Ainda o sujeito…

No recente 9 de setembro, Marco Focchi lançou um texto em seu blog, que, oportunamente ao artigo Tecnologias de produção do eu que antes publiquei (https://tempoanalise.com.br/tecnologias-de-producao-do-eu-consideracoes-primeiras/), traz a importante discussão a respeito de se saber o que é o sujeito para a Psiquiatria (e, nas entrelinhas, o que é para a Psicanálise atual). Pelo valor e profundidade de tal curto texto, e sua conexão com minhas preocupações – e, ainda, recorrendo aos longínquos tempos de meu curso de italiano no Instituto Cultural Ítalo-brasileiro (Casa di Dante), ousei traduzi-lo aqui, com todo assumido risco de haver cometido erros grosseiros.

Por uma psiquiatria que não esqueça o sujeito

Marco Focchi

Marco Focchi (https://www.marcofocchi.com/) é diretor do Instituto Freudiano para a Clínica, a Terapia e a Ciência, em Roma (Instituto autorizado de acordo com o art. 3 da lei 18. 02. 89, n. 56 – D.M. 31. 12. 93). Escreveu vários livros e realiza conferências e seminários regulares na Itália e no exterior.

A psiquiatria contemporânea se encontra num momento crítico em que, espremida pelas pinças da neurociência, corre o risco de anular sua própria tradição histórica, para permitir reabsorver-se completamente na tradição de uma medicina que, a partir de Claude Bernard, passou a fazer parte do discurso científico, com todas as vantagens, mas também com todos os limites que isso implica. A necessidade de reconhecimento científico como única garantia de eficácia, de fato cancela a função da palavra, reduz o sujeito ao cérebro, procura sua própria função terapêutica na correlação imediata entre diagnóstico e medicamento.

Os psiquiatras certamente são sensíveis a esses problemas. Mario Maj, presidente da Associação Mundial de Psiquiatria até 2011, indica claramente a crise do paradigma pós-kraepeliniano manifestado com a publicação do DSM V*. Em 1980, o DSM III marcou o divórcio entre psiquiatria e psicanálise, inaugurando uma forma de classificação que devia realizar a inspiração subjacente de Kraepelin, como fundador dos modernos diagnósticos psiquiátricos, expandindo, especificando e definindo os critérios. Em 2013, esses critérios explodiram, estendendo-se para medicalizar até os comportamentos mais cotidianos e provocando a reação enérgica de Allan Frances, o curador da edição anterior do DSM.

Portanto, torna-se urgente para a psiquiatria, se não quiser que sua peculiaridade desapareça, restabelecer a conversa com a psicanálise, interrompida em 1980, e encontrar as fontes de uma tradição que não reduz suas operações às de uma subsidiária subordinada à indústria farmacêutica, que não apaga a palavra, que não reduz o sujeito aos circuitos determinísticos das redes neurais.

Na Itália, essa tradição – que não se relaciona com fontes kraepelinianas**, e vem, em sua fonte original, da versão binswangeriana*** da psiquiatria e que depois se transforma em um compromisso institucional social radical – é reconhecível na obra de Franco Basaglia (1924-1980)****. O psiquiatra veneziano foi um grande inovador no campo da saúde mental e marcou uma etapa muito importante com sua crítica à instituição manicomial. Tal crítica não foi apenas teórica, mas deixou para trás uma lei, implicou numa reforma com uma reorganização significativa da assistência psiquiátrica hospitalar e territorial e levou a Itália a ser o primeiro e até agora único país que aboliu hospitais psiquiátricos.

O que podemos dizer sobre o encontro de Basaglia com a psicanálise? Certamente foi um encontro pouco proveitoso. Basaglia criticava a psicanálise: acusava-a de privatizar o conflito, perdendo o nexo entre o plano individual e o plano social; depois, imputava-lhe o objetivo de perseguir, na cura, uma normalização do sujeito para adequá-lo à ordem vigente; considerava determinística a psicanálise, porque tudo é decidido pelo passado, sem espaço para invenção ou novidade; acrescentava que a psicanálise lida com desejos e não necessidades, sonhos e não com a concretude na qual o sujeito é imerso diariamente. Basicamente, podemos dizer, as críticas de Basaglia à psicanálise são as mesmas de Lacan, porque Basaglia conhecia a psicanálise dos anos sessenta, a mesma contra a qual Lacan levantou suas objeções. Basaglia talvez não tenha conseguido perceber que a necessidade, filtrada pela linguagem, manifesta-se inevitavelmente como desejo, e que não há antinomia entre os dois termos, mas a abertura ao social através da noção de Outro, o protesto contra uma cura projetada como adaptação e como forma de normalização, a rejeição de um determinismo cego que opacifica a escolha como um ponto constitutivo do sujeito, são todos os temas em que Lacan trabalhou.

Portanto, seria importante retomar o diálogo com Basaglia hoje, partindo justamente das críticas comuns, de uma visão da psicanálise que não corresponde ao estereótipo da ortodoxia modelo dos anos 1960. É uma tentativa que também iniciamos no Instituto Freudiano, convidando psiquiatras que hoje são herdeiros de Basaglia e que tentam levar adiante sua tocha num mundo em que a orientação científica geral segue na direção oposta. Existem velhos preconceitos a serem superados, novos termos a serem colocados em jogo, novos sintomas a serem discutidos e que não estão enquadrados nem são enquadráveis no DSM.

É necessário reviver o confronto com uma psiquiatria que não se afunde na pura farmacologia, que não reduza sua própria intervenção à identificação diagnóstica a ser correlacionada com um remédio químico. Basaglia falava com o louco, ainda o sentia, não o considerava uma mera parte defeituosa da humanidade, um descarte da razão para confinar na zona periférica dos distúrbios ou da desvantagem.

Após a descoberta, no início dos anos 50, da clorpromazina, o primeiro antipsicótico no sentido moderno, que marca o ponto de virada farmacológico da psiquiatria, Jean Delay foi o primeiro psiquiatra, em St. Anne, a administrá-lo a seus pacientes. Seu comentário, após o início do experimento, foi significativo: “Você não pode mais ouvi-los!” Claro, antes os loucos gritavam e, depois de tomada a droga, os gritos cessaram. Ele não os sentia mais. A partir deste momento começa a era em que você também não os ouve mais. Não é mais necessário, porque eles não gritam mais.*****

* Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). O quint traz mais de 300 doenças ou transtornos.

** Emil Kraepelin (1856-1926), psiquiatra alemão, é referido como o criador da moderna psiquiatria e da genética psiquiátrica. Sustentava que as doenças psiquiátricas são principalmente causadas por desordens genéticas e biológicas. Após demonstrar a inadequação dos métodos antigos, Kraeplin desenvolveu um novo sistema diagnóstico. Suas teorias psiquiátricas dominaram o campo da psiquiatria no início do século XX e a base dessas teorias continua sendo utilizada. Ele contrariava a abordagem freudiana que tratava e considerava as doenças psiquiátricas como causadas por fatores psíquicos. Sua descrição clínica da psicose maníaco depressiva e da demência precoce (hoje chamada esquizofrenia) influenciou gerações de psiquiatras a verem no transtorno psiquiátrico uma expressão de doença orgânica do cérebro, a qual poderia ter uma história natural da doença diferente para cada diagnóstico.

*** Ludwig Binswanger (1881-1966) vem de família de médicos destacados. O avô homônimo, Ludwig Binswanger der Ältere (1820-1880), fundou o “Bellevue Sanatorium”, em Kreuzlingen. O tio Otto Ludwig Binswanger (1852-1929) foi famoso neurologista e psiquiatra suíço, professor de psiquiatria na Universidade de Jena. Em 1907, Binswanger formou-se em medicina na Universidade de Zurique e ainda jovem trabalhou e estudou com destaques de sua época, como Jung, Bleuler e Freud. Apesar de discordar das teorias de Freud, conservou a amizade com ele até sua morte, em 1939. De 1911 a 1956, Binswanger dirigiu a área médica do Sanatório de Kreuzlingen. Seu trabalho teve grande influência da filosofia existencial, especialmente de Heidegger e Husserl. Estudando fenomenologia, Binswanger afastou-se da psicanálise e deu início, na década de 1930, a uma nova metodologia terapêutica. Em 22/setembro/1950, no Primeiro Congresso Internacional de Psiquiatria realizado em Paris, apresentou esta proposta com o nome de Daseinsanalyse.

**** Para saber sobre Franco Basaglia, biografia, obras, etc. consultar o site da Fondazione Franco e Franca Basaglia: http://www.fondazionefrancobasaglia.it/biografia.html

***** Começa aí o processo, hoje intensíssimo, de medicalização da saúde mental (e do comportamento…). Não é coincidência que, a partir disso, haja também a explosão de produção e lançamentos da indústria farmacêutica mundial do setor, pari passu (e vice-versa) ao número de definições de transtornos mentais e dos critérios para tanto. A respeito, sugiro a leitura da matéria com a Professora Maria Aparecida Affonso Moysés: A epidemia é de diagnósticos, não de transtornos mentais, publicada em https://www.ufmg.br/90anos/a-epidemia-e-de-diagnosticos-nao-de-transtornos-mentais-diz-especialista-da-unicamp/, bem como uma visita detalhada ao site Despatologiza: https://www.despatologiza.com.br/.