Kierkegaard: quando a filosofia não expulsa a religião

Fausto Antonio de Azevedo

(Farmacêutico-Bioquímico, Mestre em Toxicologia, Especialista em Saúde Pública, Psicanalista)

Mário José de Souza Neto

(Engenheiro Químico, Mestre em Química de Polímeros)

A verdade é a subjetividade

Eu me percebo. Sou eu quem me percebe. A verdade de minha existência só é percebida por mim. Não se trata, pois, de uma verdade universal objetiva, como minha altura ou sexo ou a cor de meus olhos, que qualquer um pode medir ou atestar. Não se trata de algo que pode ser conhecido, mas apenas vivido, e, obviamente, vivido somente por mim. Minha existência é particular, concreta e subjetiva, e não universal, abstrata e objetiva, respectivamente.

O parágrafo acima é uma tentativa – quiçá inconveniente – de operar uma super síntese de um traço vigoroso do pensamento de Kierkegaard. Por outro lado, ele reconhece, deveras, que há fatos e verdades objetivas, porém que não incidem de nenhuma forma sobre minha existência nem a definem.

As verdades objetivas se apoiam no quê, enquanto as subjetivas se ancoram no como: e isso quer dizer que se ancoram em valores. Aqui nós estamos, portanto, não frente a uma questão de conhecimento, ou de como conhecer, mas, sobretudo, diante de uma questão ética.

Em contraste às críticas a Hegel, Kierkegaard tinha muito gosto pelo Sócrates da maiêutica1, aquele que não ensinava, mas provocava os outros a buscarem o conhecimento de si por si. Contudo, não era muito esperançoso quanto à vontade e/ou capacidade de nós, mortais, querermos, de fato, atingir níveis avançados de autoconhecimento, vale ainda ressaltar: níveis aprofundados do conhecimento de nossa subjetividade (se é que isso é possível: há que se ter um certo grau de cuidado ou de reserva com essa moda atual de se autoconhecer). A propósito, nos dias atuais parece que o mais evidente é o quanto as pessoas fogem de si, ou, por outra, o quanto se encastelam na pseudorrazão de que tudo quanto necessitam saber, sabem (a clínica psicanalítica tem endossado firmemente tal percepção). Kierkegaard dirá algo como não se poder enfrentar a teimosia e que a estratégia deve ser o ataque pela retaguarda. Eis aí um outro aspecto que o distingue do cânone textual filosófico: a forma como realiza sua comunicação de que a verdade é a subjetividade (interioridade), que é uma forma indireta: o variado número de gêneros literários a que nosso autor lança mão (ensaios, cartas fictícias, aforismos, parábolas, diários, novelas), sem, entretanto, abandonar a argumentação filosófica convencional, e sob o estilo de ironia, sátira, etc.

Kierkegaard pergunta o que significa ser cristão: ter determinadas crenças sobre Deus e a Igreja? Ter certas práticas religiosas? Participar de determinadas cerimônias? O rito? Não, quem assim procede não é necessariamente um cristão, porque pode estar vivendo a doutrina de forma falsa, por estar seguindo o texto, a linguagem, mas não o espírito, a essência da prática. Logo, a verdade cristã não será uma verdade objetiva, como a praticada pela ciência em seus propósitos e domínios, mas será uma verdade da fé, como um caminho para chegar a Deus. Por isto, nos sinaliza Kierkegaard, fica tão difícil ao que busca a transcendência pelo uso de verdades objetivas conseguir um resultado favorável a seu empenho.

Para Kierkegaard, o cristianismo não guarda relação com verdades objetivas, com fatos, com o quê, porém com o como, como se trata de viver interiormente numa relação com Deus. Em suas palavras:

O cristianismo é espírito; espírito é interioridade; interioridade é subjetividade; subjetividade é essencialmente paixão e, em seu máximo, uma paixão infinita e pessoalmente interessada na felicidade eterna.2

Um ponto é fundamental: a idéia de cristianismo precisa ser apreendida, apropriada e transformada em realidade pelo indivíduo. Não pode se formar a partir de uma verdade objetiva exterior que represente exatamente a realidade. Ou seja, há-de se fazer a devida diferenciação entre apreensão e representação. Apropriação, como mencionado, se identifica com próprio, aquilo que é de si mesmo, vale dizer, o indivíduo cristão toma para si a idéia de cristianismo e dela se apropria e a elabora, por meio da usina de sua subjetividade, transmutando-a, então, em verdade-para-si.

Cabe muito bem neste ponto, um trecho da elegante fala de Emmanuel Carneiro Leão, em conferência na Academia Brasileira de Letras:

Em sua existência, Kierkegaard vive sempre a angústia de uma passagem histórica, que se improvisa num risco e se arrisca na tensão de muitas improvisações. Junto com Marx e Nietzsche, no século XIX, e com Freud, depois, no século XX, Kierkegaard é um revolucionário da metafísica. O que isso quer dizer? Chama-se de metafísica toda realização histórica que se dá e acontece com a pretensão de um fundamento inconcurso, por ser absoluto, seja esse fundamento material ou imaterial, ou ambos ao mesmo tempo. Marx liga, no sentido de fazer depender, a revolução social à infraestrutura de um sistema de produção, de igualdade e distribuição. Nietzsche liga a revolução histórica do niilismo ao Poder da Vontade do Eterno Retorno. Freud liga a revolução de todo comportamento à dinâmica inconsciente do Outro, seja minúsculo ou maiúsculo, para lembrar Lacan. Kierkegaard liga a revolução do indivíduo à existência angustiada e paradoxal, em cada homem, de um cristianismo originário. É por isso que merece ele o título de apóstolo da existência. Só que apóstolo, aqui, tem o sentido originário do verbo grego apo-stellw, ho apostollos diz o enviado pela e para a existência dos indivíduos.3

Kierkegaard, ao dizer “a verdade é a subjetividade”, não está imaginando algum tipo de relativismo. Ele está interessado, de fato, em como alguém existe como cristão (ou como ser humano); está interessado nesse como. A existência de cada qual não é explicada em termos científicos objetivos, precisamente por não se tratar de uma propriedade comum, universal, mas, como antes indicado, é particularíssima, singularíssima, e é irreprodutível fora de cada pessoa.

Nesse diapasão, o trabalho do autor dinamarquês se ancora em levar seu leitor a uma forte experiência de sua própria existência subjetiva (por isso é muito comum se afirmar ter-se ele tornado o pai do existencialismo – como expressão da vida individual profundamente analisada, não como edificação de um denso e único sistema, qual em Hegel, cuja filosofia ele critica4). Seus escritos podem ser vistos como um construto estilístico, cujo propósito é ético ou prático: induzir o leitor a se apropriar de sua própria vida, torná-la sua, tornar sua a sua existência. Vale registrar que Kierkegaard, além de ter sido um pensador de grande profundidade, era, ainda, um escritor de recursos admiráveis, como enfatizam os especialistas, e dono de um texto notável. Nos Diários ele escreve:

O que conta é compreender a que estou destinado, perceber o que a Divindade realmente quer que eu faça; a questão é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a idéia pela qual esteja disposto a viver e morrer. De que me serviria encontrar uma verdade objetiva, abrir caminho por meio dos sistemas dos filósofos e ser capaz de lhes passar revista quando fosse necessário? […] De que me serviria poder explicar o sentido do cristianismo, poder expor muitos fenômenos particulares, se não tivesse para mim mesmo e para minha vida um sentido realmente profundo? […] De que me serviria que a verdade estivesse à minha frente, fria e nua, indiferente ao fato de eu reconhecê-la, e me produzisse mais um estremecimento temeroso que uma devoção crédula?5,6

A seu respeito, disseram ou fizeram alguns grandes filósofos posteriores:

  • Ludwig Wittgenstein: “Kierkegaard foi de longe o mais profundo pensador do século passado. Kierkegaard era um santo” (século passado = séc. XIX).
  • Martin Heidegger: “Kierkegaard foi o único pensador religioso à altura de seu tempo.” Especialistas concordam em que é inegável a influência do dinamarquês na obra heideggeriana.7
  • Jean-Paul Sartre: “Kierkegaard foi talvez o primeiro a marcar, contra Hegel e graças a ele, a incomensurabilidade entre o real e o saber.” Há estudiosos que entendem que Sartre não tenha, talvez, valorizado na forma devida a contribuição filosófica de Kierkegaard e, de alguma maneira, buscou diminuir o conteúdo religioso de seus escritos.
  • Miguel de Unamuno: chamava de irmão o filósofo dinamarquês e aprendeu seu idioma para lê-lo na origem. É notória a identificação espiritual entre ambos, e, mais do que isso, a convergência mesmo, tanto em questões de existência humana concreta quanto de relação com a transcendência8. Unamuno introduz Kierkegaard no universo espanhol9. Segundo Solé10, pode-se perceber a importância de Kierkegaard para o pensador espanhol ao se ler obras suas como os romances Niebla e San Manuel Bueno, Mártir.
  • Theodor Adorno: sua tese de pós-doutorado (1931) foi sobre Kierkegaard, com a temática “A construção do estético”.
  • Karl Jaspers: enquanto trabalhava num hospital de psiquiatria, travou contato com a obra de Kierkegaard e, a partir disso, percebeu que aquilo que era normalmente chamado de doença mental às vezes não passava de intensa crise existencial.11

A lista dos influenciados prossegue e pode incluir, sem que se a esgote:

Albert Camus, Emanuel Lévinas, Fiódor Dostoiévski, Gabriel Marcel, Hannah Arendt, Henrik Ibsen, Jacques Derrida, Karl Barth, Martin Buber, Mikhail Bakhtin, Simone Beauvoir. Também no cinema: Ingmar Bergman e Woody Allen.

No Brasil, onde o dinamarquês nos chega nos mesmos ventos que trazem Heidegger e Sartre, dois nomes devem ser mencionados como escritores e pensadores que receberam clara influência kierkegaardiana12:

  • Jackson de Figueiredo Martins (Aracaju, 9/outubro/1891 – Rio de Janeiro, 4/novembro/1928), intelectual e político, que se dedicou ao jornalismo, ao ensaio, à crítica, à filosofia.
  • Otávio de Faria (Rio de Janeiro, 15/outubro/1908 – Rio de Janeiro, 17/outubro/1980), jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, autor da grande obra testemunhal A Tragédia Burguesa.

Søren Aabye Kierkegaard

“Algum dia até, não somente os meus escritos, mas a minha vida e todo o complicado segredo do seu mecanismo serão minuciosamente estudados”, afirmou Kierkegaard a seu respeito. O vaticínio tem-se feito cumprir com o existencialismo contemporâneo, este que propõe objetivamente uma Kierkegaard-Renaissance, colocando no centro do interesse filosófico o pensamento do dinamarquês13, um filósofo único e solitário. E não deixa de haver uma ironia aí, bem ao estilo dele, posto que quanto mais ele avança sobre o tempo posterior a si como grande vulto da filosofia, mais nos vêm à mente suas próprias palavras abdicando da condição de filósofo:

O presente autor de modo algum é um filósofo. Não entendeu qualquer sistema de filosofia, se é que existe algum, ou esteja terminado. O seu fraco cérebro já se intimida suficientemente ao pensar na estupenda inteligência que é preciso a cada um, especialmente hoje, quando toda gente fez alarde de tão prodigiosos pensamentos! Ainda que se possa formular em conceito a substância toda da fé, não quer dizer com isso que se alcance a fé, como se nós a penetrássemos ou tivesse ela se introduzido dentro de nós. O presente autor de modo algum é um filósofo. E, sim, poetice et eleganter, um amador que não redige sistema nem promessas de sistema; não é culpado de tal excesso nem a ele se consagrou. Para ele, escrever é um luxo que pode ganhar tanta maior significação e evidência quanto menos leitores e compradores tiver para suas obras.14

Søren Aabye Kierkegaard nasceu e cresceu no acanhado ambiente cultural da Dinamarca de seu tempo. Veio ao mundo em 5 de maio de 1813, em Copenhague. Sua mãe, Ane Sørensdatter Lund Kierkegaard, trabalhara como criada na residência da família antes de se casar com o pai, Michael Pedersen Kierkegaard. Era mulher serena, simples e não formalmente educada, que não é diretamente citada nos livros do filho, apesar de haver afetado, ao que parece, seus escritos mais tardios. O pai era homem melancólico, ansioso, fortemente devoto e inteligente, leitor do filósofo alemão Christian Wolff. Dos sete filhos do casal, Søren foi o caçula, quando seus pais eram já relativamente idosos (ele 56, ela 45). Cinco de seus irmãos morreram antes dele e o próprio Søren viveu apenas 42 anos (morre em 11 de novembro de 1855, após ser internado num hospital em 2 de outubro, por conta de uma queda na rua que paralisou suas pernas). Em sua família, principalmente no concernente ao pai, Kierkegaard julgava ver a marca de um destino trágico e misterioso. Numa anotação pessoal, aos 22 anos, dizia que seu pai possuía uma culpa obscura, cuja descoberta foi o “grande terremoto” de sua vida (o primeiro – dois outros se seguiram: o rompimento do noivado e a polêmica com o semanário satírico O Corsário15). Não há definitiva clareza do que tenha sido tal culpa paterna (ter ofendido a Deus quando criança, pela extrema precariedade em que vivia, ou engravidado a mãe de Søren ainda durante o luto e sem estar casado), mas tal culpa, ao forçar um relacionamento mais complexo com o pai, acabaria por fazê-lo desenvolver uma compreensão “existencialista” de sua vida.

Talvez algo se explique a partir de dados biográficos de passagens de diários não publicados, particularmente o rascunho de uma história chamada de “o grande terremoto”, que aponta uma experiência espiritual, em 19 de maio de 1838. Alguns primeiros estudiosos de Kierkegaard comentaram que Michael, o pai, se julgava recebedor da ira de Deus e, por isso, nenhum de seus filhos sobreviveria mais do que ele próprio. Acreditava que seus pecados pessoais (como dito, amaldiçoar o nome de Deus na juventude; engravidar – violentar? – a mãe de Kierkegaard durante o ano de luto da morte da primeira esposa16) eram merecedores do castigo que Deus lhe aplicara. Todavia, apesar de cinco dos seus sete filhos haverem, de fato, morrido durante sua vida, Søren e seu irmão Peter Christian Kierkegaard, sete anos mais velho, ambos sobreviveram à morte do pai. Peter se tornaria bispo da igreja luterana na cidade de Aalborg.

Destinatário da forte melancolia religiosa de sua família, este “espinho na carne”, a insistência em se entregar ao verdadeiro sentido divino da existência fez com que Kierkegaard não realizasse seu ideal ético e humano de casamento com Regina Olsen17, que conhecera em 1837, quando ela, jovem e alegre, tinha 14 anos – oficializa o noivado em 1840 e o rompe em 1841. Embora arrebatado, ele refletia: “um penitente como eu, com (…) a minha melancolia (…) já devia ser suficiente”. Portanto, ele intentava proteger a amada da angústia de sua busca espiritual. Tampouco desejava que o casamento se transformasse numa dificuldade para isto. Todavia, sofreu até o fim da vida a perda de seu amor:

Eu serei teu ou te será permitido me ferir tão profundamente, no mais íntimo de minha melancolia e de minha relação com Deus que, ainda que de ti separado, continuo sendo teu.

No seu entender, a entrega radical ao ideal cristão de vida não se compatibilizava com a serena existência de um homem casado. Ele queria ser, antes de tudo, cristão. Entretanto, a ruptura do noivado pôs a burguesia de Copenhague contra ele.

Kierkegaard sofreu muitos ataques, por conta de sua forte crítica a toda cultura européia, à própria Igreja dinamarquesa (em sua época, a religião luterana era oficial na Dinamarca; o ensino religioso era obrigatório; os integrantes do clero tinham status de servidores do Estado dinamarquês e Kierkegaard entendia que esse sistema de controle e proteção estatal contrariava os princípios básicos do cristianismo; de fato, desencorajava uma verdadeira religiosidade, cuja natureza é fortemente individual, não institucional), à filosofia hegeliana e à filosofia romântica, no que elas se mostravam exageradamente parciais: a forte ênfase no universal e no coletivo em prejuízo do individual. Isto gerava um pretexto ideal para retirar a responsabilidade individual perante a própria vida, responsabilidade que também influenciará o social. Hegel, em especial, era percebido como grande perigo, um “guru” daqueles tempos, proporcionalmente como os da autoajuda de hoje, que intencionava tornar tudo muito “fácil”. Kierkegaard afirma, em 20 de janeiro de 1839:

Hegel é um Johannes Climacus, que não toma o céu de assalto empilhando montanhas sobre montanhas, como os gigantes, mas entra nele a golpes de silogismos.18

João Clímaco19 escreveu Escada para o paraíso (em grego, Klímax toû paradeísou), livro no qual ele explica como, em 30 etapas, pode-se alcançar a perfeição cristã por intermédio de certas práticas ascéticas. Portanto, compara Kierkegaard, Hegel é como o monge Climacus, mas que em vez de práticas ascéticas emprega os silogismos, a dialética, para atingir o absoluto, a realidade em sua totalidade. Assim, falando em dialética, o pensamento de Hegel é a antítese do de Kierkegaard. Para Hegel, não é o indivíduo que vai avançando “na escada” para atingir um conhecimento do mundo como objeto, mas é o próprio universo em sua totalidade (a qual nos inclui a todos) que vai, pouco a pouco, tomando consciência de si mesmo. Portanto, com Hegel não só o universo é o objeto conhecido como, ao mesmo tempo, é o objeto conhecedor20. O cosmos, o universo, a totalidade absoluta, podem ser tomados como nomes de Deus e a religião é uma maneira para se compreender a realidade, mas como a estrutura do real é lógico-racional, apenas os conceitos filosóficos conseguem captar sistemática e completamente a verdade do todo. Assim, para Hegel, a verdade do cristianismo estaria não fora, mas implícita em seu sistema filosófico. Logo, se queremos entender a realidade em seu aspecto metafísico – e também a essência do cristianismo, bastaria estudar a Enciclopédia de Hegel, sem que fosse necessária uma própria averiguação. Desde aí a idéia do guru da ajuda, o facilitador, a sério – um anestesiologista… Hegel nos dá uma escada, como o monge, um protocolo para alcançar a verdade, sem que precisemos de fé ou paixão. Não fazem falta empenho pessoal, compromisso, decisão… Para Kierkegaard, todavia, o sistema hegeliano é apenas uma Torre de Babel, uma escada para o paraíso, com a qual se pode facilmente chegar ao céu, mas ele sugere, ao contrário, tornar tudo difícil. Assim como, no texto bíblico, a explosão de idiomas acabou por obstruir a construção da famosa Torre (Gênesis 11,1-9), a multiplicação de autores e pontos de vista na obra de Kierkegaard (“com um rosto rio, com o outro choro”) impede um caminho fácil e um destino certo (e não podemos deixar de pensar em Drummond e na pedra no meio do caminho, quando pensamos em Kierkegaard e sua angústia como pedra no nosso caminho para a liberdade…), mas com o propósito de cobrar a reflexão e um real conhecimento pessoal do compromisso cristão. A estratégia filosófica de Kierkegaard é um entrave para a máquina hegeliana, deixando bastante aclarado que a existência do indivíduo não cabe em silogismos, estando para muito além deles.

Kierkegaard criticava, incluindo a Igreja, a ingênua aceitação sem questionamento das premissas burguesas e das idéias de ordem. Dizia que em seu tempo quase não se via paixão e engajamento em valores espirituais significativos. Para ele, ser cristão era seguir na prática, a valer, toda a atitude deixada por Jesus: “O Cristianismo é de uma seriedade tremenda (…). Ser Cristão é sê-lo no espírito, é a inquietude mais elevada do espírito (…)”. No entanto, transcorridos dois mil anos “tudo se tornou superficialidade na cristandade atual”. Kierkegaard se choca diante da realidade última de que, dentre todas as chamadas heresias, ninguém se dê conta da mais perigosa e sutil delas: a de “fingir ou brincar de cristianismo”, como o faziam as igrejas católica e protestante.

Kierkegaard cursou a Escola de Virtude Cívica, na qual estudou latim e história. Depois, matriculou-se na Universidade de Copenhague (1830) e estudou teologia, mas desviou-se para a filosofia e a literatura. Semelhantemente ao ocorrido na vida de outro grande filósofo, Arthur Schopenhauer, Søren recebeu uma dotação razoável de seu pai, o que lhe permitiu dedicar-se à ocupação de pensar, sem ter que se haver com os meios materiais para sua subsistência21.

Selo dinamarquês, 1955 – o filósofo Kierkegaard

Os pseudônimos

Aludimos antes a um aspecto distintivo entre Kierkegaard e o cânone textual filosófico: a forma indireta de comunicar e o variado número de gêneros literários empregados. E isso nos é trazido por uma plêiade de autores de dentro do autor: os pseudônimos – perto de vinte – a quem ele recorre e que o celebrizaram. E ele os usa mais nas obras filosóficas do que nas religiosas. Há textos em que comparecem dois ou três pseudônimos, cada qual mostrando seu diferente ponto de vista. Se isso pode confundir o leitor, então, bingo!, Kierkegaard logrou seu intento: o leitor, ao deparar-se num mesmo texto com diferentes autores e seus particulares pontos de vista – ao invés de um só autor e sua autor-idade que “ensina” ao leitor o que pensar, ele, o dito leitor, não assumiria atitude defensiva e perceberia que seria ele a escolher uma dentre as teses apresentadas. Portanto, a responsabilidade pela opção é dele, a responsabilidade pela existência dessa opção para si/em si é dele. No limite, é dele a responsabilidade por sua existência e ela não pode ser alienada, terceirizada, coletivizada. Ele e sua existência são particulares, não públicos. Eis aí o estilo indireto em plena potência e operação. Eis a similitude com o método maiêutico socrático. Eis aí o chamamento à responsabilidade e à ética cristãs.

De acordo com Solé: “uma convicção essencial na prática de atribuir um autor a cada livro, inclusive a partes diferentes de livros: a convicção de que a verdade nunca pode ser abstrata. Tem que ser comunicada por uma voz singular, por um existente concreto. Mesmo quando adota, de um modo experimental, uma perspectiva que não é a do autor, deve haver uma consciência particular que a construa e a transmita.”22

Segundo Kierkegaard: “… uma só palavra enunciada por mim, pessoalmente, em meu próprio nome, seria um esquecimento impertinente de mim mesmo, o que por si só, teria como resultado, sob o meu ponto de vista dialético, anular essencialmente os pseudônimos.”23 Cabe polemizar e perguntar se todos esses outros autores dentro da obra kierkegaardiana seriam mesmo pseudônimos ou, mais até, alguns seriam heterônimos do autor.24 Pseudonímia ou hetronímia? O diplomata, filósofo e ensaísta Sérgio Rouanet fixa uma posição clara:

Conversando com Cleonice Berardinelli sobre a óbvia semelhança que existe nesse ponto entre Kierkegaard e Fernando Pessoa, dei-me conta da importância crítica de distinguir entre pseudônimos e heterônimos Os primeiros são nomes falsos, e os segundos são literalmente “nomes de outros”; Kierkegaard trabalha com pseudônimos; Pessoa, com heterônimos. Neste, parece haver realmente uma Spaltung, uma cisão do Eu, sua divisão em vários “outros”, como Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares, e na qual o próprio Fernando Pessoa parece ser apenas mais um desses outros, sem nenhum privilégio ontológico com relação às demais figuras da heteronímia. Já Kierkegaard recorre à pseudonímia, usando nomes supostos, como o agente secreto que às vezes ele dizia ser, sem se expor a nenhum processo de desintegração do Eu, porque tem plena consciência de estar utilizando uma simples ficção metodológica, destinada a ilustrar o caráter múltiplo e paradoxal da existência. Se isso é verdade, não parece que Adorno tenha cometido um erro de interpretação muito grave atribuindo a um só e mesmo filósofo – Kierkegaard – obras assinadas por autores diferentes.25

Assim:

  • Victor Eremita foi um dos pseudônimos de Kierkegaard. Em sua obra Ou-ou (Um ou outro; em dinamarquês: Enten – Eller), que surge em dois volumes, em 1843, este pseudônimo (em latim: eremita vitorioso) responde pela editoria. O texto traz uma teoria da existência humana assinalada pela distinção entre um modo de vida estético, essencialmente hedonista, e a vida ética, baseada em compromisso. Na primeira parte do livro ele aborda o tema estético e se identifica apenas por “A”. Na última seção desta parte, o Diário de um Sedutor, surge o Johannes Climacus. A segunda parte do livro vem sob o pseudônimo “B”, mas, por vezes, enfocando a Ética, o alterna para “Juiz (Judge) William”. Ao chegar aos leitores, a autoria da obra era nebulosa, estando oculto sob diversos nomes o de seu real autor.
  • Johannes de Silentio escreve Temor e Tremor, reflexão a respeito do significado religioso do sacrifício de Isaac por Abraão.
  • Constantin Cosntantius é o autor da parte primeira de A repetição. Trata-se de um psicólogo maduro e cético. Na segunda parte surge O jovem, personagem central26, que escreve cartas a Constantin.
  • Vigilius Haufniensis escreve O Conceito de Angústia.
  • Nicolaus Notabene assina os Prefácios.
  • Hilarius Bookbinder é o editor de Estádios do caminho da vida.
  • Johannes Climacus, filósofo pagão, é o autor de Migalhas filosóficas e Pós-escrito definitivo e não científico às “Migalhas filosóficas”.
  • Anti-Climacus, o oposto a Johannes Climacus, é quem escreve A doença até a morte e Prática do cristianismo.27

Marcos de sua filosofia

Kierkegaard debruça-se sobre a ética cristã e a Igreja, indaga as provas puramente objetivas do cristianismo, aprofunda-se na diferença qualitativa infinita entre o humano e o divino, na finitude e temporalidade do homem versus a infinitude e eternidade de Deus, e na relação subjetiva do indivíduo com o Deus, por via da fé.

Seu empenho filosófico passa muito pela reflexão da maneira pela qual a pessoa vive como um único indivíduo, e confere prioridade à realidade humana concreta em confronto ao pensamento abstrato, realçando a importância da escolha e do compromisso pessoais28. Trata-se, pois, de uma fenomenologia do espírito, mas tal que crescentemente vai diferenciando sujeito de objeto; o espírito não se dissolve na totalidade, ao contrário, se afirma: aqui, a idéia hegeliana de tese, antítese e síntese, portanto, não tem lugar, e a construção do eu e da espiritualidade sobressai como um compromisso do indivíduo com sua determinação. Não podemos nos esquecer de que o século XIX está sob domínio absoluto dos preceitos da razão, de uma racionalidade universalista e totalizante, e não há lugar para qualquer pensamento que não se inscreva nesse domínio.

Os temas capitais da filosofia de Kierkegaard são: a Angústia, o Absurdo, a Autenticidade, o Desespero existencial, o Cavaleiro da fé, a Era atual, a Teoria dos três estádios da existência. A seguir, trataremos de dois deles.

A Angústia

Quem tem de escolher tem que sofrer.

Provérbio alemão

Quem passou pela vida em branca nuvem

E em plácido repouso adormeceu,

Quem não sentiu o frio da desgraça,

Quem passou pela vida e não sofreu,

Foi espectro de homem, e não homem,

Só passou pela vida, não viveu.

Francisco Otaviano

Vivemos um tempo em que a angústia29, a tristeza, a perplexidade, o recolhimento, estão rigorosamente proibidos. Hoje predomina o imperativo da felicidade-perfeição; é-se obrigado a ser/parecer feliz. Comanda-nos a tirania do gozo (Lacan já falava disso) e, para tanto, mídia, psicologia da propaganda, espetáculos, se associam a fim de nos oferecer e permitir nosso consumismo em grande escala, como o novo grande Totem – mágico!, que nos suprime as faltas e vazios existenciais. E, de resto, no plantão, sempre atentas, a laboriosa indústria farmacêutica mundial da neurofarmacologia a promover a panacéia de antidepressivos, soníferos, pílulas da felicidade, como o soma30 de Admirável mundo novo, do Huxley, e a gama interminável das psicoterapias e terapias da moda. Não mais podemos ter nem suportar as frustrações. Não podemos viver o não. Veja-se, por exemplo, quão difícil e deformada ficou nossa relação com a morte31.

Para Kierkegaard, a angústia não é um problema nos termos em que a colocamos agora. Ao contrário, para ele (com o que concordamos inteiramente), ela não é um demônio a ser evitado, ela é constitutiva da nossa existência, assim como Freud demonstrou que a castração é constitutiva de nosso psiquismo. A angústia é o estado da alma que me faz estar em profundo contato comigo mesmo, portanto é, antes de mais nada, uma real oportunidade para mais autoconhecimento e mais crescimento pessoal. O mundo exterior, com toda sua volúpia e pirotecnia, não pode me suprir nesse quesito e amadurecimento, exatamente porque nada pode saber de minhas peculiaridades, de minha singularidade: só eu próprio, experimentando o limite de minhas dúvidas e angústias existenciais, poderei dar conta de mim e me enriquecer de valores do ser e do espírito. A angústia, que não é medo, pressentimento, ou o que for dessa ordem, é aquele sentimento que me produz incômodo e mal-estar, mas não pode ser resolvido, nominado, e só pode ser parcialmente neutralizado mediante o trabalho determinado e consciente que elaboro para sua localização e entendimento.

Mostra Kierkegaard que é pela angústia que podemos estabelecer um denso e intenso contato com um dos mais difíceis elementos de análise para a filosofia, que é o instante. O aqui-e-agora. Cobra-nos a que saibamos se em cada exato instante de nossa existência estamos em contato íntimo conosco, vivendo e aprofundando plenamente nossas reflexões a respeito do que somos, ou se estamos apenas sendo levados pelas expectativas que sobre nós são lançadas por outros (mas as endossamos), e que configuram nosso roteiro e, se desatentamos, nos automatizam, roubando-nos a própria personalidade e fazendo-nos repetir, dia-a-dia, as atitudes e práticas que escravizam nossas potencialidades. Pelo contrário, em Kierkegaard a repetição, se feita em nossa plenitude de investigação da própria existência, é elemento não de passado, mas de futuro, de construção, de desbravamento, de redenção que nos permite alcançar o estádio religioso da existência. Kierkegaard, bem ao seu estilo de fina ironia, joga com o binômio maldição/redenção para a repetição, essa mesma que no olhar da psicanálise tem sido tão estigmatizada como um sólido componente das neuroses.

Por trás da angústia que se mantém em destaque, o que Kierkegaard nos traz, em verdade, é a indagação de por qual caminho derivamos da inocência à culpa, passagem esta que acontece por meio do pecado. Ele analisará (quinta seção do primeiro capítulo de O conceito de angústia) o caso de Adão anteriormente à queda, época em que este se achava no estado de inocência, amalgamado de forma imediata à sua condição natural (o que de muito se aproxima aos animais e às crianças bem novas), vivendo em harmonia com seu ambiente, num permanente presente, sem interferências perceptivas de si ou do outro, de bem ou mal, de passado ou futuro. Para Kierkegaard, o que diferencia o homem dos animais – que é o espírito, neste momento de Adão pré-queda ainda está sonhando, não é o atual. Porém, mesmo no tal estado de harmonia de que gozava, Adão pressente um quê a mais, um algo vago, indescritível, ligeiramente inquietante, perturbador, mas que, objetivamente não é nada, todavia é um nada, salienta Kierkegaard, que põe em marcha a angústia. Este nada é “nada” mais do que o substrato da condição humana… Quando o Criador determina a Adão não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, aquele sentimento de angústia torna-se como que determinante. O efeito da ordem divina foi transformar o “não deves” em “eu posso”:

A proibição o angustia porque desperta nele a possibilidade da liberdade. O que tinha passado despercebido pela inocência como o nada da angústia, agora se introduziu nele mesmo, e aqui de novo é um nada: a angustiante possibilidade de ser-capaz-de…32

Agora surgiu para Adão uma dimensão imensa de possibilidades, diferentes entre si, que podem ou não se realizar, mas isso só acontece no futuro, tempo futuro, e ele o que aprende, de fato, é que tal futuro tem um caráter indefinido. Kierkegaard chama esta indefinição de nada, de coisa nenhuma, que vem a ser, exatamente, o “objeto” da angústia: um objeto indefinido. Nesta altura, é importante salientar que a angústia e seu objeto indefinido nos causam repulsão e atração ao mesmo tempo, forçando-nos a viver a experiência de uma liberdade completa, absoluta, de escolha. Esse caráter duplo, ambíguo, da angústia, atração/repulsão, Kierkegaard denominará de antipatia simpática ou simpatia antipática. Tal ambiguidade de nossa angústia é a possibilidade da escolha que faremos, não sua causa.

Ora, é por esse tortuoso, ambíguo e difícil caminho, que saímos da harmonia com a natureza, da infantilidade humana de Adão antes da queda, um Adão que existia, mas ainda não possuía um “eu” (apenas um espírito sonhador, síntese de alma e corpo), para, pelas mãos da angústia existencial, pela descoberta da capacidade, descoberta de ser-capaz-de… de eleger, escolher, ter o poder da escolha na possibilidade múltipla de escolhas – e eis aí, enfim, que começamos a erigir nossa subjetividade: à medida que nos diferenciamos do entorno e fazemos uso de nossa liberdade de escolhas, de decisões, vivendo uma verdadeira vertigem da liberdade33. Destarte, para Kierkegaard, o “eu” será produto de uma conquista, de uma vontade, vale dizer, em vez de um resultado cognitivo, um produto moral.

O homem é espírito. Mas o que é espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas consigo própria. Mais e melhor do que na relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas sim o seu voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem de si própria depois de estabelecida.

O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese. Uma síntese é a relação de dois termos. Sob este ponto de vista, o eu não existe ainda. 34

Então, para Kierkegaard, o eu é uma relação relacionando-se consigo mesma. Os dois pólos desta relação são o corpo (o finito, o temporal, o necessário) e a alma (o infinito, o eterno, a liberdade). Finalmente, ele nos dirá:

Numa relação de dois termos, a própria relação entra como um terceiro, como unidade negativa, e cada um daqueles termos se relaciona com a relação, tendo cada um existência separada no seu relacionar-se com a relação; assim acontece com respeito à alma, sendo a ligação da alma e do corpo uma simples relação. Se, pelo contrário, a relação se conhece a si própria, esta última relação que se estabelece é um terceiro termo positivo, e temos então o eu.35,36(grifo nosso)

Para Kierkegaard o eu se constrói sustentado numa tríade: o corpo, a alma – que se relacionam –, e a própria relação entre ambos. E esta relação tripla é positiva, é uma síntese: A se relaciona intencionalmente com B que se relaciona intencionalmente com C, logo, A se relaciona com C. Uma pura relação corpo-alma, ela só, num formato de díade portanto, seria, para o autor, uma unidade negativa. Para ele, o eu é o espírito, caracterizado pelo volitivo e não pelo cognitivo. A elevação de uma relação corpo-alma apenas para o espírito, instância em que a relação se relaciona consigo mesma então, equivaleria, em Hegel, à passagem da consciência para a autoconsciência, por meio do limite do cognitivo, enquanto em Kierkegaard a sustentação está no volitivo: o eu não é algo naturalmente dado nem é consequência de um processo cognitivo de desenvolvimento dialético, mas é, isso sim, o resultado de uma busca decidida da vontade.

Teoria dos três estádios da existência

Doença do espírito, do eu, o desespero pode como tal tomar três figuras: O desespero inconsciente de ter um eu (o que é verdadeiro desespero); o desespero que não quer, e o desespero que quer ser ele próprio.

Kierkegaard37

Kierkegaard, que acredita na capacidade humana de aperfeiçoamento, desenvolve um esquema, coração de sua obra e uma de suas maiores contribuições para a história da filosofia: o dos três estádios ou modos de existência (além desses, ele propõe, ainda, duas zonas-limite: a ironia e o humor). De certo modo, podemos ver os três estádios como patamares no caminho humano para a liberdade. Os primeiros dois estádios são abordados principalmente no livro Ou isso ou aquilo (Ou ou), e o terceiro principalmente em Temor e Tremor. Para bem entender esta teoria é aconselhável que tenham sido entendidos dois conceitos viscerais da obra kierkegaardiana, que são o de angústia (tratado no livro O conceito de angústia) e o de desespero (destacado na obra O desespero humano).

  1. O estádio estético: a pessoa se sente impotente e se submete ao imediato, sem uma aceitação consciente de um ideal. Não crê em si, nem física nem espiritualmente, para realizar seus desejos, o que a empurra ao desespero e ao pecado. O desejo de prazer imediato implica em que o esteta dê mais peso à possibilidade de realização do que à própria realização. Há três modos de ser do estádio estético, o do paraíso das experiências sensoriais: a sensualidade (representada por Don Juan); a dúvida (por Fausto); o desespero (pelo judeu errante Ahasverus). Kierkegaard entende que muitos românticos e muito do romantismo acham-se aí inseridos. Neste estádio, segundo o juiz William “o estético em uma pessoa é aquilo mediante o qual ela é imediatamente o que é”. Estético (do grego aistesis) equivale a sensação, percepção, e quem se prende a isso busca o prazer sensório, isto é, conferido pelos sentidos. O imediato quer dizer que a relação deste indivíduo esteta passivo38 com seu meio é direta, sem qualquer mediação como reflexão ou escolha, tratando-se, pois, de uma mera e automática resposta. Neste estádio, então, o indivíduo é dado – e não construído volitivamente. A questão que se põe para a vida na esfera estética é que o indivíduo reage apenas à exterioridade, a estímulos de prazer que estão fora dele, a fatores biológicos e sociais, disso se tornando dependente (sobretudo das expectativas sociais sobre si depositadas); não se aprofunda numa interioridade reflexiva e, portanto, não exerce – de fato – sua liberdade. Todavia, é de se saber, o prazer sensual repetido indefinidamente, perde seu encanto, cansa, torna-se monótono, e precisa ser variado – e aí entra o comportamento Don Juan. E o aborrecimento – tédio, é o inimigo mortal da vida estética. Essa monotonia (enfermidade mortal), esse tédio, é que fazem o ser humano desesperar. A monotonia pode levar ao aborrecimento, à melancolia e mesmo a um dado tipo de psicose na qual tudo é possível exatamente por nada mais estar sendo percebido, posto que nada mais se diferencia após a permanente e insistente overdose de gozo sensual. A saída para um prognóstico tão indesejável será, portanto, a passagem para a dimensão do ético, muito embora nada impeça que a pessoa permaneça durante toda a vida na esfera estética das possibilidades.
  2. O estádio ético: a pessoa acata a lei moral e escolhe por si mesma, perseverando na evolução de sua condição humana. Este estádio, pois, se caracteriza pela responsabilidade (compromisso) e pela renúncia. Assim, a vida estética focava o indivíduo e o prazer; já a ética se concentra no bem para a comunidade39. O indivíduo ético possui um eu fixo, estável, claro, em contraposição à identidade fluída, dispersa. do esteta, que, por exemplo, pode recusar o matrimônio pelo aborrecimento do prazer previsível (Don Juan). Kierkegaard fala do marido fiel: o modo de vida ético é aquele do indivíduo que é correto com a família e trabalhador. Não é mais o indivíduo buscador de prazer, mas o que guia sua vida pelo cumprimento do dever, pois encontrou nas leis da moral e da conduta universais um melhoramento para sua existência (não se pode deixar de pensar no Édipo e no Supereu freudianos). Para Kierkegaard, a esfera ética é de transição, mas que não é atravessada de uma vez por todas… O muito importante é que ela aporta uma forma de preparo para o estádio religioso. O cultivo de valores morais e éticos fazem o indivíduo aceitar suas limitações (aceitar a castração) e, assim, o peso da culpa faz-lhe perceber-se como ser individual, o qual, se agir pragmaticamente, poderá ferir a outros que tenham pensamentos e conceitos diferentes dos seus. Eis a lógica de sustentação para o pacto social da convivência. Cada qual possui sua verdade, e a ética nos faz pensar e pesar os atos antes de agir. Noutras palavras, e invocando o discurso freudiano, estamos aqui nada mais nada menos do que diante da dialética: princípio do prazer X princípio de realidade. Mas podemos pensar também que atingir o estádio ético é ter introjetado a lei, absorvido a norma moral, criado o seu Supereu. Lacan, no Seminário 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, se refere a Kierkegaard, a quem também considerou o mais perspicaz pesquisador da alma humana40: “Pai, não vês que estou queimando? Do que é que ele queima? – senão do que vemos desenhar-se em outros pontos designados pela topologia freudiana – do peso dos pecados do pai, que carrega o fantasma no mito de Hamlet com que Freud duplicou o mito de Édipo. O pai, o Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a lei – mas a herança do pai é aquilo que nos designa Kierkegaard, é seu pecado.”41 Em suma, no ser ético a preponderância do existir não está no aspecto cognitivo de sua atuação, mas sim na escolha moral, ética, responsável, que faz para sua vida. Portanto, o ser ético dá ênfase e valoriza seu mundo interior, com trabalho e crescimento, amadurecendo sua subjetividade, aceitando e perscrutando cada aspecto de sua vida, de sua interioridade e de sua história, responsabilizando-se pelo que é e pelo que será. Todavia, uma pergunta se coloca: é possível atingir a perfeição ética? Johannes de Silentio (um dos pseudônimos), na obra Temor e tremor, assinala que diante da perfeição de Deus sempre nos saímos imperfeitos, mesmo em ética, e que a solução para o dilema é a resignação: toda conduta ética num mundo finito é relativa, impraticável desde uma visão absoluta.
  3. O estádio religioso: é o que pode resolver os problemas das duas gradações anteriores, mas é de maior dificuldade para ser assimilado. Não se o apreende pela dialética (hegeliana), porém de modo existencial. Vai além do ético e é o máximo a que se pode chegar; sendo o estádio em que se efetiva a realização do indivíduo. Para Kierkegaard, uma relação religiosa com o mundo nos possibilitará a sensibilidade à nossa própria insuficiência (a condição do ser finito em cuja existência existe o que ele é e o que ele ainda falta ser). No estádio ético, o homem até pode transgredir uma lei estabelecida por homens, entretanto, no estádio religioso, o erro, se ocorrer, será contra leis dadas por Deus; o que equivalerá a pecado. O estádio religioso interdita o ético se o indivíduo estiver frente a uma escolha que implique em uma finalidade maior. O exemplo de Kierkegaard é o de Abraão, ao aceitar sacrificar o próprio filho a fim de que se cumpra a promessa da divindade na qual se crê. O segundo estádio, o ético, não é definitivo na vida do ser, porque aquele que nele chegou tem agora, inexoravelmente, que decidir, tem que fazer a escolha porque tem a liberdade para isso, se volta ao estético ou salta ao terceiro – o religioso. É óbvio que o estádio ético não admite permanência em si: ou nos esclarecemos e compreendemos mais a nossa verdade e, munidos de coragem e compromisso, vamos além, ou, fracassados, e embevecidos pelo prazer do imediato e do mais fácil, recuamos ainda uma vez ao estádio estético. Na esfera religiosa estão os indivíduos que buscam um resgate, ou salvação, diante da morte. Conforme nos diz Torrieri Guimarães:

Evoluindo assim da estética para a ética, e atingindo o estádio religioso, Søren Aabye Kierkegaard tornou-se um lutador intemerato do reino cristão, terçando armas em defesa da legitimidade do direito que o ser humano tem de realizar em si mesmo o martírio redentor, da angústia secretamente sentida, do desespero cultivado na sabedoria, da comunicação secreta, íntima, absoluta com o seu Criador.42

A título de conclusão

Kierkegaard é o filósofo do homem que sofre, do homem que peleja contra sua finitude, do homem que reconhece seu medo e, por isso mesmo, protege-se com sua ironia e do homem que crê. Muito mais do que aquele homem que se assombra diante da natureza ou se surpreende diante da vida, é para esse homem que expõe o tempo todo suas dúvidas e perplexidades que escreve o pensador dinamarquês.

Sua filosofia, ao se vincular bem mais a um subjetivo-existencial do que a um objetivo-racional, parece destoar da tônica filosófica de seu tempo e, ao invés, como tantas outras, de proscrever a religião, a acolhe e a potencializa. Desnecessário insistir em que uma posição religiosa em nada limita a capacidade intelectual. Ele tanto assume corajosamente a fé quanto insiste num caminho de compreensão para mais além do que aquela que fornecia a própria religião, e forja assim toda sua maneira filosófica de pensar e de escrever uma imensa obra, reunião de literatura, romance, filosofia, religião e testemunho humano. Ele pensa como ser humano e a partir da existência do humano, por isso faz-se tão intensamente crível. É de suas inquietações humanas e de suas aspirações (como o cavaleiro da fé) que nos chega um tão extenso, profundo e pertinente exame do que temos sido e somos.

Talvez por sua origem e formação em berço muito religioso ou mesmo, quem sabe, tal dado biográfico nem tivesse importância, o fato é que Kierkegaard nunca se distanciou de uma visão cristã para a humanidade e, por ser humano tanto quanto nós e quanto teria sido o próprio Cristo, conhecendo em seu peito as dores do desejo ferido pela ética da responsabilidade, empenhou-se em desenvolver um modelo para compreensão do homem e da vida que nos auxiliasse a obter, enquanto aqui presentes, um certo grau de paz e felicidade por meio de uma sabedoria do simples, do correto, do bem e do ético. É assim que em Ou ou e em Temor e tremor, com as gradações da vida do estético ao religioso, passando pelo ético, procura nos instigar um modo inteligente de posicionamento diante dos dias e dos fatos, conjugando um pensar racional e objetivo, em escala correta, a uma existência subjetiva rica, apreendida e vivificada.

Inspirados em Kierkegaard dizemos que nem a fé impede a prática de uma filosofia metódica e exigente (da ordem do império da razão), nem a racionalidade rigorosa exclui a inspiração do subjetivo e do superior, da crença, comparecendo uma no ponto em que a outra rareia. E talvez seja exatamente essa comunhão harmonizadora e rica aquilo de que mais necessitamos nos dias atuais.

Bibliografia

  • ALMEIDA, Jorge, VALLS, Álvaro. Kierkegaard. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2007. [Coleção: Filosofia Passo-a-Passo – v. 78.] 78 p.
  • FARAGO, France. Compreender Kierkegaard. 3ª. ed. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2011. 264 p.
  • KIERKEGAARD, Søren A. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano. [Traduções: Carlos Grifo, Maria J. Marinho, Adolfo C. Monteiro.] São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores) [Pdf disponível em: http://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2017/03/Kierkegaard-Cole%C3%A7%C3%A3o-Os-Pensadores-1979.pdf]
  • KIERKEGAARD, Søren A. Diário de um Sedutor e outras obras. Coleção “Os Pensadores”, São Paulo: Ed. Abril, 1989.
  • KIERKEGAARD, Søren A. O conceito de ironia – constantemente referido a Sócrates. [Trad.: Álvaro Luiz Montenegro Valls.]. Petrópolis/RJ: Ed. Vozes, 1991. 283 p. [Pdf disponível em https://drive.google.com/file/d/1zTM27ziYhTByy4aDi5QgwYWjXnTluvsH/view]
  • KIERKEGAARD, Søren A. O Desespero Humano [Col. A Obra-prima de Cada Autor]. São Paulo: Martin Claret, 2001. 128 p. (KIERKEGAARD, Søren A. Desespero – A Doença Mortal. Porto: Editor Rés, 1986. 160 p.)
  • KIERKEGAARD, Søren A. A repetição. (1843) [Trad. José M. Justo.] Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2010. 152 p.
  • KIERKEGAARD, Søren A. Temor e Tremor. (1843) [Trad. Elisabete M. Sousa.] Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2009. 200 p. KIERKEGAARD, Soren. Temor e tremor. (Texto integral.) [Tradução e prefácio Torrieri Guimarães.] Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. (Tradução de: Frygt og Baeven.) 139 p.
  • KIERKEGAARD, Søren A. Migalhas Filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. (1844) 3ª. ed. [ Ernani Reichmann, Álvaro Valls.] Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2011. 160 p.
  • KIERKEGAARD, Søren A. O conceito de angústia – uma simples reflexão psicológico-demonstrativa. (1844) [ Álvaro Valls.] Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2013. 184 p.
  • KIERKEGAARD, Søren A. Obras do amor – algumas considerações cristãs em forma de discurso. (1847) 3ª. ed. [Trad. Álvaro Valls.] Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2013. 432 p.
  • KIERKEGAARD, Søren A. Pós-escrito às Migalhas filosóficas. 1. (1846) [Trad. Álvaro Valls, Marília Almeida.] Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2013. 320 p.
  • KIERKEGAARD, Søren A. Ou-ou – um fragmento de vida (primeira parte). (1843) [Trad. Elizabeth M. Sousa.] Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2013. 475 p.
  • KIERKEGAARD, Søren A. Pós-escrito às Migalhas filosóficas. 2. [Trad. Álvaro Valls.] Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2016. 352 p.
  • KIERKEGAARD, Søren A. Ou-ou – um fragmento de vida (segunda parte). [Trad. Elizabeth M. Sousa.] Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2017. 366 p.
  • SOLÉ, Joan. Kierkegaard – o primeiro existencialista. [Trad. Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. 141 p.
  • STEWART, John. Søren Kierkegaard – subjetividade, ironia e a crise da modernidade. [Trad. Humberto A. Q. Souza.] Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2017. 296 p.

Site

http://sorenkierkegaard.org/

Conferências

Vale muito indicar aqui, para os que se interessaram por tão fascinante autor/pensador e buscam saber mais, as belíssimas Conferências organizadas pela Academia Brasileira de Letras, seja pela profundidade literária, seja pela riqueza interpretativa, seja pela elegância dos estilos.

Academia Brasileira de Letras

1º Ciclo de Conferências – “Existência e alternativas – um olhar sobre Kierkegaard”

  • Conferência: Kierkegaard, a reconstrução da existência

Coordenador: Acadêmico Marco Lucchesi

Conferencista: Acadêmico Eduardo Portella

Data: 05/03/2013

  • Conferência: Kierkegaard e Adorno

Coordenador: Acadêmico Marco Lucchesi

Conferencista: Acadêmico Sergio Paulo Rouanet

Data: 12/03/2013

  • Conferência: Kierkegaard apóstolo da existência

Coordenador: Acadêmico Marco Lucchesi

Conferencista: Emmanuel Carneiro Leão

Data: 19/03/2013

  • Conferência: Kierkegaard, Unamuno e Ortega y Gasset

Coordenador: Acadêmico Marco Lucchesi

Conferencista: Vamireh Chacon

Data: 26/03/2013

Cinema

O filme Ordet (A palavra), do diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer, está baseado na obra de Kierkegaard.

IMDb: https://www.imdb.com/title/tt0048452/?ref_=fn_tt_tt_1

A Palavra (1955)

  • Ordet (original)
  • 2h 6min | Drama, Fantasia | 10 Janeiro 1955 (Dinamarca)
  • Diretor: Carl Theodor Dreyer
  • Escritor: Kaj Munk
  • Artistas: Henrik Malberg, Emil Hass Christensen, Preben Lerdorff Rye
  1. Numa fazenda dinamarquesa o patriarca viúvo Borgen, admirado em sua comunidade, tem três filhos: Mikkel, agnóstico de bom coração, cuja esposa Inger está grávida; Johannes, que acredita ser Jesus; e Anders, jovem, fraco, apaixonado pela filha do alfaiate. Acontece uma disputa de fundo religiosa entre o pai da jovem e o de Anders. Inesperadamente, Inger, doçura e luz da família, tem dificuldades com a gravidez. Vem o médico e uma longa noite porá foco em quatro visões de fé. Johannes será o protagonista do filme e viverá uma forma de transe religioso como consequência de sua profunda leitura de Kierkegaard, que o faz acreditar ser Jesus Cristo e imitá-lo. Em meio à grande crise familiar que se estabelece, ele lança sua fé aos seus familiares e realiza um milagre final, inaceitável para a compreensão racional. O filme está pleno de espiritualidade e misticismo e é filmado num preto e branco austero, sendo considerado um dos máximos absolutos da história da arte cinematográfica.43

Notas e Referências

[1] No diálogo Teeteto, de Platão, Sócrates (séc. IV a.C.) nos conta que sua mãe, Phaenarete (Fainarete), exercia a profissão de parteira, de onde vem o nome maiêutica (em grego maieutike quer dizer “arte de partejar”) dado a seu método, o qual se propõe a “dar à luz” “parir” o conhecimento. O método entende que a verdade está adormecida em nós, e pode nascer aos poucos, ao se responder a um conjunto de perguntas simples, mas perspicazes. Sócrates conduzia tal “parto” em duas etapas: 1. fazia o interlocutor duvidar do próprio saber sobre algum assunto, mostrando as contradições presentes em sua forma de pensar, normalmente baseadas em valores e preconceitos sociais; 2. levava o interlocutor a perceber novos conceitos, opiniões sobre o assunto, incentivando-o a pensar por si mesmo. A autorreflexão nosce te ipsum — “conhece a ti mesmo”, lança o Homem na procura das verdades universais, caminho para a prática do bem e da virtude.

[2] KIERKEGAARD, Søren. Pós-Escrito às Migalhas Filosóficas. V. I. [Trad. Álvaro L. Montenegro Valls e Marília M. de Almeida.] Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 38.

https://www.livrariavozes.com.br/pos-escrito-as-migalhas-filosoficas-vol–18532646280/p

[3] Emmanuel Carneiro Leão. Conferência: Kierkegaard apóstolo da existência. [Coordenador: Acadêmico Marco Lucchesi.] Data: 19/03/2013 (A partir de 29’30”.). Academia Brasileira de Letras – 1º Ciclo de Conferências – “Existência e alternativas – um olhar sobre Kierkegaard”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=KbEQxPHjaas . (Acesso em 30/jan/2019.)

Também em: LEÃO, Emmanuel Carneiro. Kierkegaard, apóstolo da existência. Revta. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 6, n. 1: 11-22, 2013. Disponível em:

http://www.saoboaventura.edu.br/galeria/getImage/45/1987283853346669.pdf. (Acesso em 15/fev/2019.)

[4] Em Pós-escrito às Migalhas filosóficas.

[5] Søren Kierkegaard, Diários. In: SOLÉ, Joan. Kierkegaard – o primeiro existencialista. [Trad. Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 7.

[6] (…) perceber o que a Divindade realmente quer que eu faça

Importante é lembrar que, tempos depois, com o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, dentre outros, a idéia de percepção como elemento de cognição começa a ganhar outro colorido. Antes a percepção, seja pela filosofia antiga seja pela filosofia moderna, era considerada apenas como um acessório precário na construção do conhecimento, ou até mesmo algo que atrapalhava, isto porque temos tido uma concepção intensa de que nossas percepções nos podem ludibriar, e assim empregamos muito mais nosso intelecto para a solução daquilo que nos toca. No século XX, contudo, Merleau-Ponty critica o intelectualismo (Phénoménologie de la perception, 1945), vale dizer, o privilégio que foi dado na filosofia às funções do intelecto, sem que, todavia, isso fosse suficientemente justificado. Ele nos pergunta como é quando estamos no mundo ainda crus, sem nenhuma idéia preconcebida, antes, portanto, ao aparato intelectual que iremos construir. Neste estádio, o que nos toca mais: a percepção que temos das coisas ou o pensamento já mais elaborado a respeito delas? Merleau-Ponty conclui que a percepção é o nosso primeiro contato com as coisas, do ponto de vista psicológico, cultural, ou seja, do ponto de vista de nossas relações com as coisas e com os outros. Portanto, há uma relação com as coisas, com o mundo, muito mais atravessada pela sensibilidade antes do que a transmutação no pensamento elaborado como nos é habito praticar, e a percepção é nosso contato imediato com o mundo. No entanto, fomos doutrinados a acreditar que verdade só pode ser algo do pensamento (pela tradição filosófica) ou da Ciência (pela tradição positivista, cientificista), a despeito de que nossa forma original de estar no mundo seja apreendida pela percepção, por meio de sentir o mundo pelo nosso “equipamento” psicobiológico de forma pronta e direta. Tal estádio é denominado por Merleau-Ponty como de pré-reflexão. O conhecimento assim conquistado poderia merecer maior credibilidade, superior até ao do intelectualmente obtido, porque nos revela o mundo pela primeira vez e, então, nos é dado como uma verdade, talvez mais efetiva e autêntica porque mais originária. A percepção não é um construto e sim uma maneira de sentir o mundo.

[7] SOLÉ, Joan. Kierkegaard – o primeiro existencialista. [Trad. Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 126.

[8] COLLADO, Jesús-Antonio. Kierkegaard y Unamuno: la existencia religiosa. Editorial Gredos, 1962. 571 p.

Volume 34 de Biblioteca hispánica de filosofia.

[9] Para saber mais a respeito de Unamuno e Kierkegaard, assistir a enriquecedora Conferência: Kierkegaard, Unamuno e Ortega y Gasset, proferida por Vamireh Chacon, em 26/março/2013, na Academia Brasileira de Letras. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=TA6tJwObJXU. (Acesso em 10/fev/2019.)

[10] SOLÉ, Joan. Kierkegaard – o primeiro existencialista. [Trad. Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 126.

[11] Idem.

[12] Ver Nota 7.

[13] A respeito da atualidade de Kierkegaard, Bruce Kirmmse, professor emérito de Connecticut College, Estados Unidos, especialista em história intelectual da Europa Moderna e na filosofia e teologia de Kierkegaard, e editor geral e tradutor dos Diários e anotações de Kierkegaard, diz: “Houve várias ‘ondas’ de recepção de Kierkegaard nos EUA. A primeira manifestação significativa de interesse foi nas décadas de 1950 e 1960, na esteira da crise da Segunda Guerra Mundial e do início da Guerra Fria. A próxima grande obsessão com Kierkegaard esteve vinculada com o desconstrucionismo dos anos 1980 e 1990. Mas, subjacente a todas essas mudanças de moda, tem havido um interesse contínuo mais sério – e, creio eu, um interesse sempre crescente – na obra de Kierkegaard. Isso resultou de uma constante melhoria no acesso a seus textos e de um conhecimento crescente de sua vida e seu contexto. Afinal de contas, os problemas com os quais Kierkegaard se confrontou não desapareceram: eles são nossos problemas.”

Conforme entrevista concedida a Márcia Junges e Gabriel Ferreira (Tradução de Luís M. Sander) e publicada em IHU On-line Revista do Instituto Humanitas Unisinos, N. 418 – Ano XIII – 13/05/2013, p. 27-29. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/media/pdf/IHUOnlineEdicao418.pdf. (Acesso em 20/fev/2019.)

[14] KIERKEGAARD, Soren. Temor e tremor. (Texto integral.) [Tradução e prefácio Torrieri Guimarães.] Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. (Tradução de: Frygt og Baeven.) p. 17.

[15] DE PAULA, Márcio Gimenes. Kierkegaard como crítico da imprensa: O caso “Corsário”. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea. Brasília, v.2, nº 1: 72-82, 2014. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/12392/10853. (Acesso em 10/fev/2019.)

[16] SOLÉ, Joan. Kierkegaard – o primeiro existencialista. [Trad. Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 25.

[17] Para os que querem se aprofundar no interessante tema: GARFF, Joakim. Kierkegaard’s Muse: the Mystery of Regine Olsen. [Trad. Alastair Hannai.] Princeton: Princeton University Press, 2017. 336 p. (https://press.princeton.edu/titles/10946.html)

[18] LAFARGE, Jacques. Prefácio. In: Kierkegaard, S. É preciso duvidar de tudo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XVII.

[19] Johannes Climacus pseudônimo tomado ao nome do monge grego cristão João Clímaco, também João da Escada, João Escolástico e João Sinaíta, do século VI, mosteiro no Monte Sinai. O nome deriva do grego “klímax”, “escada” e a sua ascensão espiritual correspondente. Sob tal pseudônimo Kierkegaard escreve a obra De omnibus dubitandum est (É preciso duvidar de tudo), publicada postumamente (1843). O livro explora ao limite as consequências existenciais de se assumir a dúvida cartesiana – método da filosofia moderna.

[20] Conforme: HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). São Paulo: Edições Loyola, 1995.

  1. I: A ciência da lógica, 1995. (448 p.)
https://www.loyola.com.br/produtos_descricao.asp?lang=pt_BR&codigo_produto=2709
  1. II: Filosofia da natureza, 1997. (560 p.)
https://www.loyola.com.br/produtos_descricao.asp?lang=pt_BR&codigo_produto=2941
  1. III: A filosofia do espírito, 1995. (368 p.)
https://www.loyola.com.br/pr.odutos_descricao.asp?lang=pt_BR&codigo_produto=2940

[21] SOLÉ, Joan. Kierkegaard – o primeiro existencialista. [Trad. Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 25.

[22] Idem. p. 39.

[23] LEÃO, Jacqueline Oliveira. A pseudonímia como artifício irônico em Kierkegaard. Rvta. Pandora Brasil, N. 23: 58-68, out. 2010. http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/Kierkergaard/jacqueline.pdf .

(Acesso em: 04/fev/2019.)

[24] PONTE, C.R.S. Kierkegaard: sobre pseudônimos e heterônimos. Revista Reflexões, Fortaleza-CE, Ano 2, N. 2: 13-22, 2013.

https://www.academia.edu/8185122/Kierkegaard_sobre_pseud%C3%B4nimos_e_heter%C3%B4nimos . (Acesso em 05/fev/2019.)

[25] ROUANET, Sérgio P. Adorno e Kierkegaard. Estudos Avançados, v.27, n.79: 147-156, 2013. Pdf disponível em http://www.scielo.br/pdf/ea/v27n79/v27n79a11.pdf.

[26] GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão pelo paradoxo: uma introdução aos estudos de Søren Kierkegaard e de sua concepção da fé cristã. São Paulo: Fonte Editorial, 2006. p. 309-15.

[27] SOLÉ, Joan. Kierkegaard – o primeiro existencialista. [Trad. Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 40.

[28] É sempre curioso assinalar um certo paralelismo entre Kierkegaard, seu tempo filosófico (séc. XIX) e Hegel, e, por outro lado, como antecedente, entre Pascal, o seu tempo filosófico (séc. XVII) e Descartes. Poderíamos ousar dizer que Kierkegaard está para Hegel, assim como Pascal esteve para Descartes, em que pese todo o risco que sabemos correr com tal observação. Para quem quiser conhecer um pouco mais desse possível paralelismo, recomendamos a palestra do professor Franklin Leopoldo e Silva: As vertigens da razão e o mistério da fé – Kierkegaard e Pascal, que pode ser assistida em: https://www.youtube.com/watch?v=S8j7ojLpZNI&t=16s. (Acesso em 19/fev/2019.) E, a propósito, não deixa de ser “irônico” o fato de Descartes haver sido o descobridor da subjetividade com o Cogito, o qual, no entanto, nos conduziu posteriormente ao império da razão, da objetividade e da Ciência, e Kierkegaard a recuperar a subjetividade para comunicá-la com a verdade, numa outra forma de apreensão do saber. Como brincou Eduardo Portella, talvez se Kierkegaard fosse enunciar o Cogito, houvesse saído: “Existo, logo penso”…

[29] Angústia tem origem no grego “Angor”, no latim “Angustus”, que significa ‘estreitamento’. O verbo latino “Angere” = idéia de aperto e constrangimento, compartilha do prefixo ‘ang’ – estreitar, oprimir, apertar a garganta. Do antepositivo vieram palavras como ansiedade, ansiolítico, angina, ingl. angry, fr. angoisse. Hoje, a palavra refere a condição de opressão interna, classificada seja como uma emoção seja um temperamento ou uma doença.

[30] Soma: droga que os personagens do livro Admirável mundo movo, de Aldous Huxley, empregavam para afastar qualquer tristeza e garantir sua performance funcional…

[31] Ver: ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias [Coleção: Clássicos de Ouro Ilustrados]. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. 316 p.

[32] KIERKEGAARD, Søren A. O desespero humano. [Trad. Adolfo C. Monteiro.] São Paulo: Editora Unesp, 2010. p 48.

[33] Esta é uma expressão de Kierkegaard e não podemos deixar de pensar em Jesus nos Evangelhos e na sabedoria de que a liberdade é dom (dádiva, presente) de Deus – mas é tarefa nossa! [Gálatas 5:1 – Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão.] Deus cria o homem como alguém que pode decidir, decidir inclusive obedecer, e escolher o bem, portanto capaz de se autorrealizar. Oferecer a liberdade é a expressão mais superior e sublime de amor. E amar é libertar. Mas viver a liberdade exige esforço e determinação, é uma atitude contínua, uma autotarefa permanente. É um valor moral e ético e uma condição psicológica.

[34] KIERKEGAARD, Søren A. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano. [Traduções: Carlos Grifo, Maria J. Marinho, Adolfo C. Monteiro.] São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores) [Pdf disponível em: http://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2017/03/Kierkegaard-Cole%C3%A7%C3%A3o-Os-Pensadores-1979.pdf – p. 318 do pdf.]

[35] Idem.

[36] Num ensaio sobre liderança, chamávamos a atenção para o trinômio líder-liderança-liderado como a entidade que verdadeiramente ganha vida no fenômeno… Ver: SOUZA NETO, M.J., AZEVEDO, F. A. O trinômio líder-liderança-liderado como realização positiva. TECBAHIA R. Baiana Tecnol., v. 20, n. 1, p. 6 a 19, 2005.

[37] Início do Capítulo I do Livro I (O desespero é a doença mortal), Primeira Parte, de O Desespero Humano (Doença até a morte). Abril Cultural, 1979, p. 318. Trad.: Adolfo Casais Monteiro. Pdf disponível em: http://www.netmundi.org/home/wp-content/uploads/2017/03/Kierkegaard-Cole%C3%A7%C3%A3o-Os-Pensadores-1979.pdf . (Acesso em 11/fev/2019.)

Kierkegaard, Søren Aabye, 1813-1855. Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano / traduções de Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casais Monteiro. —São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores)

[38] Este se distingue do esteta reflexivo. O esteta reflexivo, tão diferente do passivo Don Juan, é o que Kierkegaard caracteriza como Johannes, na obra Diário de um sedutor, para quem o que importa não é quantas são seduzidas, mas sim como o são.

[39] É, por exemplo, um pouco do que se dá nas vivências das Mariápolis do Movimento dos Focolares.

[40] Numa discussão com o teólogo Martesen, Kierkegaard não aceitou a interpretação da teologia cristã de que a Graça da Salvação já está predestinada desde sempre. Kierkegaard recusou sempre todo e qualquer determinismo que viesse restringir a liberdade da existência. Por isso, é justa a observação de Jacques Lacan de que Kierkegaard foi o mais perspicaz pesquisador da alma humana, antes de Freud haver

transformado o estudo da alma numa ciência determinista.” Emmanuel Carneiro Leão. Kierkegaard, apóstolo da existência. Rev. Filosófica São Boaventura: v. 6, n. 1, 11-22, 2013. Disponível em:

http://www.saoboaventura.edu.br/galeria/getImage/45/1987283853346669.pdf. (Acesso em 15/nov/2019).

[41] LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 43.

[42] KIERKEGAARD, Soren. Temor e tremor. (Texto integral.) [Tradução e prefácio Torrieri Guimarães.] Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. (Tradução de: Frygt og Baeven.) p. 12.

[43] SOLÉ, Joan. Kierkegaard – o primeiro existencialista. [Trad. Filipa Velosa.] São Paulo: Editora Salvat, 2017. p. 119.