Ser terapeuta?
Fausto Antonio de Azevedo
palavras-chave: terapeuta, psicoterapeuta, psicanálise, vocação.
Resumo
Faz-se um breve apanhado da origem e da história da palavra terapeuta, desenvolve-se algumas considerações sobre formas de psicoterapia e discute-se o papel de uma verdadeira vocação como elemento constituinte imprescindível para a formação e atuação dos psicoterapeutas.
Abstract
A brief overview of the origin and history of the word therapist is made, some considerations about forms of psychotherapy are developed and the role of a true vocation as an essential constituent element for the training and performance of psychotherapists is discussed.
O teu começo vem de muito longe.
O teu fim termina no teu começo.
Contempla-te em redor.
Compara.
Tudo é o mesmo.
Tudo é sem mudança.
Só as cores e as linhas mudaram.
Que importa as cores, para o Senhor da Luz?
Dentro das cores a luz é a mesma.
Que importa as linhas, para o Senhor do Ritmo?
Dentro das linhas o ritmo é igual.
Os outros vêem com os olhos ensombrados.
Que o mundo perturbou.
Com as novas formas,
Com as novas tintas.
Tu verás com os teus olhos.
Em Sabedoria.
E verás muito além.
Cecília Meireles, Cânticos (XXI)
Etimologia e algo da história
“Terapeuta” vem do grego antigo θεραπευτής, “therapeutés”. Outra palavra da mesma família é “therapon”, que tem o significado de aquele que serve, que atende a alguém.
Terapeuta diz respeito a quem aplica “terapia”, esta também do grego: “therapeia”, que equivale ao ato de curar, reestabelecer. No grego a palavra terapeuta se compõe pelo verbo “therapeuein”, que significa cuidar, curar, atender, aliviar, fazer tratamento (médico), mais o sufixo –tes = agente. Se hoje se refere à pessoa que se dedica à cura de enfermidades, antigamente poderia se referir também a uma forma de “seita”, ou melhor, atividade religiosa que atendia ou que servia aos deuses. Na Grécia antiga, todavia, o terapeuta não era membro de seitas: chamavam-se assim os servidores dos templos e dos deuses (e também se empregou a palavra no sentido de cuidado de saúde ou cuidado médico).
Em realidade, o verbo grego “therapeuein” deriva de um termo muito mais antigo, também grego, que é “therapon” ou “therapontos”, que já aparece em Homero (século VII a.C.) e designa ao companheiro de um guerreiro, que o serve como escudeiro, conduz seu carro, ajuda-o a colocar a armadura, etc., ou também de um nome tão antigo como “théraps” = servidor. Esses termos são de origem obscura, mas se discutem duas hipóteses relativas a ela: uma seria a relação com o velho vocábulo “therapne”, que tem o sentido de morada, com o que o “therapon” viria, enfim, de uma origem doméstica, o servidor de uma casa; a outra é o vocábulo θεραπvή, que poderia ter origem no pelasgo prégrego (ver http://etimologias.dechile.net/?terapeuta).
Segundo o professor José Fernández “O nome Therapeutés significa, na sua primeira acepção – acima de ‘médico’ – ‘servidor de um Deus’, pois a Deus consagravam as suas vidas e almas, a sua vigília e os seus sonhos, que se tornavam assim de natureza profética ou férteis, como as visões místicas, de profundos significados: ‘mantêm viva sempre a memória de Deus, sem a esquecer nunca, de modo que até nos sonhos, a imagem não é outra senão a da excelência e dos poderes divinos. Na verdade, muitos, ao dormir, proclamam nos seus sonhos as verdades da sagrada filosofia.’ ”1
A palavra é grafada da mesma maneira que no português, terapeuta, em: espanhol, galego, italiano (também terapista), húngaro (magiar). É thérapeute em francês; therapist em inglês; therapeut em alemão.
No início da era cristã, muito antes dessas comunidades que depois surgiram no coração do Império Romano, nos ensina Fílon (ver sua obra “De vita contemplativa”) que no Egito, proximidades da importante cidade de Alexandria, região do lago Mareotis, já existiam grupos de judeus que praticavam o “cristianismo” e mantinham contatos com os essênios2: homens e mulheres eram, surpreendentemente, tratados da mesma forma e adotavam condutas e práticas destinadas a alcançar uma vida mais verdadeira e elevada; ouviam as mesmas palestras, estudavam os mesmos textos (judeus e outros, provavelmente cristãos) e se esforçavam por ter iguais hábitos de comportamento, algo totalmente inaceitável conforme os padrões judaicos da época. Essas pessoas eram chamadas de terapeutas e valorizavam as virtudes do coração e da mente, adotando práticas comedidas no falar, no comer e no beber. Preocupados muito com o ser3, isolavam-se na comunidade para melhor se desenvolver nesse aspecto, praticando a clausura, a autonomia, cantos e reflexões, sob o propósito de cuidarem de si, do próprio corpo, dos outros. O sagrado era uma referência paradigmática. Treinavam para ver em cada um, fosse quem fosse, uma manifestação do “Ser”, a presença divina, em tantas formas de existência e, por esse caminho, alcançar a sabedoria – a ponto de serem também chamados de filaleteus, isto é, amigos ou amantes da verdade.
Narra Fílon, em “A vida contemplativa”:
“Agora, essa classe de pessoas pode ser encontrada em muitos lugares, pois era apropriado que a Grécia e o país dos bárbaros participassem do que fosse perfeitamente bom; e existe o maior número desses homens no Egito, em todos os distritos, ou nomos, como são chamados, e especialmente em torno de Alexandria; e de todos os lugares, aqueles que são os melhores desses terapeutas seguem sua peregrinação para um lugar mais adequado, como se fosse o país deles, que fica além do lago Maereótico.”
Depois de Fílon, Eusébio de Cesareia (ca. 265 – 339), bispo de Cesareia, tido como o pai da história da Igreja, uma vez que em sua obra estão os primeiros textos da história do cristianismo primitivo, como na “História Eclesiástica”, em que mostra que, à altura, já se associavam os terapeutas de então a cristãos: ele fala dos terapeutas como primeiros monges cristãos. Outros autores virão a seguir, fazendo também essa associação dos terapeutas aos cristãos.
Os terapeutas de Alexandria não eram médicos no sentido corrente que damos ao vocábulo, mas mantinham preocupação com a saúde do corpo, interpretando-a como efeito da saúde da alma, identificando a origem dos males físicos nos hábitos de comportamento e valores morais. Doenças do organismo eram produto de conflitos da alma. E, praticando tal filosofia de graus de purificação, atendiam pessoas que os procuravam, porém, consta, desde que as mesmas estivessem dispostas por si mesmas a galgarem novos patamares dessa longa escadaria da purificação e do progredir rumo a crescentes níveis de sabedoria. Aclimatando-se esse fato aos tempos atuais, psicanalistas reportam como cada vez mais comum e prevalente o número de pessoas que procuram a clínica analítica não por conta de francos e perturbadores problemas psíquicos, mas pelo desejo de se conhecerem melhor e melhor administrarem suas vidas, medos e desafios.
De acordo com Ricardo Madeira4, Alan Kardec, em “O evangelho segundo o espiritismo”, diz que: “Terapeutas (do grego ‘therapeutai’, formado de ‘therapeuein’, servir, cuidar, isto é: servidores de Deus, ou curadores) eram sectários judeus contemporâneos do Cristo, estabelecidos principalmente em Alexandria, no Egito. Tinham muita relação com os essênios, cujos princípios adotavam, aplicando-se, como esses últimos, à prática de todas as virtudes. Eram de extrema frugalidade na alimentação. Também celibatários, votados à contemplação e vivendo vida solitária, constituíam uma verdadeira ordem religiosa. Fílon, filósofo judeu, de Alexandria, estudioso de Platão e Pitágoras, maior autoridade filosófica de seu tempo, foi o primeiro a falar dos terapeutas, considerando-os uma seita do judaísmo. Eusébio, São Jerônimo e outros Pais da Igreja pensam que eles eram cristãos. Fossem tais, ou fossem judeus, o que é evidente é que, do mesmo modo que os essênios, eles representam o traço de união entre o Judaísmo e o Cristianismo.”
Uma definição
Terapeuta (eventualmente também chamado “terapista” em português) é a pessoa que aplica conhecimentos, procedimentos, métodos e até tecnologias, que buscam restabelecer a saúde e/ou a qualidade de vida de outrem. Já psicoterapeuta é a pessoa com uma formação específica em tal mister, especializada e devotada à psicoterapia5, a qual, por sua vez, se refere a uma prática, ciência e arte, de “cuidar” de alguém com queixas/sintomas de distúrbios ou males psíquicos, empregando certos recursos especiais.
Status legal – a prática hoje
A Constituição do Brasil, de 1988, em seu Artigo 5º., diz que:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
e no inciso XIII:
XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
o que, portanto, fixa o marco legal maior para o exercício da atividade de terapeuta e de psicoterapeuta.
Na “Classificação Brasileira de Ocupações” (fornecida pelo então Ministério do Trabalho) encontraremos explicitamente citada a ocupação de “Psicoterapeuta” sob o código 2515-10 (conforme se pode constatar em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf;jsessionid=K3AL0gXdHzSiP1BtiNa1PYGz.slave17:mte-cbo).
A psiquiatria e a psicologia têm legislações próprias especiais e conselhos profissionais que acompanham e fiscalizam seu exercício em todo país. Já a psicanálise tem natureza e status diferenciados, regendo-se por outros códigos de prática e conduta que lhes são próprios. A respeito, comenta a psicanalista Mônica Seincman, resenhando o livro que o psicanalista Ernesto Duvidovich6 organizou:
“A regulamentação do ofício do psicanalista é colocada em pauta logo de saída e se reconhece que o lugar de exceção da psicanálise, por ser estrutural, não pode ser erradicado. Como aponta Christian Dunker, impraticável e mesmo indesejável, haja vista a diversidade e proliferação das instituições, este movimento conseguiu o inimaginável, ou seja, o consenso entre as diversas orientações contra tal medida. A formação em psicanálise não pode ser enquadrada em um regime normativo, o que colocaria em risco sua própria essência.”7 e 8.
Prática
O histórico de um psicoterapeuta, o psicanalista por exemplo, vale dizer, todo o conteúdo de sua vida/trajetória, seus inúmeros afetos, etc., seguramente podem influir – e influem, bem ou mal – na terapia que ele está aplicando. Assim, deveras, quanto mais rica sua experiência de vida, vivida e refletida, mais ele poderá extrair benefícios dela que o auxiliem no manejo das questões de seu paciente. Por óbvio, não se pode desprezar que experiências próprias de seu passado podem, também, dificultar o encontro e o vínculo com o paciente, e cabe ao terapeuta detectar essa possibilidade para se reposicionar, seja por aprofundamento de sua própria análise no dado ponto específico, seja por encaminhamento do paciente, mediante acordo com este, a um outro profissional.
Portanto, o imperativo vigente para o ofício e arte de ser psicoterapeuta é aquele de uma interminável capacidade de doação; de disponibilidade absoluta; de abertura na propriedade de ouvir sem julgar; de entrega mesmo, propriamente no sentido de se anular perante a outra alteridade para que naquele tempo e espaço só ela possa desfilar suas expectativas e suas agruras. E ele, psicoterapeuta, saiba que o muito que pode é nada e concerne, apenas, a aqui ou acolá sinalizar algum balizamento para que o próprio analisando, imbuído de si e refletindo sobre sua complexidade, possa, ainda que timidamente, atinar com as relações causais que disparam seus sentimentos e suas atuações.
O que se deduz do arrazoado até aqui apresentado e discutido é que aqueles terapeutas antigos, que até mesmo vinham a atender a quem os procurava, não tinham como meta primordial de suas vidas prestar esse atendimento, mas ele era exatamente a consequência que um estilo de vida, de uma maneira de ser, a constante busca pela compreensão de si, pela elevação de virtudes, pela pacificação interna, pelo conhecimento possível do universo e suas manifestações, que faziam com que esses homens e mulheres conquistassem um cabedal de percepções e saberes suficientes para o colocar à disposição dos outros, ajudando esses no alívio de seus sofrimentos, vale dizer portanto, que não é apenas a formação num curso específico legalizado nas normas jurídicas do país que vai conferir à pessoa que tenha esse desiderato a capacidade para praticar tal arte, tal ofício, e assim auxiliar o próximo, pelo contrário, se necessária e obrigatória a formação, uma qualificação pelos aspectos formais do conhecimento explícito aí envolvido, ela não é, em absoluto, o bastante e suficiente. Bastante e suficiente terão que ser a experiência de vida do psicoterapeuta, a profundidade de sua autoinvestigação, a honestidade de seus autoquestionamentos, o rosário de vivências, alegrias, dores, perdas e sofrimentos, que ele já atravessou e o como lidou com isso e o que disso tirou de proveito. Ao serviço dos pacientes9 ele coloca a matriz amalgamada de todas as suas experiências, que só lhes são dadas pelo tempo vivido e pela coragem de viver; a teoria x y z, se muito importante, apenas ajuda a sinalizar, não mais do que isso.
O fenômeno da interação psicoterapeuta, mormente no caso de psicanalistas no tempo-ambiente de uma sessão, se assenta em duas subjetividades, elas em sua inteireza, e o que se dá ali naquele momento e pode produzir resultados benéficos tem raízes no todo das vivências. Vale citar um trecho do belo trabalho “Vir a ser psicanalista: caminho sem fim” da psicanalista Rosa Worcman:
“A personalidade do analista e o vínculo que se estabelece entre analisando e analista são os elementos principais em um processo psicanalítico. O recorte feito do que se observa na experiência emocional de uma sessão e a verbalização do vivenciado pelas duas pessoas presentes são dependentes da subjetividade, por mais objetivos que queiramos ser. A apresentação de material clínico, seja em vinhetas ou na transformação de uma sessão, torna-se importante para que se possa apreciar e teorizar, a posteriori, como estão sendo a apreensão e a realização de conceitos e teorias, o que não invalida outras compreensões e diferente aporte teórico. Somente na prática é que se pode tornar vivo, real, o que na teoria pode ser lógico, bonito, inteligente, mas não demonstra como é estar na frente de batalha.”10 (Grifo nosso.)
E cabe igualmente a observação do psicanalista José Waldemar Turna, que entende (com Jean Oury) que a formação implica modificação da personalidade daquele que se engaja neste trabalho no sentido de uma sensibilização para algo específico. A formação e a clínica são viagens intermináveis em direção ao estilo, passando pela análise pessoal, supervisão e pelas “competências passionais”.
“É na observação sobre essas qualidades específicas que definem as ‘competências passionais’ – e não sobre as grandes ‘performances de saber’ – que vamos encontrar os vestígios do que possibilita o encontro clínico e, se possível, seu encaminhamento terapêutico, sua direção psicopatológica e sua construção diagnóstica, enfim, sua ‘modificação sensível’ ”.11 (p. 133.)
Em resumo e por fim, para que este despretensioso texto não se torne longo demais e enfadonho, quer-se afirmar o vínculo obrigatório e indissolúvel entre ser psicoterapeuta e uma clara e indiscutível vocação para tal. Parece óbvio, mas nem tanto. Nos tempos do agora, embora se ouça muito esta palavra – vocação –, e embora papais e mamães e jovens estejam acostumados à expressão “teste vocacional”, parece que se perdeu a profundidade de reflexão acerca do forte e respeitável significado deste significante… Segundo o Caldas Aulete Digital, “vocação” é “Inclinação ou talento especial para o exercício de certa profissão ou atividade” e, ainda, “Tendência natural; DISPOSIÇÃO; PENDOR”12. Vocação13 significa chamado, um apelo inexorável que vem de alguma instância indefinida, não necessariamente localizada, e que impele a pessoa a, inevitavelmente, seguir naquele propósito e sentido. No caso dos terapeutas, dos psicoterapeutas em particular, inquestionavelmente, a vocação é a de aperfeiçoar-se no máximo dos possíveis na direção assintótica do autoconhecimento para, com isso, colocar-se a serviço do próximo, do outro, e poder minimamente ajudá-lo. Não se iluda o jovem ou aquele que pretende iniciar um curso de formação: se não sente e vive nitidamente em si o desejo de ouvir e servir ao outro, anulando ao limite seu próprio ego, seu ente, para que prospere nas sessões o “ser” do outro, não será um bom psicanalista, por mais que estude todos os autores e seus “matemas”… Ou seja:
Para maior reforço ainda, um parágrafo muito bem construído do psicanalista e professor Enrique Mandelbaum em “Notas sobre a formação em Psicanálise”:
“No caso da Psicanálise, a complexidade do tema é ainda maior, por muitos fatores. De início, podemos destacar um fator que chama a atenção, que é a extrema distância entre a complexidade da formação psicanalítica e a simplicidade de sua prática. É o próprio Freud que salienta, em A questão da análise leiga (1926), que o curso de uma análise é muito modesto, não emprega medicamentos, nem instrumentos, e consiste apenas em conversa e numa troca de informações. Ou seja, a prática psicanalítica caracteriza-se por não pôr de manifesto nada da complexidade que a caracteriza. Quando a gente vê um equilibrista andando sobre um mínimo fio de arame, ninguém duvida das horas de treino necessárias nessa situação. Não é assim com a Psicanálise. Observar a prática de um bom psicanalista, o comentário que ele eventualmente faz numa sessão, a postura que adota diante da fala do paciente, etc. não permite vislumbrar o seu treino pessoal. É como se a prática clínica obrigasse o aprendizado do despojamento dos próprios conteúdos adquiridos na formação. Estes não podem ser manifestados à maneira de etiquetas enunciadoras de competências pessoais. É fácil para um técnico em informática mostrar suas competências: o modo como opera com o programa que roda no computador, as fórmulas que conhece para desdobrar o programa em novas funcionalidades não trazem nenhuma dúvida sobre o grau de familiaridade que ele tem com a atividade que desenvolve. O mesmo pode-se dizer sobre a habilidade de um cirurgião e até sobre o trabalho de um artista. A planilha de fim de ano não deixa dúvidas sobre a gestão de um empresário. É só olhar se a coluna dos ganhos é maior do que a das perdas. Nada disto se aplica à Psicanálise. As evidências, neste campo, são de outra ordem. E aqui esse tema é ainda mais complexo, porque nós nem sequer estamos nos referindo a como reconhecer uma boa análise. Isto sem dúvida é possível, mas estamos apenas marcando o fato de que um psicanalista, em princípio, não exibe a complexidade da sua formação. É só isto, e isto é muito complexo.”14 (p. 140.)
Como encerramento ocorre-me a lembrança de uma citação do padre jesuíta e teólogo Michel de Certeau, quando disse que os místicos são exploradores e como exploradores têm um conhecimento experimental daquilo de que falam, isto é, vivem o que falam. E provoca Certeau aos teólogos quando diz que o explorador místico fala do que vive, fala portanto do que conhece por viver, como o viajante que diz ao geógrafo de geografias onde esteve e andou, ao contrário do encontrado somente em mapas e textos.
E, sobretudo, lembro-me ainda de Santa Teresa de Jesus quando, no cume de seu misticismo, agradece ao crucificado por finalmente Ele a ter possibilitado livrar-se completamente do próprio “eu”, pois só assim, entendeu ela, que encontrou o Cristo, que antes buscara apenas na sua história e na sua superfície… “Michel de Certeau trouxe à baila que o místico inscreve em seu próprio corpo o desapossamento do ‘eu’, quer dizer, a perda de tudo que o faz, a princípio, o referencial do corpo, e sua glória, e que, subitamente, o reduz a rejeitos, resíduos, ou em todo caso predicados não essenciais do ser, aí incluídas todas as formas de discurso que são, elas também, desfeitas. Há o que deve ruir, o que deve ser perdido, ao qual se acordava um valor, um crédito, um sentido.”15
Os pontos de tangência são bastante evidentes: para encontrar o outro, tenho que sair por completo da minha superfície (cada vez mais extensa na atualidade em cada um de nós) e só encontro o outro por meio dessa prática “mística” (perdôem-me o pleonasmo vicioso – mística aqui entre aspas) de sondar o mistério, o mistério que é a outridade, a singularidade que eu jamais abrangerei e apreenderei, porém que só por intermédio do máximo de uma minha vivência corajosa, intensa e indefesa posso constituir um aparato adequado minimamente à recepção do outro. Eis a vocação!
Bibliografia
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Pdf grátis em: https://psiligapsicanalise.files.wordpress.com/2014/09/bernard-baas-e-armand-zaloszyc-descartes-e-os-fundamentos-da-psicanc3a1lise.pdf
- Contardo Galligaris. Cartas a um jovem terapeuta – Reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos. São Paulo: Planeta de Livros, 2019. 216 p.
- Daniel Omar Perez (Org.). Filósofos e terapeutas em torno da questão da cura. São Paulo: Editora Escuta, 2007. 274 p.
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- Filón de Alejandria. Sobre los Sueños I. [Introducción, traducción y notas de Sofía Torallas Tovar]. Madrid: Gredos, 1997.
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- François Perrier. A formação do psicanalista. [Tradução: Mirian Magda Gianella.] São Paulo: Escuta, 1993. 310 p.
- Janet Malcolm. Psicanálise a profissão impossível – uma investigação jornalística sobre o ofício do psicanalista. Rio de Janeiro: Editora: Relume Dumará, 2005. 183 p.
- Jeans-Yves Leloup. Cuidar do ser – Fílon e os Terapeutas de Alexandria. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2014. 152 p.
- Jean-Yves Leloup, Leonardo Boff. Terapeutas do deserto – de Fílon de Alexandria e Francisco de Assis a Graf Dürckheim. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2013. 176 p.
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- Leda M. C. Barone (Coord.). O psicanalista hoje e amanhã – o II encontro psicanalítico da teoria dos campos por escrito. Editora Casa do Psicólogo, 2002. 291 p. [Coleção: Teoria dos Campos Coleção Psicanalítica.]
- Luís Cláudio Figueiredo. As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. 2ª. ed. São Paulo: Escuta, 2012. 232 p.
- Sigmund Freud. “A questão da análise leiga – conversações com uma pessoa imparcial.” (1926). In: Edição Standard Brasileira – Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 175-248.
Vídeo
- Murmúrios da História: Os terapeutas – Lúcia Helena Galvão:
Notas e referências
[1] José Carlos Fernández. Murmúrios da História: os Terapeutas. https://www.nova-acropole.pt/a_terapeutas.html. Acessado em 29/abril/2020.
[2] Conforme exposto em por Francesca Calabi no capítulo 5 do livro “Fílon de Alexandria” (São Paulo: Paulus, 2014), tópico “Os terapeutas e os essênios”, página 99 e seguintes.
[3] Jeans-Yves Leloup. “Cuidar do ser – Fílon e os Terapeutas de Alexandria”. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2014. 152 p.
[4] Ricardo Madeira. “Os terapeutas nos tempos de Jesus.” Publicado em Correio Fraterno.
http://www.correiofraterno.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=465:os-terapeutas-nos-tempos-de-jesus&catid=15&Itemid=2. Acessado em 2/maio/2020.
[5] Peço a boa vontade dos que lêem para esta nota a seguir, um pouco extensa, mas imprescindível, retirada do importante “Dicionário de Psicanálise”, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, verbete “Psicoterapia”, páginas 624-625:
A palavra psicoterapia como tal generalizou-se no vocabulário clínico a partir de 1891, quando Hippolyte Bernheim publicou Hipnotismo, sugestão e psicoterapia.
Historicamente, a psicoterapia nasceu, ao mesmo tempo, do antigo “tratamento moral”, aperfeiçoado pelo alienista francês Philippe Pinel (1745-1826), e do tratamento magnético inventado por Franz Anton Mesmer. No primeiro caso, o médico recorre, no doente, a um “resto de razão” através do qual uma consciência alienada escapa à loucura, e no segundo, ele atribui à existência de um “fluido” (ou magnetismo animal) a causa do distúrbio psíquico.
Em 1784, o marquês Armand de Puységur (1751-1825) foi o primeiro a demonstrar a natureza psicológica e não fluídica da relação terapêutica, ao substituir o tratamento magnético por um estado de “sono acordado” ou sonambulismo, que o médico escocês James Braid (1795-1860) denominaria de hipnose em 1843. Depois disso, foi Bernheim quem substituiu o hipnotismo (como método de hipnotização) pela sugestão, abrindo assim caminho para a idéia de uma terapia fundamentada numa pura relação psicológica.
Abandonando a hipnose, a sugestão e a catarse, e depois dando o nome de transferência à relação entre o médico e o doente, Sigmund Freud aperfeiçoou, com a psicanálise, o único método moderno de psicoterapia baseado numa exploração do inconsciente e da sexualidade (libido), considerados como os dois grandes universais da subjetividade humana. No plano clínico, ele é também o único a reivindicar a transferência como fazendo parte dessa universalidade e a propor que ela seja analisada no próprio interior do tratamento, como protótipo de qualquer relação de poder entre o terapeuta e o paciente e, portanto, entre um professor e um aluno. Sob esse aspecto, a psicanálise é herdeira de uma tradição socrática e platônica da filosofia. Nessa perspectiva, a psicoterapia analítica (ou psicanalítica) é uma psicoterapia que se apóia nos princípios teóricos da análise freudiana, sem adotar todas as condições da técnica psicanalítica clássica.
Desde seu nascimento, a psicanálise viu-se em conflito, em todos os países do mundo, com as outras formas de psicoterapia, fosse por se haver amalgamado com estas a ponto de desaparecer como tal, fosse por lhes haver oposto uma forte resistência, provocando cisões ou dissidências. As outras duas grandes escolas da psicoterapia do século XX são a escola de psicologia analítica fundada por Carl Gustav Jung e a escola de psicologia individual fundada por Alfred Adler, ambas nascidas de dissidências com a escola fundada por Freud.
As outras escolas de psicoterapia do século XX nasceram, de um modo geral, do molde freudiano. Têm como ponto em comum rejeitar os três grandes conceitos freudianos: o inconsciente, a sexualidade e a transferência. Ao inconsciente freudiano elas opõem um subconsciente de natureza biológica ou uma consciência de tipo fenomenológico; à sexualidade no sentido freudiano, preferem uma teoria culturalista da diferença sexual, ou então, uma biologia dos instintos; e por fim, opõem à transferência uma relação terapêutica derivada da relação de sugestão. Daí a tentação permanente do retorno ao hipnotismo. Ligam-se a esse tronco originário do hipnotismo e da sugestão, por um lado, o chamado método do “sonho acordado dirigido”, inventado em 1945 pelo médico francês Robert Desoille (1890-1966), e que deu origem a um movimento, o Groupe International du Rêve Éveillé Dirigé de Desoille [Grupo Internacional do Sonho Acordado Dirigido de Desoille] (GIREDD), e, por outro lado, a narco-análise, ou método de exploração do psiquismo através da injeção de barbitúricos que provocam um estado de sonolência. Praticada a partir de 1932 e reativada depois da Segunda Guerra Mundial, a narco-análise não é exclusivamente da alçada do tratamento psíquico, uma vez que junta a este uma farmacologia e uma investigação quase policial do inconsciente do sujeito.
Todas as escolas de psicoterapia do século XX — havia no mundo 500 delas em 1995 — são identicamente organizadas. Sejam elas nascidas de dissidências, cisões ou separações do freudismo, todas são representadas por um líder, que serve simultaneamente de promotor da cura, terapeuta e mestre pensante para seu grupo. Criadas por homens ou mulheres que têm, cada um deles, uma doutrina própria, e que, tal como Freud, colocam-se em vida como fundadores de um sistema de pensamento, essas escolas em geral desaparecem após a morte de seus fundadores, dos quais, então, resta apenas a obra. Se, vez por outra, transmitem uma tradição clínica, elas freqüentemente desaparecem, deixando espaço para outras escolas organizadas segundo o mesmo modelo. Com efeito, com a morte do mestre, a maioria dos terapeutas formados em seu serralho se dispersa, quer para criar novas escolas, cada qual dotada de um novo mestre, novas técnicas e novos métodos, quer para se ligar a escolas já existentes.
Dentre os principais representantes das múltiplas escolas de psicoterapia, alguns tiveram um impacto importante, ligado à força de sua doutrina, como Wilhelm Reich, Karen Horney, Jacob Levy Moreno, o criador do psicodrama, ou ainda o norte-americano Carl Rogers (1902-1987), inventor da chamada análise não diretiva, que procura livrar o eu de todos os seus aspectos psicopatológicos através de entrevistas informais. A estes juntam-se os culturalistas inspirados no neofreudismo (Abram Kardiner, Erich Fromm), a escola de Palo Alto — onde se firmaram, sob a liderança do antropólogo Gregory Bateson, as primeiras experiências de terapia de família — e a terapia de grupo propriamente dita, com suas múltiplas variantes; seus principais representantes, na história do freudismo, foram Trigant Burrow e Wilfred Ruprecht Bion.
Outros terapeutas, em contrapartida, destacaram-se mais por sua extravagância do que pela qualidade de sua doutrina: é o caso de Poul Bjerre, por exemplo, ou de Harry Stack Sullivan, um brilhante psiquiatra dissidente de todas as escolas, simultaneamente culturalista e defensor de uma abordagem original da esquizofrenia. Convém também notar que dois colaboradores do Instituto Göring, Harald Schultz-Hencke e Johannes Heinrich Schultz, deram início a duas correntes de psicoterapia: a neopsicanálise, no caso do primeiro, e o training autógeno ou método de relaxamento, no do segundo.
Elisabeth Roudinesco, Michel Plon. Dicionário de psicanálise. [Tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge.] Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[6] Ernesto Duvidovich (Org.) Diálogos sobre formação e transmissão em psicanálise. São Paulo: Editora Zagodoni, 2013.
http://www.zagodoni.com.br/detalhes.asp?id=144&produto=2735#.Xs10SVVKjIU
[7] Monica Seincman. “Diálogos sobre formação e transmissão em psicanálise.” – Resenha. J. psicanal., v.46, n.85: 283-286, São Paulo jun. 2013. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352013000200024. Acessado em 10/maio/2020.
[8] Christian Ingo Lenz Dunker. “Psicanalista Global? Formação do Psicanalista e Transmissão da Psicanálise entre Norma e Contingência”. In: Ernesto Duvidovich (Org.) Diálogos sobre formação e transmissão em psicanálise. São Paulo: Editora Zagodoni, 2013. Cap. 1, p. 17-31.
http://www.zagodoni.com.br/detalhes.asp?id=144&produto=2735#.Xs10SVVKjIU
[9] Tem-se praticado uma miscelânea de designações para a pessoa que se submete a um tratamento psicoterápico: paciente, analisando, analisante, cliente até, etc. O designativo – paciente – exigiria, “per se”, uma análise, o que nos escapa no atual propósito. Paciente é o sujeito passivo, que sofre uma ação. Todavia, para a psicanálise é preciso que ele tenha uma postura ativa de busca de autoconhecimento e de mudanças a partir do que dele próprio passa a conhecer/saber. Como dizem os psicanalistas, o “paciente” deve se implicar ativamente no processo. Um paciente proativo… Etimologicamente, paciente do latim “patiens”, “patientis”, particípio presente de “pati”, que equivale a sofrer, suportar, experimentar um processo ou uma ação que parte de uma causa alheia, estranha, quer dizer aquele que sofre ou suporta em si a ação de algo ou de alguém tanto faz se uma enfermidade ou uma afronta de outro. Opõe-se a “agens”, “agentis”, que é aquele que atua (Ver: http://etimologias.dechile.net/?paciente.)
[10] Rosa Broner Worcman. Vir a ser psicanalista: caminho sem fim. Psyche (Sao Paulo), v.12, n.22: 181-198, jun. 2008. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382008000100014. Acessado em 10/maio/2020.
[11] José Waldemar Thiesen Turna. “Operadores de Formação: Modificação e Competência.” In: Ernesto Duvidovich (Org.) Diálogos sobre formação e transmissão em psicanálise. São Paulo: Editora Zagodoni, 2013. Cap. 11, p. 130-137. http://www.zagodoni.com.br/detalhes.asp?id=144&produto=2735#.Xs10SVVKjIU
[12] Dicionário Caldas Aulete Digital – verbete “vocação”: Acessado em 15/maio/2020. http://www.aulete.com.br/voca%C3%A7%C3%A3o
[13] Vocação é ação e o efeito de chamar, vem do verbo “vocare”. Em termos religiosos se refere à inclinação para a vida eclesiástica; em termos mais mundanos, significa a natureza humana de alguém para seguir uma determinada atividade ou profissão. O verbo latino “vocare” vem da raiz indoeuropéia “wekw”, com o significado de falar, presente em palavras como “épica” e “voz”. Ele gerou um grande número de palavras no português, como: vocábulo, convocar, provocar, equivocar, advogado, etc. Conforme:
http://etimologias.dechile.net/?vocacio.n
[14] Enrique Mandelbaum. “Notas sobre a formação em Psicanálise.” In: Ernesto Duvidovich (Org.) Diálogos sobre formação e transmissão em psicanálise. São Paulo: Editora Zagodoni, 2013. Cap. 12, p. 138-146. http://www.zagodoni.com.br/detalhes.asp?id=144&produto=2735#.Xs10SVVKjIU
[15] Geraldo Luiz De Mori, Virgínia Buarque. Corpos ditos pelo outro: Uma leitura de Michel de Certeau. Horizonte Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião (PUC-Minas), Belo Horizonte, v. 14, n. 44: 1538-1564, out./dez. 2016. (Citando CAUSSE, Jean-Daniel. Le corps et l’expérience mystique. Analyse à la limière de Jacques Lacan et de Michel de Certeau. Cahiers d’Études du Religieux. Recherches Interdisciplinaires, v. 13, jul. 2014.) Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2016v14n44p1538. Acessado em 22/maio/2020.
Agradecimento
O autor agradece as importantes observações e sugestões da educadora e psicóloga Maria José Siqueira.
Só alguém com muito conhecimento teórico , experiência de vida e vocação para psicanalista poderia escrever um artigo tão intenso e profundo. Parabéns. É um belo texto que me servirá, com certeza, como referência para futuros estudos e reflexões.