Poucas notas sobre o fim das revoluções (ou de nossa humanidade)
fausto antonio de azevedo
Todos conhecem o clássico “manda quem pode, obedece quem tem juízo!”. Todavia, tal dístico já perdeu o sentido, deixou de existir, por se haver esvaziado completamente seu conteúdo antropológico, psíquico e moral. A transformação que a sociedade humana sofreu nos últimos 60-70 anos foi brutal demais – e inesperada demais por conta das tecnologias TIC1 – e jogou por terra todos os sustentáculos do tipo de comportamento parametrizado por aquela expressão. A mutante que tende a operar hoje é a “manda quem seduz, obedece quem não tem juízo (crítico)!”
Vamos a alguma breve análise.
Estamos em tempos dessa tóxica associação entre narcisismo e egoísmo. E cada vez mais alta cada uma das doses (somos a sociedade do egoísmo hedônico e, sobretudo agora, da “doxa”). O efeito é mais do que sinérgico: um desastre no social e no coletivo. A chegada da pandemia pode até ter trazido algum alento para os que pensam-professam algo de caráter mais coletivo: “A pandemia é um golpe mortal no capitalismo. Unirá as gentes.”2, parece ter pontificado o cultuado filósofo esloveno Slajov Zizek. Será? Ou, pelo contrário, vamos percebendo hoje que o capitalismo, no geral, se fortaleceu, e, por exemplo, as grandes fortunas, privadas e empresariais, cresceram nesse período. No coletivo… o que se tem visto é cada um agindo por si e buscando a própria salvação sem olhar o outro e isso tanto para as questões pandêmicas, quanto o demais, posto que tal tendência já se consolidara mesmo antes da eclosão mundial do vírus.
E numa vasta multidão de excessos individuais e individualistas, em que cada qual inventa seus idealizados novos eus nas redes sociais e, via “lives”, ajoelham-se ao novo totemismo, o do poder anônimo, que revolução pode haver, qual mito revolucionário pode se sustentar? Nenhum. Feliz e regozijando-se estão todos os ditadores, tanto os capitalistas-empresariais, quanto os comunistas-socialistas. Ah, idem os liberais!
Qualquer idéia de tessitura social está esgarçada; já se falou de liquefação das sociedades (Zygmunt Bauman) e de cansaço das mesmas (Byung-Chul Han), sociedade do cansaço sim, mas da comercialização (individual) dos mais diferentes aspectos da vida pessoal e das comunidades (como um dos muitos exemplos, o caso da transformação da moradia em hotel temporário…) e é de se questionar se o fermento para que isso se dê não é a troca da antes repressão social pelas atuais formas de sedução. Seduzir em vez de reprimir! Poder em vez de dever! Se sou pobre, sem estudos, excluído, aviltado, desrespeitado, o que for, a sedução dos discursos (governos, autoridades, altos empresários, intelectuais, cientistas, igrejas, etc.) me ensina que posso mudar a situação, basta querer e me dedicar, basta eu me concentrar no meu projeto, em minhas competências & habilidades, sem perder o foco, e será possível! Meu progresso, minha metamorfose, só dependem de mim, e posso triunfar sozinho…
Nossa sociedade está não só individualizada ao extremo, como mercantilizada-monetarizada em praticamente todas suas ações, até mesmo comportamentos como amabilidade, solidariedade, são objeto de valoração e trocas. Tudo para nós se transformou num produto, a lógica da produção & consumo comanda: você é você S/A, as pessoas têm agora suas marcas (não aquelas do tempo e da sabedoria), porém marcas logotípicas!; o “eu” é um produto de cada qual a ser exposto e vendido nas redes sócias, sob o aforismo de “você é seu melhor produto”… E a disputa se torna ensandecida, raivosa, como bem mostram as redes sociais e seus “posts” e comentários e cancelamentos. Estamos, enfim, construindo nossa própria distopia…
Ora, o que se passou é que todos fomos seduzidos, principalmente a partir das facilidades tecnológicas das TIC, a poder tudo – e dever muito pouco: todos podemos atingir os píncaros com nosso próprio esforço, um bom coaching, um Canvas bem feito, etc., e todos podemos exibir pictoricamente nossos avanços e sucessos nas plataformas sociais, e podemos ter nossos próprios canais em plataformas especializadas, podemos publicar nossos artigos e livros e circulá-los pela internet ou coloca-los à venda em sites especializados quase que a custo zero. Todos nos tornamos examinadores, autores, escritores, etc., cada qual realizando sua pequena e tosca revolução individual e, o trágico do processo: a soma dessa miríade de revoluções individuais, com ou sem algoritmos, tende sempre a resultar num redundante zero, isto é, nada em termos sociais. Parece que essa seria a consciência pulverizada da dita pós-modernidade. É possível uma real revolução, que altere ordens, sem ser num plano coletivo, numa ação comum a todos e todos igualmente envolvidos na causa comum? Não creio. Para isso é preciso que se colimem as forças e o senso revolucionário num único inimigo, ou causa, como dito antes. E o que temos hoje é também a vasta pulverização de inimigos. E o grande inimigo para um pequeno grupo pode muito bem nem existir no “ideário” de outro grupo.
Poderemos renascer no depois? Renascer como humanidade, um ente coletivo e único, ainda que em suas diversidades, no qual todos se abrigam e pertencem e se apoiam e realizam um bem comum? Difícil saber.
Espinoza (filósofo que tem sido lido de maneiras bem diferentes, por vezes até opostas), no início de seu Tratado da correção do intelecto – e do caminho pelo qual melhor se dirige ao verdadeiro conhecimento das coisas, diz:
“Desde que a experiência me ensinou ser vão e fútil tudo o que costuma acontecer na vida cotidiana, e tendo eu visto que todas as coisas de que me arreceava ou que temia não continham em si nada de bom nem de mau senão enquanto o ânimo se deixava abalar por elas, resolvi, enfim, indagar se existia algo que fosse o bem verdadeiro e capaz de comunicar-se, e pelo qual unicamente, rejeitado tudo o mais, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia algo que, achado e adquirido, me desse para sempre o gozo de uma alegria contínua e suprema.”3
Alinhando-me a uma leitura pós-althusseriana, ouso presumir que esse “algo” seja o conhecimento verdadeiro, único, a verdade-em-si – o conatus (impulso do ser de perseverar em sua existência; um esforço no sentido de manter e aumentar a potência de agir do corpo e de pensar da mente). E essa verdade, que precisa ser incessantemente buscada, longe de modismos (não posso deixar de rir, por exemplo, de dois desses ridículos modismos atuais, que são a propalada “empatia” e a ubíqua “resiliência”! Aliás, por falar nesta, todo cuidado é pouco quanto a seu uso manipulador por parte de autoridades mesquinhas4) e de comodidades, mas com um tipo de vontade assemelhada àquela de que falava Schopenhauer, em seguida Nietzsche (com a “vontade de poder”), depois, de certo modo, Freud, com a “pulsão de vida” e Lacan (com o “desejo”), essa verdade que nos desnuda de todos os supérfluos, os tecnicismos, os “cacoetes vivenciais”, daquilo que nos embota, que nos faz pensar como “rebanho”…
Nos dias correntes cada vez mais nos distanciamos do espírito da verdade. O colossal Império das Mentiras, por seus motivos escusos, se apodera de tudo e de todos. Mas é possível buscar verdades, desde que não deleguemos tal busca a formadores de “opinião” e a façamos por motivação própria, sem descanso, de forma crítica, ininterrupta, questionando sempre, saindo da multidão, do senso comum, das mesmices; pagando, se necessário, o preço da solidão, o cansaço das leituras e das pesquisas, das comparações, das dissecações; exercitando uma permanente insatisfação com os próprios resultados obtidos e não descuidando jamais de nossa potência para o amor. Eis uma mínima prescrição de como “darmos sempre voltas de um lado a outro”, fazendo com que a revolução nunca se desinstale.
Notas:
[1] A ponto de estarem, seguramente, influindo na formação de novas subjetividades, estas moldadas por “fenômenos” como: FOMO – “fear of missing out”; “fraping”; “subtweeting”; “selfies” e outros (ver, por exemplo, Ciarán Mc Mahon, A Psicologia da Mídia Social, Editora Blucher, 2021 (https://www.blucher.com.br/livro/detalhes/a-psicologia-da-midia-social-1739), ou, consoante o professor Alfredo Jerusalinsky, a questão do “poder anônimo”, que nos catapulta a uma nova forma de totemismo (https://centropsicanalise.com.br/curso/seminario-teorico-um-novo-totemismo-o-poder-anonimo-2021/)
[2] Slavoj Zizek: Coronavirus is ‘Kill Bill’-esque blow to capitalism and could lead to reinvention of communism. https://www.rt.com/op-ed/481831-coronavirus-kill-bill-capitalism-communism/ .
Coronavírus é um golpe estilo “Kill Bill” para o capitalismo e pode levar à reinvenção do comunismo https://pijamasurf.com/2020/03/zizek_sobre_el_coronavirus_un_golpe_letal_al_capitalismo_para_reinventar_la_sociedad/
[3] Benedictum de Spinoza. “Tratado da correção do intelecto.” Disponível em: https://www.mediafire.com/folder/j5s094551s4w2/Espinosa
[4] Ver Thierry Ribault: https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6808470745165910016/ .
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