A ERA DO TÓXICO

A ERA DO TÓXICO

Clotilde Leguil. L’ère du toxique: essai sur le nouveau malaise dans la civilisation. Paris: PUF, 2023. 240 p. https://www.puf.com/lere-du-toxique

Sommaire

I – Le moment du toxique

II – Une substance d’un nouveau genre

III – La flèche du toxikon

IV – Le nom d’un mal nouveau

V – Angoisse réelle

VI – Du poison au toxique

VII – La dérive toxique de Törless

VIII – « Kant avec Sade », le Surmoi toxique

IX – L’addiction et la jouissance de l’amour

X – La révolte contre le pouvoir toxique

XI – L’irrespirable

XII – Les crimes de la jouissance future

XIII – L’injection de mots

XIV – Catharsis, Antidote

O livro trata da evolução do termo tóxico e a ampliação de seu uso para outros aspectos que não somente o das substâncias químicas, como era originariamente. Parece ser bastante instigante, pois aborda os diferentes empregos da palavra, desde sua origem até as aplicações atuais, ligadas aos comportamentos sociais. O deslise do termo literal para o sentido metafórico é explorado.

Na página da editora na Internet (https://www.puf.com/lere-du-toxique) pode-se ler:

“O termo tóxico, de um século para o outro, parece ter mudado de significado. Do sentido literal, no que diz respeito aos paraísos artificiais e aos narcóticos de todos os tipos, passamos para um sentido metafórico. O que é esta nova substância, que escorregou entre os seres, que desliza entre os interstícios do mundo, entre as palavras e as coisas, e que fala da nossa fragilidade e da nossa angústia? Tóxico refere-se ao que envenena nossas vidas, sujeito a discursos que nos dominam. Se a flecha do toxikon nos chega dos Gregos, ela completou uma trajetória que inverteu a História e agora está plantada na carne de cada pessoa. Os primórdios do tóxico podem ser encontrados nos tormentos de Törless, o herói de Musil[1], mas também na paixão de que Emma, a heroína de Flaubert, sofre, como se envenenada por seu próprio prazer. Para explorar esta nova presunção, Clotilde Leguil demonstra com Lacan a dimensão tóxica do Superego contemporâneo e a desobediência do gozo quando este esquece o desejo.” (Tradução livre – Grifo meu.)

O que é “o tóxico”?

O termo, em português, vem do grego antigo, pelo verbete (em grafia aportuguesada) toxikon (em caracteres gregos – τοξικός). Tem-se que toxikon seria o produto intencionalmente obtido e adequado para se lambuzar pontas de flechas e lanças, com finalidade bélica ou de caça. Era, portanto, um produto que matava ou lesionava o atingido. A partir daí, num longo processo, evolui para caracterizar atualmente, a substância química isolada ou mistura de substâncias ou produto que tem propriedade de causar doença ou morte em seres vivos, ou seja, propriedade de causar intoxicação por conta de seu potencial tóxico, que é o mesmo que toxicidade. Toxicologia é a ciência, área do conhecimento humano, devotada a compreender os agentes tóxicos, sua existência, sua ocorrência, seus comportamentos, mecanismos de ação, etc. Os propósitos para esse esforço são muitos, ou para o bem ou para o mal, e têm se diversificado com o passar do tempo: desde reconhecer a planta ou o alimento seguro, até praticar a ‘arte’ do envenenamento; desde caracterizar o tóxico de um envenenamento até predizer o grau possível de uma exposição (contato) sem superveniência de risco explícito, etc.[2]

Não é surpreendente, portanto, que a palavra tóxico, como bem demonstra a autora, tenha agora adentrado os terrenos do comportamento social, das relações humanas e da psicanálise, guardando o mesmo sentido epistêmico que encontra na Toxicologia, isto é, aquilo que vem de fora (ou de dentro), atinge o corpo/mente e por ele é absorvido, causando uma ruptura da homeostase fisiológica ou psíquica, produzindo, por fim, um quadro de sinais e sintomas de uma doença.

Pode-se ver no Youtube o vídeo (cerca de 1 hora), “Clotilde Leguil – L’ère du Toxique”, em que a autora, entrevistada por Rodolphe Adam, apresenta sua obra e dá explicações.[https://www.youtube.com/watch?v=u0QyWXZf2ow&t=265s&ab_channel=librairiemollat ]

Na página L’Echo da Internet (endereço https://www.lecho.be/opinions/general/clotilde-leguil-nous-vivons-a-l-ere-du-toxique/10493086.html ) encontraremos uma muito boa entrevista dada pela autora ao jornalista Simon Brunfaut: “Nous vivons à l’ère du toxique“. A seguir são apresentados (em tradução livre) dois trechos significativos de tal entrevista (um do início e outro ao final).

P: “ ‘Tóxico mudou de significado ao mesmo tempo que mudamos o mundo’, você escreve. O que a palavra ‘tóxico’ significa hoje?
Clotilde: Hoje vê-se uma nova extensão do termo ‘tóxico’, como se tivesse entrado na nossa linguagem, tanto para expressar desconforto no campo do íntimo como no do social e da política.
É empregado agora para descrever desconforto no relacionamento com outras pessoas. O que é novo. Anteriormente, o tóxico era utilizado apenas em relação a substâncias, entorpecentes ou produtos industriais. Tóxico em seu novo sentido refere-se tanto ao íntimo quanto ao ecológico. É isto que coloca os nossos corpos em perigo, enfraquece-os, na privacidade das nossas vidas, mas também na escala da civilização. O termo tóxico espalhou-se para outros, para o amor, para a gestão, para o progresso, para a sobre-exploração dos recursos da Terra, etc. Vivemos na era tóxica.”
 
P: “Como nos desintoxicamos? Quais são os antídotos?
Clotilde: Chegamos a um momento em que o ‘impulso pelo prazer’ se volta contra nós mesmos. Penso que hoje há cada vez mais lucidez permitindo questionar os rumos tomados pela civilização. São muitos os apelos a um outro discurso, ao decrescimento, à sobriedade, à desaceleração. Do ponto de vista da psicanálise, o único remédio para o tóxico é o desejo – o desejo de saber o que me envenenou. É, portanto, a palavra que abre espaço à falta e ao sujeito. Somente o desejo pode nos desintoxicar. O desejo nos impulsiona para o lado dos vivos, já o prazer desenfreado aniquila tanto o desejo quanto a possibilidade de relacionamento com o outro.” (Grifos meus.)

Tentei apontar para os leitores um breve flash do que é tratado nesse livro, ainda sem tradução para o Português, e que certamente poderá nos trazer reflexões novas sobre as abordagens possíveis à questão dos tóxicos, que agora extrapolam a dimensão das substâncias químicas, no sentido literal, para as dimensões psíquicas e sociais. Fica o registro de uma obra que merece ser lida.

A ERA DO TÓXICO

[1] Robert Musil, importante escritor da Alemanha do século XX, inicia sua carreira em 1906, publicando O jovem Törless, obra na qual surgem análises psicológicas que, depois, seriam características do expressionismo alemão. O livro aborda a vida de um adolescente vivendo num internato severo e é uma das primeiras denúncias dos sistemas totalitários europeus que surgiriam após a Primeira Grande Guerra. Por meio dos acontecimentos com Törless, evidencia-se claro o protesto contra todo e qualquer sistema que só se impõe à custa da violação da liberdade do indivíduo.

Robert Musil. O jovem Törless. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2ª. ed., 2019. 144 p. https://www.novafronteira.com.br/o-jovem-torless

[2] André Rinaldi Fukushima, Fausto Antonio de Azevedo. História da Toxicologia. Parte I – breve panorama brasileiro. Revinter – Revista Intertox de Toxicologia, Risco Ambiental e Sociedade, vol.1, nº1, out, 2008. [Revista eletrônica, disponível no endereço: http://www.revistarevinter.com.br/minhas-revistas/2008/v-1-n-1-2008-volume-1-numero-1-outubro-de-2008-sao-paulo/9-historia-da-toxicologia-parte-i-breve-panorama-brasileiro ]