uma palavra só. Peirce propôs chamar a palavra no primeiro significado token (ocorrência) e no segundo significado type (tipo, elemento lingüístico) (Coll. Fap.. 4.537). Sobre o mesmo assunto, outros falam, respectivamente, em signo e símbolo (cf. M. BLACK, Language and Philosopby, VI. 2; trad. it.. pp. 181 ss.).”
A todo rigor, pode-se pensar nas palavras como sendo complexos formados de, pelo menos, três componentes estruturais (não me referindo aqui à fonética ou outras características da palavra em si), que são: (i) o significante, (ii) o significado (estes dois sempre muito referidos na literatura psicanalítica, sobretudo a de colorido lacaniano) e (iii) o referente.
E referentemente a significante, eis o que nos explica Roudinesco, em seu conhecido Dicionário (Dicionário de psicanálise / Elisabeth Roudinesco, Michel Plon; trad. Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; superv. da edição bras. Marco Antonio Coutinho Jorge — Rio de Janeiro, Zahar, 1998, p. 709-12):
“Termo introduzido por Ferdinand de Saussure (1857-1913), no quadro de sua teoria estrutural da língua, para designar a parte do signo lingüístico que remete à representação psíquica do som (ou imagem acústica), em oposição à outra parte, ou significado, que remete ao conceito.
“Retomado por Jacques Lacan como um conceito central em seu sistema de pensamento, o significante transformou-se, em psicanálise, no elemento significativo do discurso (consciente ou inconsciente) que determina os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e à maneira de uma nomeação simbólica.
“Em seu Curso de lingüística geral, Ferdinand de Saussure divide o signo lingüístico em duas partes. Denomina de significante a imagem acústica de um conceito e chama de significado o conceito em si. Assim, a palavra árvore não remete, do ponto de vista lingüístico, à árvore real (o referente), mas à idéia de árvore (o significado) e a um som (o significante) que é pronunciado com a ajuda de seis fonemas: á.r.v.o.r.e. O signo lingüístico, portanto, une um conceito a uma imagem acústica, e não uma coisa a um nome.
“Por outro lado, o signo faz parte de um sistema de valores. O valor de um signo se mede por sua relação com todos os outros signos e resulta, negativamente, da presença simultânea deles na língua, que é concebida como a totalidade sincrônica (ou seja, estrutural) de todos os signos que nela se encontram. Diferentemente do valor, a significação se deduz da ligação que existe entre um significante e um significado.
“Desejoso de dar um fundamento estrutural e linguageiro à concepção freudiana do inconsciente, Lacan apoiou-se nessa lingüística saussuriana para mostrar que a segunda tópica (do eu, supereu e isso) não é da alçada da biologia nem da psicologia. O modelo saussuriano da língua (ou estruturalismo lingüístico) está para Lacan, portanto, como estava o modelo darwiniano da biologia (ou evolucionismo) para Sigmund Freud. (…)”
Lacan, com sua atitude a um tempo brilhante e provocante, inovadora mesmo, como que vincula o modelo saussuriano à psicanálise freudiana (ou será o contrário?), quando nos desafia a que:
“Vocês vêem que, ao conservar ainda esse como, me apego à ordem do que coloco quando digo que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Eu digo como para não dizer, sempre retorno a isto, que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. O inconsciente é estruturado como os ajuntamentos de que se tratam na teoria dos conjuntos como sendo letras.” (Jacques Lacan, O Seminário, Livro 20, Mais, Ainda (1972-3), 2ª. ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p. 65-6.)
Conjunto de letras, linguagem, palavras portanto, suponho. De novo as palavras, sempre as palavras!
E como disse um saudoso amigo: “a Psicanálise tem de ir aonde o sujeito está” e o sujeito só é sujeito no reino da palavra; então é nessa dimensão que ele se encontra. Sem palavra não pode haver sujeito, ou há? Mesmo aquele que venha a se manter no extremo da mudez, pensa. E o pensamento nada mais é do que uma sequência não verbalizada de palavras pensadas… Ou não? Os sonhos também. As palavras são armas… Já na Grécia antiga, sofistas cultos e competentes ensinavam os jovens das famílias ricas e nobres a discursar. O discurso, um coletivo de palavras para um propósito específico de ganho ou convencimento, treinado e aperfeiçoado por oratória brilhante, pode seduzir e subjugar não apenas uma pessoa, mas povos inteiros. Uma boa oratória e uma retórica impecável, com a seleção de palavras certas e entusiasmantes, eternizam, ecoando aos ventos, um propósito, uma bandeira. Lembremo-nos, por exemplo, seja para aplaudir seja para recusar, o elevado grau de persuasão da tríade “Liberté, Égalité, Fraternité” (lema oficial da República Francesa, artigo 4º da Constituição da Segunda República de 1848).
E o sujeito, meu sujeito, onde está? Está dentro de mim e está, quiçá, fora de mim, transita num sentido e noutro reompendo limites e fronteiras; este sujeito é um eterno “borderline”! “O sujeito é um migrante dentro de si: emigrante e imigrante a um só tempo”. É múltiplo e facetado, fractalizado, plêiade de entes e seres, mais de um, diverso e único. Batizado por ortônimos, pseudônimos e heterônimos. Rodízio de personalidades, desejos e dissimulações. E tudo isso dele/nele se engenheira, arquiteta e se faz por meio de palavras, ainda que sejam propriamente distintas e outras as palavras de cada qual. Mas são todas palavras, talismãs de fé, amuletos de vontade, fluidos de gozo.
Guerim Vitolga, em seu livro Subjectum (página 179) com essas palavras agudas do soneto abaixo, tenta marcar latitude e longitude para seu ser e seu outro ser, num desabafo jocoso e numa reflexão dorida que invoca tanto sua pequenez quanto seus desvios:
Moramos, ele, nós, eu, sob a pele,
No olhar um do outro, numa mesma porta;
Nosso endereço, mesmo, não importa,
Mas sim que ao outro, um muito veja e zele!
Moramos numa rua dos fuzis,
Onde o caminho, pra viver desvia;
E se hoje ’inda lá canta a cotovia
É que lembra antes, triste, outros brasis.
Quem somos: o sujeito não sagrado?
O sujeito que desce ao primitivo
E só lhe resta, para se pôr vivo,
A navalha, o punhal desesperado?
Olho em torno, estou só… Que faço aqui?
Quem está em mim? Há um cínico que ri!!
Pessoas e ofícios empunham as palavras em seus afazeres e dizeres. Vivem (ou viviam) disso: de falar palavras. Poetas, políticos e psicanalistas e padres são exemplos (Obrigado Freud!).
E na página 189 do mesmo livro, o antes mencionado Guerim de Vitolga, poeta brasileiro de ascendências itálica e ibérica, referindo-se ao fim do sujeito, assim o esgrimou num outro soneto, com palavras bem afiadas:
Mesmo que se apreendesse a coisa-em-si,
Isso me serviria, Kant? Não sei;
Não sei por que preciso de outra lei:
É pela coisa-em-mim que decidi!
E tal coisa-em-mim, dize se está aqui:
É Inconsciente, Linguagem, Pater-Rei,
Graça, Revelação, nalgo acertei?…
Quem sabe a coisa-em-mim em que existi?!
Ente da coisa, coisa já sem dente:
A coisa-corpo escrava da pulsão,
Morro sem saber, morro à contramão!
Ser humano é ser intermitente
Entre a coisa-em-si que se assume fora
E a coisa-em-si de dentro indo-se embora…
E mais adiante (página 191) Vitolga, com sua metralhadora de palavras, palavras!, faz, heroicamente, o duro diagnóstico da insuficiência sua e a de seu sujeito, talvez a mais marcante das condições humanas e que tanto nos aproxima seja de Deus, seja da Psicanálise, para apontar-nos uma possibilidade de resgate e redenção no último verso, ao apagar das luzes de sua expectativa…
Não tenho suficiência nem sequer
Para conhecer minha insuficiência!
Pois: se não posso nem tal excelência,
Como saber de mim o meu mister?
Nada sei de mim – saiba o que puder!
E só Deus sabe, com Sua onisciência,
Mas não o alcanço com minha consciência:
Erro aos tropeços num passo qualquer…
Sou ser da finitude – tudo finda!
É bem finito meu conhecimento;
É finito meu tempo… No elemento
Desta vida eu não vi o Vivo ainda!
Mas por me enredar nos insuficientes
É que sou ser e sou eu e sou gente!!
Mesmo no mais profundo de “seu” Livro do desassossego, como se nota, o autor ainda se rebela e exige de suas palavras versificadas que apresentem, ao final, um raio de luz… Aqui o poeta transgride seu quantum de pureza divina para fazer-se (poesia, poema…poiesis – do grego antigo, palavra que significa “criar”, “produzir”, “fabricar”; tem diferentes significados: na filosofia, na sociologia, na bioquímica e na hematologia, como em hematopoiese, ou a produção de elementos figurados do sangue, da vida!) humano, miseravelmente humano, para ser metamorfoseado e já quase sem sujeito, por ser apenas um sujeito da insuficiência, extrair, de volta, a grandeza que pode sim jorrar do efêmero, do humilde, do modesto.
Ainda quanto à Poesia, Jucimeire R. de Souza Endo (que cita Mallarmé: “Poesia se faz com palavras e não com ideias”), em seu artigo “Poética” de Manuel Bandeira, um poema manifesto no contexto modernista brasileiro, argumenta que: “Ao longo da história literária, a poesia sempre se mostrou como um gênero que sofreu várias mudanças: inovações e/ou retomada de tradições. Ela nasce da necessidade do homem de imitar o mundo, pondo em palavras acontecimentos cotidianos, ou seja, o eu poético cria representações. Nesse sentido, a poesia se caracteriza pela materialização do signo, uma vez que apreende o real de forma sensorial. Ao se afastar da linguagem instrumento, o poeta passa a trabalhar as palavras vendo-as como coisas e não como signos, com função representativa. A palavra poética nesse sentido se transforma em um ‘microscópio’, tornando-se as próprias coisas.” (Grifos meus.)
Haverá quem possa discordar?
Nesses nossos tempos atuais, de desespero e empobrecimento, embotamento mesmo e degeneração da inteligência e dos sistemas de palavras, a palavra remanesce tão somente em sua faceta comunicativa, um veículo de transporte de idéias, desejos, raivas etc. A palavra de hoje, nua de seu significante e quase sempre vacante de seu referente, tem perdido a magia, tem-se esvaziado de seu conteúdo psíquico, de seu sonho, de sua transcendência, e, portanto, já não suporta visões de mundo nem cosmogonias. Veja-se, por exemplo, na clínica psicanalítica atual a verdadeira epidemia da “busca por sentido”!… Mais ainda, a palavra, como tradicionalmente acontecia, uma “força estruturante da realidade mesma”, já caminha em seus estertores, substituída por abreviaturas, emojis, logomarcas. Todavia, é muito bom lembrar que sem palavras não se formam pensamentos: não ter palavras, ou um bom vocabulário, é estar condenado a não pensar, isto é, a só ter pensamentos ralos e repetitivos. (Assista-se o supracitado vídeo O Poder Eficaz da Palavra, de Carlos Alberto Sanches (https://www.youtube.com/watch?v=H6JjxbLBjEc).
Ilustrando bem o insistentemente citado poder das palavras e sua beleza, e o como/quanto pode nos fazer pensar e descobrir, longas imersões no mais profundo de nossas almas, atente-se nessa frase que uma psicanalista amiga há tempos me enviou: “Eu iço o isso de suas profundezas abissais e obtenho um outro panorama de mins!”. A oração se faz por palavras, sacras palavras; a terapia psicanalítica se faz por palavras, enigmáticas palavras, palavras ditas e seu reflexo inverso; a poesia se faz por palavras, poéticas palavras, com significados vários num mesmo esqueleto fonético e silábico; a boa política se faz por palavras, sábias palavras numa oratória honesta e clara, não nisso que se vê atualmente ulular nos poderes. Meu encontro com Deus é mediado por palavras; meu encontro com a Vida e com a Morte é mediado por palavras; meu encontro com o Amor é mediado por palavras; meu encontro com meu inconsciente e todos os meus possíveis mins é instado por palavras. Dar o nome, denominar, nominar, nomear, é operação mediada por palavras e que cura, acolhe e desassusta.
Palavras e poesias, uma para a outra, como a mãe para o filho, o filho para a cruz, a cruz para a verdade. A palavra como veredicto, como caminho e atalho, como significação última do valor maior. E aqui é de muito boa escolha que se pense no berço das palavras, um idioma, o idioma, no nosso caso o robusto e culto idioma português, e que se retome o que disse de nossa Língua um de seus maiores poetas, Olavo Bilac, no magnífico soneto Língua Portuguesa:
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…
Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”,
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
(Olavo Bilac, Tarde, 1919, In: Antologia: Poesias, São Paulo, Martin Claret, 2002. / Disponível no site Domínio Público: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000288.pdf.)
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Todavia, permanece intacto o irrespondível… Mesmo com todo esse tamanho alinhavo de idéias e palavras apresentado, a pergunta da netinha de cinco anos queda carente de uma resposta minimamente plausível: “Meu avô, como é que o tucano tuca?” E, no entanto, tuca deveras! A neta criou, brilhantemente, o neologismo tucar. O avô tentou bastante, por anos a fio, significá-lo, contudo faltou-lhe gênio para a tarefa. Talvez seja melhor assim, permanecer inexplicável a questão, mantendo o seu quanto de mistério, que atrai, que sacraliza, que envolve, que vela, que me impulsiona (e creio que a todos nós) no sentido da busca por algo mais, aquilo que não estava nem dito nem escrito por palavras nos protocolos.
Tem-se atribuído ao gênio de Galileu Galilei haver murmurado “Eppur, si muove!”. Caríssima neta, mesmo que não se saiba – ainda – explicar, digamos: Eppur, tuca!
f.a.a.
jan/2025
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