O menino que colhia caju – e a felicidade

O menino que colhia caju  –  e a felicidade

para J.V.

Há tempos, um conhecido psiquiatra em São Paulo equiparou o eterno objeto de nosso desejo –  a felicidade  – à imagem de um garotinho, seu neto, de quatro ou cinco anos, parado absorto embaixo de uma jabuticabeira, escolhendo – e comendo! –pérolas negras de jabuticaba (a etimologia da palavra é discutida e parece diversa; em todo caso, vem do tupi yauoti ‘kaua, para jabotekava, do nome indígena tupi jaboté, um tipo de botão e Kava, fruto semelhante, portanto, algo como: “frutas em botão”; poderia também significar “gordura de jabuti”, pela junção de îaboti, jabuti, e kaba, gordura). Nunca esqueci a bela imagem (se alguém souber exatamente a citação dele, foi num programa de televisão, por favor, pode me corrigir).

De minha parte, corroboro a tão inspirada observação do psiquiatra, ainda que várias décadas depois, ao me recordar de tempos idos quando meu netinho visitava nosso sítio no litoral baiano e, logo que chegava, já chamava pelo avô, pedindo para ir colher caju. Teria ele também três ou quatro anos e ficava numa alegria sem fim, desconectado de todo o mundo ao seu redor, e dos problemas deste, olhando embevecido para o cajueiro carregado, escolhendo qual fruto apanhar. Como ele dizia, “Pegar caju vovô” (no tupi, akaîu, com o significado de noz que se produz; também se refere a ano, posto que os tupis contavam a idade conforme cada floração: “de caju em caju” = a cada ano). O avô não só atendia seu pedido, como estimulava isso que, numa forma mágica de encadeamento de fatos e emoções, aquela felicidade inconteste do garotinho fazia também, pelos seus devidos caminhos, a felicidade de um avô já bastante “versado” nos fatos da vida. Bem, creio que disso se pode extrair o sumo e dizer que as crianças, buscando suas árvores na medida do que a vida lhes oferece, sabem escolher os frutos e, de alguma forma, sabem que isso é um ato tão único de felicidade, que é quase uma graça.

Mas o que é felicidade?

Logo acima escrevi a palavramágica, e felicidade se associa bem à idéia de magia. Isso fica claro no imaginário infantil, pleno de histórias de alegrias trazidas por processos mágicos. Aliás, como já se disse, uma grande frustração da criança é quando ela começa a se dar conta de que não tem o poder mágico de realizar suas vontades, quando ela vai reduzindo seus supostos contornos de totalidade do universo… São os ganhos pela magia ou pelo inesperado que mais parecem prover uma felicidade superlativa, afinal, como disse o filósofo italiano Agamben: “Magia significa, precisamente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos sabiam, a felicidade à medida do homem é sempre hybris, é sempre prepotência e excesso. Mas se alguém conseguir dobrar a sorte com o engano, se a felicidade depender não do que ele é, mas de uma noz encantada ou de um ‘abre-te-sésamo’, então, e só então, pode realmente considerar-se bem-aventurado.” (In: Giorgio Agamben. Profanações. Boitempo, 2007.)

Ademais do binômio Magia & Felicidade, nossa cultura tem, ainda, associado Prazer & Felicidade, o que dá muito “pano pra manga”, na medida em que felicidade pode ser resumida a um acúmulo interminável de prazeres mundanos, momentâneos, como sexo, culto ao corpo, consumismo, comidas, a internet (e, por exemplo, sua dinâmica de validação social) e as correspondentes adicções a tais formas de “prazer”. Já um prazer duradouro, ao modo da sabedoria de Epicuro, se reveste de outras características e benefícios. Por exemplo, em sua “Carta sobre a felicidade”, ele afirma: “Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma.” (Epicuro, Carta sobre a felicidade – a Meneceu, Editora UNESP, 2002, p. 43, disponível em: https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/wp-content/uploads/2015/01/epicuro-carta-sobre-a-felicidade.pdf.)

Segundo Abbagnano, em seu importante Dicionário, felicidade é:

“(…)Em geral, estado de satisfação devido à situação no mundo. Por esta relação com a situação, a noção de felicidade difere de bem-aventurança,que é o ideal de satisfação independente da relação do homem com o mundo, por isso limitada à esfera contemplativa ou religiosa. O conceito de felicidade é humano e mundano. Nasceu na Grécia antiga, onde Tales julgava feliz ‘quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada’ (…). A boa saúde, a boa sorte na vida e o sucesso da formação individual, que constituem os elementos da felicidade, são inerentes à situação do homem no mundo e entre os outros homens. Demócrito, de maneira quase análoga, definia a felicidade como ‘a medida do prazer e a proporção da vida’, que era manter-se afastado dos defeitos e dos excessos (…). De qualquer maneira, felicidade e infelicidade pertencem à alma (), uma vez que somente a alma ‘é morada do nosso destino’ (...). A relação que muitas vezes se estabeleceu entre felicidade e prazer tem o mesmo significado, ou seja, é a conexão entre o estado definido como felicidade e a relação com o próprio corpo, com as coisas e com os homens. A tese segundo a qual a felicidade é o sistema dos prazeres foi expressa com toda a clareza por Aristipo*, que fez a distinção entre prazer e felicidade. Somente o prazer é bem, porque só ele é desejado por si mesmo, sendo portanto fim em si. ‘O fim é o prazer particular, a felicidade é o sistema dos prazeres particulares, em que se somam também os passados e os futuros’ (…). Egesias, que negava a possibilidade de felicidade, negava-a justamente pelo fato de que os prazeres são demasiado raros e passageiros (). Por outro lado, Platão negava que a felicidade consistisse no prazer e a julgava, ao contrário, relacionada com a virtude. ‘Os felizes são felizes por possuírem a justiça e a temperança; os infelizes são infelizes por possuírem a maldade’, diz ele em Górgias (…); no Banquete (…) são chamados de felizes ‘aqueles que possuem bondade e beleza’. Mas justiça e temperança são virtudes; possuir bondade e beleza significa ainda ser virtuoso; e a virtude outra coisa não é, segundo Platão, senão a capacidade da alma de cumprir seu próprio dever, ou seja, de dirigir o homem da melhor maneira (…). Portanto, também a noção platônica de felicidade é relativa à situação do homem no mundo e aos deveres que aqui lhe cabem. Quanto a Aristóteles, insistiu no caráter contemplativo da felicidade em seu grau superior, a bem-aventurança (…), mas apresentou uma noção mais ampla de felicidade, definindo-a como ‘certa atividade da alma, realizada em conformidade com a virtude’ (…); ela não exclui, mas inclui a satisfação das necessidades e das aspirações mundanas. As pessoas felizes, segundo Aristóteles, devem possuir as três espécies de bens que se podem distinguir, quais sejam, os exteriores, os do corpo e os da alma (…).” (Grifo meu.) (Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 2007. Verbete “Felicidade”, p. 434.)

* Aristipo de Cirene, filósofo da Grécia Antiga, criador da chamada escola cirenaica, ou hedonismo, que professava o prazer como o bem supremo. Todavia, propugnava por um controle racional sobre os prazeres, para que deles não sobreviesse a dependência.

A Psicanálise, para mais da Filosofia, também aporta suas opiniões. Como psicanalista, entendo que a felicidade é algo delineado por nosso desejo e que esperamos encontrar e realizar. Mas a chance de tal processo ocorrer é delimitada por circunstâncias da realidade, ou contingências; ela como que se dá ao acaso. Já Sigmund Freud mencionava, por exemplo, e de forma muito definitiva e bela, a constante luta entre o princípio do prazer e o princípio de realidade, noutros termos: pulsão de vida X pulsão de morte. Mas também como psicanalista, sei que a realização psíquica do desejo, ou daquilo que é de sua ordem, é quase sempre, senão sempre, efêmera, desde quando assim que o gozo do desejado ocorre, ato contínuo o (forte) desejo por mais do mesmo renasce! Aprendemos com Freud e Lacan (para quem o propósito da análise é fazer o homem feliz) que não acontece o gozo como prazer total, que abarcaria numa única ocasião a totalidade da satisfação em qualidade e tempo. Sempre falta; sempre fica o “furo” por onde o fugazmente acumulado vaza – e nós sempre quereremos repor. Perseguição eterna…

No entanto, determinados como somos na busca pelo prazer – e, quiçá, pela felicidade, entendida esta como realização da soma de todos os desejos/prazeres – persistiremos no encalço do gozo pleno (redundância); mas o gozo não necessariamente é bom, e no entendimento lacaniano é preciso que consigamos dar um nome a ele, nomear o gozo invasor como operação que conduza à felicidade. Persistir/insistir/não desistir = nosso padrão, e tal comportamento, opostamente a alcançar e gerar o prazer anelado, acarretará sofrimento, como angústia, porque, evidentemente, há questões problemáticas que precisarão ser corrigidas.

O princípio de prazer (sabiamente, para possibilitar a vida em sociedade), quando se depara com o mundo externo e suas imposições, normas, regras e leis, acaba por ceder ao princípio de realidade. Destarte, o homem, diante de tantos obstáculos, acaba por renunciar à “sua” felicidade, e vai se equilibrar buscando maneiras de mitigação ou eliminação do sofrimento. Freud (em O mal-estar na cultura) aponta três meios essenciais: a neurose, a intoxicação e a psicose, cujas formas são próprias a cada indivíduo. (Conforme Elisabeth Roudinesco, Michel Plon. Dicionário de Psicanálise. Zahar, 1998. p. 490-1.)

Sublinhe-se a distinção entre prazer e felicidade, como apontado na citação antes de Abbagnano. Principalmente distinguir entre soma de prazeres físicos (às vezes patologizados como compulsões e tão insistentemente estimulados pela mídia, a ponto de filósofos atuais já nos descreverem a todos como “sociedade do hedonismo”) e felicidade. Alguns entendem, por exemplo, que é possível atingir a felicidade pela consciente e sistemática elevação do espírito e anulação dos desejos mundanos, o que causaria uma forma especial de prazer nirvânico. Sem a latente pulsação dos desejos (o que é uma tese), estar-se-ia em paz, uma paz equivalente à ampla felicidade. É o que, de certa forma, se vê no Budismo. Em seu magno livro A Consolação da filosofia, Boécio deixa clara a relação entre circunstâncias benfazejas momentâneas e a felicidade, e que, conforme a Fortuna gira sua roda, o que era benfazejo desaparece, restando a mais amarga infelicidade com a perda do que era apenas mundano…

Outro fato a ser salientado, no que tange à busca da  (verdadeira) felicidade, é o quanto tal preocupação encontra-se presente nas religiões. O Cristianismo, prodigamente, localiza tal possibilidade na grande e irreversível aliança de cada um de nós com Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo. Assim, pode-se adotar uma filosofia de vida cristã, observadora das condutas religiosas, respeitosas, éticas e morais que nos levarão a uma comunhão eterna com Cristo e, portanto, com a felicidade definitiva. (A respeito, e para aquecer o debate, indico a leitura do texto A felicidade eterna prometida pelo Cristianismo, de Soren Kierkegaard.)

Um aspecto digno de nota, por fim, que se amalgama com a cultura ocidental, a ibérico-cristã principalmente, e que precisa ser dissecado, como o tentam alguns poucos pensadores, é tanto o medo de ser feliz que nos atola, seja por temor do tédio, seja pelo pânico da inação, seja pela ausência de ousadia, quanto uma certa visão depreciativa em se estudar o tema felicidade, que é tido como preocupação menor!

Bem, regressando ao mundo aqui-agora, o fato é que, hoje, meu “netinho” é um belo e promissor jovem adulto e avança resolutamente os caminhos de seu curso de medicina, ora mergulhado nos emaranhados complexos das sinapses neuronais, ora, fechando brevemente o tratado de neurologia, para olhar enlevado pela janela, e ver se cristalizar no ar o cajueiro, o avô e o garotinho…

Como apresentei, a felicidade é tema debatido desde sempre e por inúmeras áreas do interesse humano: filosofia, história, literatura, artes, psicologia e psicanálise, religiões sobretudo, economia, política etc. Também na música erudita e na popular. E desta, tiro o encerramento desses trôpegos pensamentos, recorrendo ao grande e sábio compositor brasileiro Lupicínio Rodrigues, que, para uma canção de envolvente melodia, escreveu os seguintes tocantes versos: “Felicidade foi-se embora / e a saudade em meu peito ainda mora / e é por isso que eu gosto lá de fora / porque sei que a falsidade não vigora.”  Onde é lá fora?…