Conhecer-se, moderar-se e ser
A principal tarefa na vida de um homem é a de dar nascimento a si próprio.
Erich Fromm (Análise do homem.)
Conhece-te a ti mesmo.
Nada em excesso.
É.
Pergunto: as três frases acima expressam sugestões? Lemas? Imperativos? E com qual propósito? Quem as disse? Quando? Quais os autores? Tanto quanto pode ser lacônico o exato conteúdo que cada uma carrega, suas histórias, autorias, interpretações o são igualmente.
Elas estão inscritas no Oráculo (algo assemelhado hoje a um nosso santuário) de Delfos, mais precisamente na pronau do templo de Apolo (deus do sol, da profecia, da música, da cura, do conhecimento verdadeiro, patrono da sabedoria e grande arqueiro). De Atenas a Delfos são cerca de 185 km, que podem ser feitos de carro, ônibus ou trem (no caso do trem, de Atenas a Tithorea e desta a Delfos).
Na primeira vez que Apolo foi a Delfos, deparou-se com o antigo Oráculo de Gaia, que PÍton, a grande serpente, filha de Gaia, guardava. Esta serpente perseguira Leto, mãe de Apolo, na sua gravidez, e havia espalhado praga na área rural perto do monte Parnaso. Por tais motivos, Apolo a matou. Todavia, como Pítia era um ser sagrado, Apolo teve que passar por uma purificação e criou em Delfos os Jogos Píticos, como homenagem à serpente, cujo nome foi dado à sacerdotisa do oráculo: Pítia [cf. NATIONAL GEOGRAPHIC. Guia visual da mitologia no mundo. Matthew Bullen et al. (Trad. Maria Gênova, Andreia Moroni.) São Paulo: Editora Abril, 2010. p. 132-135].
A cidade de Delfos, em verdade uma aldeia, que hoje já não mais existe, era tida pelos gregos de então como o “umbigo do mundo”, por conta do mito de que Zeus procurando pelo ponto médio da Terra, mandou duas águias voarem de extremos opostos do mundo, uma em direção à outra, e elas se encontraram em Delfos. Tal ponto de encontro das águias foi demarcado com uma pedra oval, o ônfalo (umbigo, em grego). À Delfos, região central da Grécia, na encosta do monte Parnaso, acorriam, no tempo de seu esplendor, pessoas desde as mais simples às poderosas, de todos os cantos do mundo helênico à procura das profecias divinas, que eram proferidas pelas sacerdotisas. A atividade délfica remonta ao tempo de Homero (século IX a.C.) e se estende por vários séculos, até o segundo depois de Cristo, momento em que já se encontra em decadência.
A crença era de que Apolo falava por meio da Suprema Sacerdotisa designada Pítia. Assim, quando se cogitava uma empreitada importante, o Oráculo era consultado e do deus Apolo se obtinha um vaticínio em linguagem de difícil compreensão – a linguagem sibilina.
O gnōthi seauton (grego transliterado de γνωθι σεαυτόν) ), no latim foi reduzido ao nosce te ipsum, equivalendo em português ao famoso – e como que socrático – conhece-te a ti mesmo, aparentemente tinha o propósito de estimular os frequentadores à reflexão. Talvez esta frase tenha sido a causa que levou Sócrates, após sua interação com o oráculo e consigo mesmo, conhecendo-se profundamente, saber que nada sabia… e com isso ser honrado pelo oráculo: “Sócrates é o mais sábio de todos os homens, pois é o único que sabe que não sabe.”
Assim, conhecer-se – e ao máximo possível – é algo que o próprio Sócrates praticava e preconizava, e, para ele, o ser humano consciente de si seria incapaz de agir com maldade. É verdade que um valor da mesma ordem também se verifica nos ensinamentos de outros sábios da antiguidade, como Lao Tse, Confúcio, Gautama (o Buda) e mesmo Cristo. Conhecer a si mesmo, na forma da possibilidade, de acordo com o aforismo grego original, quer dizer, na linha do si e singular para o coletivo, pelo menos (i) aceitar seus limites e fraquezas; (ii) também poder melhor conhecer os outros; (iii) lembrar-se de quem é e, assim, conciliar-se com sua própria história e sua identidade; (iv) por fim, ver e entender seu lugar no Universo (ou Cosmo, do grego Kosmo = mundo), compreendendo-se uma peça de um todo, com a importância de sua contribuição, mas com a humildade de saber que o sistema integral pode prescindir de sua particular existência. Sublinhe-se que se conhecer no nível maior possível pode ser o máximo a que se consiga chegar de conhecer ao Universo e a Deus (Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses – seria a frase original). A psicanálise, ao lado da filosofia e das religiões, cada uma por meio de seus métodos, ensaia nos auxiliar nessa jornada em busca do autoconhecimento.
O aforismo é vinculado a vários autores e a polêmica é grande. Fazem parte da lista: Bias de Priene; Cleóbulo de Lindos; Heráclito; Misão de Quene; Periandro; Pítaco de Mitilene; Pitágoras; Quilon de Esparta; Sócrates; Sólon de Atenas; Tales de Mileto. O mais provável é que tanto esta quanto as outras inscrições (são várias no total) fossem provérbios populares de tempos idos e depois atribuídos a tantos diferentes autores. Ao longo da história, muitos autores, cientistas, religiosos, cineastas, poetas, etc., têm se referido a este aforismo, como Platão (citando Sócrates nos Diálogos); Xenofonte; Aristófanes; Thomas Hobbes (O Leviatã); Alexander Pope (poema Um ensaio sobre o homem); Carl Linnaeus (Systema Naturae); Benjamin Franklin (Almanaque do pobre Richard); Jean-Jacques Rousseau (Prefácio de Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens); Ralph Waldo Emerson (no poema Gnothi Seauton, que mostra seu entendimento de que “conhecer a si mesmo” equivalia a conhecer a Deus, que para ele existia dentro de cada um); Friedrich Nietzsche (Além do Bem e do Mal); Papa João Paulo II (introdução da Encíclica Fides et Ratio); Lana e Andy Wachowski (frase sobre a porta do Oráculo, nos filmes The Matrix e The Matrix Revolutions).
A expressão “conhece-te a ti mesmo” nos traz um elo entre dois elementos componentes. De um lado a gnose, função ou capacidade de conhecer, que é uma faculdade e, desde Aristóteles até Kant (e outros), pressupõe algum tipo de método e tem pré-requisitos. E conhecer-se a si implica em sutilezas do método de conhecimento e aprendizado, pois que aqui o indivíduo é ao mesmo tempo sujeito cognoscente e objeto de conhecimento. O outro elemento do binômio é justamente o sujeito, ele e sua singularidade, esse imenso e interminável oceano chamado sujeito. (Tive a oportunidade de aprofundar um pouco mais tal temática no texto Tecnologias de produção do eu, disponível no endereço da web: https://issuu.com/tempoanalise/docs/01_tecnol.produ__o_eu-p.portal-ta-p .) E diante da frase, diante do conhecer a si, como apelo e comando, apelo que vem da curiosidade e da vaidade, comando que vem de determinantes éticos, o homem reage como alguém que, em definitivo, perdeu o sossego, a paz (paz no significado de desconhecimento, de ignorância). Aquele que “conheceu” que há o desafio de conhecer-se, tornou-se um perseguidor de si mesmo, e esta talvez seja a condição maios nítida da natureza humana: perseguir-se até ao ponto de ver atrás de si, mesmo nos becos escuros, como, por exemplo, por onde andava o Bernardo Soares em seu Livro do desassossego. A respeito desse “conhece-te a ti mesmo” nos disse Nélida Piñon: “É uma frase que, ao semear em torno a esperança e a discórdia ao mesmo tempo, cutuca o homem com a vara da vaidade. Insinua-lhe a condição de deus – um deus a mais entre os homens – caso retire os véus da alma e assuma, a que preço seja, os próprios atos”…
Mēdén ágan, em português Nada em excesso, é a segunda inscrição. Platão, em sua obra Protágoras, enaltece esses dois ensinamentos. Em comparação à primeira inscrição, esta parece aduzir um ensinamento de cunho prático, da ordem da frônese, ao recomendar um distanciamento de qualquer tipo de vício, hábito ou dependência, insistindo, portanto, na liberdade do ser humano. Logo, aqui já adentramos reflexões da esfera do moral e do ético.
É uma incitação a que se reprima a Húbris (ou Hibrys), que significa excesso, seja de orgulho seja de autoconfiança. Para Aristóteles, trata-se de humilhação para a vítima, não pelo que ela tenha feito ou pudesse fazer a você, porém por descaso seu em relação a ela. Húbris não é acerto de contas por erros cometidos, o que seria vingança; é o descaso que alguém tem pelos outros, ou pelos deuses, acreditando que pode fazer o que desejar.
Niobe, humana, que possuía uma prole numerosa (= excesso), sete filhos e sete filhas, e não soube seu lugar no Cosmo (ferindo a máxima gnōthi seauton), desafiou Hera, esposa de Zeus, que tinha apenas um casal de filhos (Apolo e Ártemis), estimulando os cidadãos a venerá-la como deusa, mais do que a Hera. Esta, então, determinou a Apolo e Ártemis que, com suas setas invisíveis, matassem os filhos e filhas, respectivamente, de Niobe. O pintor da Corte de Napoleão Bonaparte, Jacques-Louis David, retratou, em 1772, o desespero de Niobe buscando proteger os filhos e filhas da fúria de Hera.
Assim como no caso do “Conhece-te a ti mesmo”, também aqui tem-se uma expressão binomial. De um lado o “Nada”, que equivale a nenhuma coisa, atitude, prática, hábito, desejo, ímpeto, etc. Nenhuma de tais coisas deve ser buscada, usada, consumida… em excesso; e a dose, o limite, o quantum suficiente, terá que ser determinado pela própria pessoa envolvida, isto é, o sujeito, antes de mais nada sujeito-de-si, que, se supõe, aprendeu a (como) se conhecer. Do outro lado, o excesso: que excede o normal ou o desejável; que sobra; abuso, desmando, violência; descomedimento (Segundo o Aulete Digital: http://www.aulete.com.br/excesso). O excesso, já nos ensinava Paracelso (1493-1541) desde a Idade Média, é tóxico, e, deveras, a farmacologia e a toxicologia têm demonstrado sobejamente que a mesma substância química ativa na dose adequada é fármaco e em dose excessiva é tóxico. Ao praticarmos um excesso, por vezes continuada e insistentemente, estamos no território da dependência daquilo, do vício, da fixação, da adicção, enfim, no campo do que pode ser a compulsão.
Assim, O Nada em excesso também nos remete à Psicanálise, quando pensamos na mencionada compulsão, processo incontrolável, enraizado no inconsciente, que lança o indivíduo em situações penosas, reproduzindo experiências antigas sem se recordar daquela original, produzindo, ao invés disso, a sensação viva de se tratar de algo motivado somente na atualidade. Freud articulou as idéias de compulsão e repetição (ver Mais-além do princípio de prazer, 1920) para explicar o processo inconsciente e, como tal, impossível de dominar, que “sujeita” o sujeito a reproduzir sequências que, na origem, causaram sofrimento, e que conservaram esse caráter doloroso. A compulsão à repetição provém do pulsional, e deste mantém o caráter de uma insistência conservadora. (Ver o Dicionário de Psicanálise de Elizabeth Roudinesco e Michel Plon, p. 656.)
O E (Ε ε, Έψιλον em grego moderno, Épsilon em português – não se confunda com Υ υ, Úpsilon), a terceira inscrição, é a que, deveras, deu origem ao maior número de discussões. Plutarco, que foi sacerdote de Apolo em Delfos por mais de 20 anos, escreveu três tratados a respeito do Oráculo[1], e um deles é justamente chamado “Do E de Delfos”: trata-se de uma reunião de sábios e cada um manifesta seu ponto de vista a respeito do que é o E de Delfos. Em grego, esta letra E também significa 5, por se tratar da quinta letra do alfabeto, e há um repertório de simbolismos propostos a respeito. Amônio de Atenas (filósofo do século I, professor de Plutarco, o qual escreveu sua biografia – que não chegou até nós, e, segundo quem, Amônio, apesar de especialista em Aristóteles, era platónico e não peripatético) diz que este E quer significar “é”, vale dizer, Apolo, como divindade, “é”, enquanto os humanos são móveis, ou seja, mudam e não permanecem. Aqui não se pode deixar de invocar o ensinamento bíblico do Antigo Testamento, em Êxodo, segundo livro do Pentateuco, 3.14, que nos revela: “E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós.” “Eu sou o que sou” é um dos versos mais famosos da Torá; Hayah significa “existiu” ou “era” em hebraico; Ehyeh é a primeira pessoa do singular da forma imperfeita, traduzida nas Bíblias em Português como “serei”.
[1] Os outros dois são: Do oráculo da Pítia e Do declínio dos oráculos. Esses três textos constituem os Tratados Délficos, datados de 120 a 125 d.C., escritos nos últimos anos de vida de Plutarco (Ver o trabalho Plutarco e Delfos, de María Aparecida de Oliveira Silva, Praesentia, 13:1-16, 2012 (http://erevistas.saber.ula.ve/index.php/praesentia/article/view/4233). Além de Plutarco, Pausânias, geógrafo e viajante grego do século II, autor da Descrição da Grécia, também informou muito a respeito do oráculo de Delfos.
Para fechar esse despretensioso apanhado, eu diria que a sequência dessas três inscrições no templo de Apolo, em Delfos, como que nos dá uma receita de realização para a vida, um passo a passo: conhecer-se e moderar-se para, então, ser. À medida que se aprofunda e se consolida o autoconhecimento (como uma prática corajosa e permanente, por via de diferentes técnicas possíveis), pode-se ser capaz de exercer a moderação, conquistando-se, com isso, a liberdade perante as seduções ilusórias da vida (mormente nesses tempos atuais de tantos estímulos, apelos e imperativos), como há dois milênios já fazia o sábio Sócrates. E todo o ser humano que é capaz de se conhecer no limite e automoderar-se, este é!
Para assistir:
- Miguel Ángel Elvira (historiador, catedrático, escritor da Universidade Complutense de Madri. Foi diretor do Museu Arqueológico Nacional em Madri): Delfos, la morada de Apolo
Para ler:
- Franklin Leopoldo e Silva. O conhecimento de si. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, São Paulo: Casa do Saber, 2011.
- Nélida Piñon. Conhece-te a ti mesmo. http://www.academia.org.br/artigos/conhece-te-ti-mesmo
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