Estamos perdendo nossa dimensão humana: Von Balthasar, o Eu e a aceleração do escapismo (I)

O filósofo von Balthasar

Balthasar em Lucerna
(arte por Michel Polity)

Hans Urs von Balthasar (Lucerna, Suíça, 12/agosto/1905 – Basiléia, Suíça, 26/junho/1988), que nasce e cresce num país dividido pela reforma protestante, revela, desde cedo, precocidade: aos quatro anos é iniciado no idioma francês; aos cinco, no piano. Fez os primeiros estudos com os beneditinos, em Engelberg, e com os jesuítas, em Feldkirch. Matricula-se na Universidade de Viena, em 1923, em literatura germânica.

Considerado um dos mais destacados teólogos de todo século XX1, aos vinte anos (1925), escreve seu primeiro livro: O desenvolvimento da ideia musical (Die Entwicklung der musikalischen Idee), em que evidencia acentuada sensibilidade estética, a qual, depois, empregará na obra teológica Glória (Herrlichkeit), como forma para elevar-se a Deus.

Balthasar, além da música, estuda filosofia, sânscrito, indo-germanística, e segue o pensamento contemporâneo, bem como correntes da Psicanálise. Faz-se amigo de Rudolph Allers (médico humanista, tradutor de SãoTomás e Santo Anselmo), o qual o aproxima da Teologia. Em 1927, vai a Berlim e assiste aulas do teólogo e literato Romano Guardini2. Dois anos depois, ingressaria na Companhia de Jesus.

Em Zurique, ele apresenta a tese de doutorado em Literatura, História do problema escatológico na moderna Literatura Alemã (Geschichte des escathologischen Problems in der modernen deutschen Literatur), que teve aprovação Summa cum laude, pela erudição em Literatura alemã.3 Balthasar cursa filosofia entre 1931 e 1933, em Pullach, Alemanha. A neoescolástica não o entusiasma e ele a considera fechada aos horizontes contemporâneos. Todavia, Erich Przywara4 o aproxima das filosofias de Agostinho e Tomás de Aquino, cotejando-as com as de Hegel, Scheler e Heidegger. Em boa parte, ele deverá sua teoria sobre a analogia entis a este teólogo. Balthasar vai estudar Teologia em Lyon-fourvière, França, em 1933, onde se torna amigo do Padre Henri de Lubac, amizade que perdurará por toda sua vida. Nessa época ele escreve várias monografias patrísticas.

Em 26/julho/1936, ordena-se sacerdote, em Munique. Em 1940, é enviado à Basiléia, para prover assistência espiritual a universitários da cidade, a mesma na qual conhece Adrienne von Speyr e Karl Barth, o que repercutirá muito em sua Teologia.

Adrienne von Speyr, casada, médica, quando viúva se converteu ao cristianismo por influência do amigo e confessor Balthasar. Após seu batismo sob condição, sobrevêm-lhe graças místicas, como o carisma de curas e a estigmatização. Balthasar a assiste, convencido da autenticidade dos fenômenos. Surgem os ditados espirituais de von Speyr, em que Balthasar encontrou novas dimensões para a sua Teologia. Tais ditados foram por ele publicados até 1990 (62 volumes). Em 1945, os dois criam a Comunidade São João, instituto secular, para aglutinar cristãos devotados a Deus, numa mística joanina e inaciana, para a santificação pessoal e dos irmãos. O livro O Coração do Mundo (1945) expõe esta sua fase teológica. Contudo, as visões de von Speyr e a Comunidade não eram reconhecidas pela Igreja.

Com Karl Barth, Balthasar constrói um paralelo entre a Teologia católica e a protestante. Em 1951, vem seu livro Karl Barth, Darstellung und Deutung seiner Theologie.5 Do encontro com a Teologia de Barth, surge o aperfeiçoamento do cristocentrismo, uma das linhas mestras do pensamento balthasariano.

No fim dos 1940, ele funda a casa editorial Johannes Verlag, em Einsiedeln, Suíça, para publicar as obras de Adrienne e outras, como as da Teologia francesa. Em 1952, Balthasar apresenta sua obra programática (deste período anterior ao Concílio), que é Derrubar as muralhas (Schleifung der Bastionen), a qual exalta a Igreja a fazer ruir os muros que a envolvem, pondo-se mais presente no mundo – e permanecendo no coração de Deus.6

Em 1950, para mais se dedicar à Comunidade São João e à missão eclesial com Adrienne von Speyr, sai da Companhia de Jesus. Bastante incompreendido, ele obtém a incardinação na diocese suíça de Chur e faz conferências em diversos países da Europa, prosseguindo seu trabalho de editor e de escritor.

Balthasar não foi convidado para o Concílio Vaticano II e é provável que isso se deva a este seu livro Derrubar as muralhas, mal interpretado então. Por essa época ele começa sua obra magna, a Trilogia (1961-1987), dividida em:

  • Glória (Herrlichkeit), A Glória do Senhor, sete volumes – teologia estética fundada na contemplação da tríade: bem, belo e verdade (Deus aparece em sua majestade);
  • Teodramática (Theodramatik), cinco volumes – a ação divina e a resposta humana, principalmente nos acontecimentos pascais (Deus se dá, expõe seu amor absoluto e convida a uma resposta, a uma decisão);
  • Teológica (Theologik), três volumes – cristologia e ontologia (Deus se diz, diz quem Ele é).

Entre 1940 e 1960, Balthasar se empenhou em romper as muralhas da Igreja, a fim de que ela viesse a se abrir ao mundo. Já agora, quer provar a Revelação de Cristo como unificação maior do humano e do universo7. Deste período, Só o amor é credível (Glaubhaft ist nur Liebe), 1963, é um livro marcante, em que o autor busca demonstrar a insuperável via do amor. Ainda sobressaem na época os Ensaios Teológicos, que são cinco: Verbum Caro (1960); Sponsa Verbi (1960); Spiritus Creator (1967); Pneuma und Institution (1974); Homo creatus est (1986). É preciso que sejam destacadas ainda suas 29 utilíssimas e didáticas antologias (quatro sobre Agostinho, três sobre Nietzsche, sobre Irineu, Orígenes, Goethe, Adrienne von Speyr, etc.)

Em 1972, com Henri de Lubac e Joseph Ratzinger (este último depois feito Papa Bento XVI), Balthasar lança a Revista Teológica Internacional Communio, publicada em distintas línguas.

Após o Concílio, o Papa Paulo VI, como reconhecimento, convida Balthasar a integrar a Comissão Teológica Internacional no ano de sua criação, 1968. Em 1984, o Papa João Paulo II, de quem, segundo consta, era ele o teólogo preferido, o distingue com o prêmio internacional “Paulo VI”. No fim de sua vida, o Padre Balthasar foi nomeado cardeal-diácono de São Nicolau no Cárcere pelo mesmo Papa, mas faleceria dois dias antes, na Basiléia, em 26/junho/1988. Nas celebrações do centenário de seu nascimento, o amigo Joseph Ratzinger disse que “sua vida foi uma genuína busca da verdade”, entendida como “busca da verdadeira vida” e que ele quis “quebrar aqueles circuitos que tantas vezes mantêm a razão prisioneira de si mesma, abrindo-a aos espaços do infinito”.

  1. O eu à procura do eu

QUADRO II – CENA I

FAUSTO (dessocegado, sentado numa poltrona de sola e pregaria de cobre, com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na mesa de estudo, na qual derrama luz frouxa um candeeiro aceso.)

Ao cabo de escrutar co’o mais ansioso estudo

filosofia, e foro, e medicina, e tudo

até a teologia… encontro-me qual dantes;

em nada me risquei do rol dos ignorantes.

Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor;

e em dez anos vai já que, intrépido impostor,

aí trago em roda viva um bando de crendeiros,

meus alunos… de nada, e ignaros verdadeiros.

O que só liquidei depois de tanta lida,

foi que a humana inciência é lei nunca infringida.

Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade,

do que toda essa récua inchada de vaidade:

lentes e bachareis, padres e escrevedores.

Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores

de diabos e inferno, atribulados sonhos

e martírio sem fim dos ânimos bisonhos.

Mas, com te suplantar, fatal credulidade,

que bens reais lucrei? gozo eu felicidade?

Ah! nem a de iludir-me e crer-me sábio. Sei

que finjo espalhar luz, e nunca a espalharei

que dos maus faça bons, ou torne os bons melhores;

antes faço os bons maus, e os maus inda piores.

Lucro, sequer, eu próprio? Ambiciono opulência,

e vivo pobre, quase à beira da indigência.

Cobiço distinguir-me, enobrecer-me, e vou-me

co’a vil plebe confuso, à espera em vão de um nome.

E chama-se isto vida! Os próprios cães da rua

não quereriam dar em troco desta a sua.

(Depois de longa pausa meditativa)

Só falta recorrer às artes da magia.

No espírito há poder; na voz cabe energia,

que a transforma em cominando. Então, consociada

a palavra ao querer, talvez lhe seja dada

força para arrancar com soberano império

à natureza avara o íntimo mistério.

Se o chego a conseguir… que júbilo! que dita!

Não precisarei mais, desde essa hora bendita,

após trabalhos mil como esses que frustrei,

dar por certas ao mundo as coisas que não sei.

Ser-me-á fácil dizer o vínculo profundo

que uniu partes sem conto, e fez do todo um mundo;

ver a força motriz de tanto movimento,

e consignar-lhe a causa. Ah! desde esse momento

em que o cerrado enigma alfim me for notório,

foi-se o torpe chatim de estulto palavrório.7

Essa acima é a entrada em cena do Doutor Fausto na magistral obra Fausto, de Goethe. Início já arrasador, pela angustiada confissão de nada saber, ainda que esteja ele muito além dos doutos.

O desespero e o desejo do homem vão no sentido de poder alcançar a explicação última ou maior, ainda que para isso tenha até mesmo que lançar mão da magia… Caracteriza-se aí uma inquietação verdadeiramente humana, inquietação interrogativa, de uma ordem pulsional de qualidade epistemofílica, que nos possa descortinar o tudo e o todo, algo verdadeiramente da dimensão de Deus, que se este não nos dá (?), talvez o diabo possa fazê-lo…

Quanto à idéia de pulsão, lê-se no Dicionário de Psicanálise, de Roudinesco e Plon:

pulsão

Trieb, Instinkt; esp. pulsión; fr. pulsion; ing. drive, instinct

Termo surgido na França em 1625, derivado do latim pulsio, para designar o ato de impulsionar. Empregado por Sigmund Freud a partir de 1905, tornou-se um grande conceito da doutrina psicanalítica, definido como a carga energética que se encontra na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem.9

Tal idéia é antiga na literatura psiquiátrica e, também, na filosofia. Psiquiatras europeus, já no século XIX, a põem em foco ao discutirem o tema da sexualidade. Por exemplo, Heinrich Wilhelm Neumann (1814-1884) considera a angústia como resultado da insatisfação das pulsões (sexuais). Nietzsche (1844-1900) imaginava o espírito humano como um sistema de pulsões passíveis de colidirem ou de se fundirem, e dava papel fundamental aos instintos sexuais, que diferenciava dos instintos de agressividade e de autodestruição.

Pulsão é, portanto, um conceito adotado por Freud. Trata-se da energia que se situa entre o psíquico e o somático, é movida ou impulsionada pela marca psíquica deixada pela primeira experiência de satisfação e seus objetos. A descarga da pulsão10 pode envolver uma diversidade de objetos e sua escolha não pode ser relacionada a alguma característica patológica: nem o objeto nem o objetivo da pulsão tipificam patologias; mas revelam, somente, a necessidade de alívio da tensão psíquica.11 Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade12 nos diz:

Se juntarmos o que a investigação das perversões positivas e negativas nos permitiu averiguar, parecerá plausível reconduzi-las a uma série de “pulsões parciais” que, no entanto, não são primárias, já que permitem uma decomposição ulterior. Por “pulsão” podemos entender, a princípio, apenas o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do “estímulo”, que é produzido por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico. A hipótese mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo apenas ser considerada como uma medida da exigência de trabalho feita à vida anímica. O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico.

Outra hipótese provisória de que não podemos furtar-nos na teoria das pulsões afirma que os órgãos do corpo fornecem dois tipos de excitação, baseados em diferenças de natureza química. A uma dessas classes de excitação designamos como a que é especificamente sexual, e referimo-nos ao órgão em causa como a “zona erógena” da pulsão parcial que parte dele.13 (Grifo meu.)

Jacques Lacan, no seminário de 1964, considerou a pulsão como um dentre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise14.

Segundo Roudinesco e Plon:

Guiado por uma leitura exigente do texto freudiano de 1915, o qual ele reintitulou de “As pulsões e suas vicissitudes”, Lacan isolou a elaboração freudiana de suas bases biológicas e insistiu no caráter constante do movimento da pulsão, um movimento arrítmico que a distingue de todas as concepções funcionais. A abordagem lacaniana da pulsão inscreve-se numa abordagem do inconsciente em termos de manifestação da falta e do não realizado. Nessas condições, a pulsão é considerada na categoria do real. Lembrando o que Freud diz sobre a independência do objeto em relação à pulsão, e sobre o fato de que qualquer objeto pode ser levado a exercer para ela a função de um outro, Lacan sublinhou que o objeto da pulsão não pode ser assimilado a nenhum objeto concreto. Para apreender a essência do funcionamento pulsional, é preciso conceber o objeto como sendo da ordem de um oco, de um vazio, designado de maneira abstrata e não representável: o objeto (pequeno) a.15

As pulsões clássicas e que dominam a cena são duas: a de vida e a de morte. Mas Freud fala também de uma pulsão de saber (evidenciada na idade dos porquês, entre os 3 e 5 anos da criança, aproximadamente):

A PULSÃO DE SABER

Ao mesmo tempo em que a vida sexual da criança chega a sua primeira florescência, entre os três e os cinco anos, também se inicia nela a atividade que se inscreve na pulsão de saber ou de investigar. Essa pulsão não pode ser computada entre os componentes pulsionais elementares, nem exclusivamente subordinada à sexualidade. Sua atividade corresponde, de um lado, a uma forma sublimada de dominação e, de outro, trabalha com a energia escopofílica. Suas relações com a vida sexual entretanto, são particularmente significativas, já que constatamos pela psicanálise que, na criança, a pulsão de saber é atraída, de maneira insuspeitadamente precoce e inesperadamente intensa, pelos problemas sexuais, e talvez seja até despertada por eles.16

Também para Melanie Klein pulsão epistemofílica e pulsão sexual andam sempre juntas.17

Pensando com Freud, entendo que a origem da pulsão epistemofílica está no prazer auferido em relação ao objeto do conhecimento. Essa pulsão de saber, apesar de tão frequente e notória nas crianças, não se limita, em absoluto, a elas, e tem também incendiado a vida de incontáveis (ou quase todos) adultos. Veja-se o próprio Freud e sua relação pulsional epistemofílica com a psicanálise!…

A pulsão epistemofílica associa-se ao processo de sublimação das pulsões, aplicando-as à busca de conhecimento ou da arte ou outras formas de descarga. Bem a propósito, leia-se a obra de Freud Uma Recordação de Infância de Leonardo da Vinci.18

Elizabeth S. Palatnik, num criativo texto chamado Depoimento de uma pulsão epistemofílica: a necessidade de saber de Alfred Hitchcock, nos dá um bom exemplo de tal pulsão operando nessa notável personalidade do cinema mundial. Transformando a própria pulsão num personagem-narrador do texto, esta mesma fala:

Eu, a pulsão epistemofílica, sou fruto da sublimação da pulsão sexual. Assim, mesmo que o coito não se realize, a energia não desaparece, já que o alívio da tensão do psiquismo tem que ocorrer. Essa energia apenas muda de direção e me dá certa realidade: meu negócio agora é buscar satisfação através da necessidade de saber. E de um saber que está ligado à origem do indivíduo.19

Esse perguntar incessante, a vontade de saber, entender e fazer entender, explicar, esclarecer, eu também percebi, de uma certa forma desafiadora, em Balthasar, que, no volume 4 dos Ensaios Teológicos20, Pneuma und Institution21 (Espírito e Instituição), no escopo de uma fala proferida na Academia Católica da Baviera, Munique, por ocasião do prêmio Romano Guardini a ele conferido, nos questiona a respeito do Que é o homem? E, muito mais elaboradamente, “quem é o homem?”.

Começa por se referir22 ao famoso aforismo do Templo de Apolo e oráculo de Delfos, na Grécia antiga, o “conhece-te a ti próprio” (γνωθι σεαυτον, gnothi seauton), mencionado por Sócrates, e que quase nunca é seguido, como então se apresentava, de outro lema famoso também presente no citado Templo, o “nada em excesso” (μηδεν αγαν, meden agan)23.

Para Balthazar, não é por acaso que um pensamento tão importante e profundo, como o conhece-te a ti mesmo, estivesse logo à entrada de um Templo, visto que “quando se entra a um Templo involuntariamente se baixa a voz”, ainda mais ao entrarmos o recinto de Templo precedido de uma tal inscrição. Balthasar interpreta que tal adentrar é, de fato, entrar dentro de si, como se a inscrição dissesse “entra dentro de ti!” e complementa com seu raciocínio cristão “deixa que te seja dito por Deus que tu és apenas um homem”24, vale dizer, o chamamento imperativo aqui é para que não nos esqueçamos de nossa raiz humana, nossa verdade de humanos, em todos os aspectos e desdobramentos que daí resultem. E Balthazar ainda alerta para a outra máxima acima apontada, a de em nada se exagerar, não se cair em extremismos. Ademais, o pensamento à entrada de Delfos ia ainda além e dizia algo como: guarda-te de ti, tu não és um deus. Assim, o início da resposta à indagação de quem é o homem seria que é, exatamente, aquele que possui uma humanidade e não se polui ou contradiz com extremos, nem da biologia, colocando-o como um animal evoluído pela seleção natural, nem da tecnologia, transmutando-o num autômato como um cyborg, ou mesmo em avatares, correndo aqui o risco de se considerar mais do que um deus. Portanto, o homem não pode ser transferido para categorias de inumanidade.

Depois de perguntarmos Que é o homem e Quem é o homem, a pergunta automática que se impõe, é claro, é: Quem sou eu? (a questão da identidade).

Tal questionamento reflexivo que fazemos traz, inexoravelmente, um quê de perplexidade e de sofrimento diante da incompreensão que nos invade a respeito do que nos é mais essencial e valioso: nosso próprio sentido, o sentido da vida, o sentido do Universo, o porquê da morte. A pergunta toda é, de fato: “quem sou eu que tenho que sofrer tanto?” Balthasar irá adiante dizendo que “O homem leva sobre si seu signo de interrogação e de exclamação escritos como numa manifestação em sinal de protesto pela criação.”25 Ou seja, a própria condição/realidade humana pode nos ser incômoda, gerando revolta, queixas e protestos.

Assim como a criança pequena que “ganha” um irmãozinho põe-se a querer investigar como aquilo foi possível, desejando saber as explicações para tal, a fim de se resguardar de ameaças, já alimentando e padecendo, portanto, uma pulsão epistemofílica, o homem adulto – como ente da humanidade, quer entender em completude a origem do Universo e da vida, e para isso desenvolve toda a filosofia, as religiões e a Ciência. Porém, como nenhuma dessas vias lhe dá a resposta definitiva, ele se revolta e protesta – e realimenta e padece indefinidamente a tal pulsão. O homem quer saber, não aceita não saber, exige saber, como faz o Fausto. Ademais, desde há muito que aprendemos todos nós que saber é poder – e poder é o maior de todos os desejos atuais!

Ocorre que a ansiedade pelas respostas, que é o epicentro gerador da substância da pulsão epistemofílica dos adultos humanos que com isso se preocupam, nos impõe uma inquietação muito grande e, sobretudo, ruidosa, seja no sentido literal seja metafórico. Buscamos tanto pela resposta salvadora, redentora, que vamos perdendo, anestesiando, narcotizando, nossa sensibilidade de análise e de percepção de pequenos signos e manifestações da resposta. E colocamos, por exemplo, nossas pseudo respostas em ação, com as atitudes correspondentes, precedentes e consequentes, e, hoje, por isso, nos transformamos em máquinas de fazer, multitasking, calibrados e comandados pelo desempenho, pelas performances26, quando, opostamente, o homem porta como característica mais nobre do humano a capacidade de ouvir e silenciar. Para Balthasar, a sabedoria é “criar em si um espaço de silêncio”. O homem é um espaço de silêncio (deveria ser, posto que foi concebido como isso) e a serenidade atrelada a isso é o antídoto essencial para que ele não seja tragado pelo frenesi de perguntas inquietantes. O espaço de silêncio, conforme o teólogo Balthasar, conduz o homem a um princípio de esperança. No homem como espaço de silêncio a resposta não surge como efeito de uma pergunta, mas sim como consequência de uma disposição (de ouvir, de perceber, de captar). Vale dizer, se não estamos abertos e receptivos à percepção da resposta, intoxicados que nos fizemos por nosso alvoroço pueril de perguntas e seus hábitos, então não estaremos dispostos de tal sorte a captar e apreender a resposta, porque estar em silêncio é estar no mais profundo de si, de maneira imaculada, sem ruídos… Ser espaço de silêncio é ter uma interioridade, única e última, e é nesse locus, apenas nesse, que pode haver e habitar um eu (que, em última instância, é e sempre será mistério, e que para Balthasar é parte e componente de um espírito universal). Se o espaço de silêncio não é preenchido pelo silêncio, pela interioridade e, assim, pelo eu, ele quedará oco, como um buraco, um furo sem fim, inexistencial, e será presa fácil para a exterioridade, para todo modismo, todo consumismo vão, todo comando ideológico e desapropriador. Como é sabido, uma real hiperatividade contínua implica numa perda da capacidade de atenção e percepção.

E se, por desatenção, desleixo ou indolência, não estivermos nós próprios no domínio de nosso silêncio e interioridade, não poderemos esboçar resposta, agora sim, a uma pergunta inteiramente do domínio do humano e que coroa aquela escalada de perguntas antes apontada (Que é o homem? Quem é o homem? Quem sou eu?) e que é: Quem é esse que em mim diz eu? Do ponto de vista crente, será Deus; mas, além mdisso, há-de se ter enorme cuidado com tal pergunta, porque a necessidade de viver/sobreviver no turbilhão dos fatos da vida atual, faz com que muitos falsos eus se tenham criado e tentem se apresentar em resposta…

Diz Balthasar “se sou em enigma, algo ou alguém me deve uma resposta”. De fato, pela ausência até agora da resposta das respostas, a última e totalmente esclarecedora, restamo-nos um enigma, e numa tentativa (humana) de superarmos essa condição, temos lançado mão, via literatura (como exemplos, dentre tanto, com o antes citado Fausto, de Goethe, ou com Oscar Wilde e seu Retrato…), via filosofia (Nietzsche, por exemplo), cinema (os super-heróis), etc., de ficções catárticas, que nos dão algum tempo, sonho e esperança a mais. A outra alternativa que tem sido praticada é o desânimo e o pessimismo, que são muito usuais, quase epidêmicas na atualidade, e que se inserem patologicamente nos domínios da psicologia, psiquiatria e psicanálise.

Balthasar entende que a atitude do “ocidente fáustico” e arrogante, manifestada nessa pulsão investigativa (que ele chama de inquietude interrogativa), impondo perguntas e exigindo respostas, não consegue senão atrair o diabo27. Sem seguir literalmente esta interpretação teológica, eu diria que atraímos o diabo deveras, mas não aquela entidade do maligno e sim o mal na forma de desconfortos e perturbações de ordem existencial e patológica como, o esvaziamento do eu, a perda da substância do humano, a dissolução da singularidade, a dispersão, a depressão, a inação, a dessensibilização.

  1. O eu a escapar de si

O silêncio, em particular me refiro ao silêncio interior, o apaziguamento do espírito e do psiquismo, a redução das tensões, são os elementos primordiais para que se dê um decisivo passo em direção à contemplação. E ter a mente aberta para a contemplação é um pré-requisito para uma forma de mergulho interior e exploração das percepções e sentimentos mais profundos. Nesse momento de intoxicação por exterioridades, é preciso que se faça uma composição mínima com a pesquisa da própria interioridade, como mecanismo antidotal de sobrevivência.

Promover e sustentar o silêncio interior é uma prática cada vez mais remota em nossos tempos, e vista com fortes preconceitos, afinal, a vida é ritmo e ritmo é a ocorrência frenética de fatos numa corrente sem fim de acontecimentos e de seus supostos resultados.

Viver hoje é confundido com fazer, da mesma maneira que desde há algum tempo ser é confundido com ter. Aliás, mais do que isso, o ser foi deslocado pelo ter e os que ainda insistem numa visão contrária tornam-se esmagadora minoria, e são tomados pela mídia e pelo status quo capitalista produtivo como indesejáveis, nefastos, a ponto de o próprio poder médico – a serviço leal desse capitalismo – tentar enquadrar essas pessoas já como portadoras de transtornos psicológicos.

A inquietação interrogativa; a pulsão epistêmica efetivada em absoluto descontrole; essa forma de protestar contra tudo buscando incessantemente respostas, sem que antes se tenha a pessoa preparado para ouvir, porque é evidente que para uma perfeita cognição o saber escutar vem antes do perguntar; o modo de ser multitarefa; o zapeamento [Aulete digital: zapear, v. Telv. Percorrer (canais de TV) ou trocar de (canal) incessantemente por meio do controle remoto] de tudo, não só de canais de televisão, mas de manchetes, de e-mails, de mensagens, de fotografias, de empregos, de faculdades, de profissões, de amizades, de casamentos, de países, etc.; são, todos esses, processos tentativos de escapar ao eu em sua condição de humano, falível, limitado e finito. Noutras palavras, parece-me que sempre mais nossa inquietação com o que verdadeiramente somos nos precipita num universo psicotizado em que a promessa de uma realidade outra (glamorosa) é criada e inteligentemente fomentada pela publicidade e pelo mercado e nos despossui da possibilidade de uma experiência vivencial mais única, saudável e em acordo com nossas características originais, acentuando as cisões entre querer e poder (desejar e obter) e suscitando, ainda mais, todas as formas de desconforto espiritual e de conflitos psicológicos.

Voltar ao eu em profundidade e densidade, um eu contemplativo e não-narcísico, revigorando o ambiente próprio para que as forças interiores se possam exercer de maneira plena e ponderada, sem desvios ou sequestros, é o tratamento que podemos nos conferir para escapar ao escapismo, retomando verdadeiramente nossa intrínseca e serena liberdade e devolvendo a paz ao espírito e ao psiquismo.

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] Uma boa e panorâmica visão da vida e obra de von Balthasar nos é dada no livro de Elio Guerriero, Hans Urs Von Balthasar [série Teólogos do Século XX], São Paulo: Edições Loyola, 2010 (248 p.), o qual é empregado na breve introdução ao tema feita nesse artigo. Ver:

http://www.loyola.com.br/produtos_descricao.asp?lang=pt_br&codigo_produto=15018.

[2] Romano Guardini (Verona, 17/fevereiro/1885 – Munique, 1º./outubro/1968), sacerdote, escritor e teólogo católico-romano, tornou-se docente em 1923, na Universidade de Berlim, e lá ficou até 1939, quando seu curso foi cancelado pelas autoridades do nazismo. Depois, foi professor na Universidade de Tübingen (1945-1948) e na de Munique (1948-1962). Teve muita influência na teologia católico-romana do século XX, principalmente em dois campos: o diálogo entre teologia e literatura (como nos seus estudos sobre Dante), e a liturgia.

[3] GUERREIRO, E. Hans Urs von Balthasar. São Paulo: Edições Loyola, 2010. p. 35.

[4] Erich Przywara, jesuíta, filósofo e teólogo católico alemão. Redator da Stimmen der Zeit, revista teológica jesuítica. Conhecedor da tradição filosófico-teológico ocidental, aplicou-se ao estudo da analogia do ser entre Deus e o mundo. A analogia entis de Przywara, em Balthasar será a analogia dos transcendentais entre Deus e a criatura.

[5] Algo como: Karl Barth, apresentação e interpretação de sua teologia. Em inglês: The Theology of Karl Barth, 3rd edition. Communio Books Ignatius, October-1992. 444 p.

[6] GUERREIRO, E. Hans Urs von Balthasar. São Paulo: Edições Loyola, 2010. p. 91-125.

[7] Idem. p. 139-140.

[8] GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. [Tradução: Anónio Feliciano de Castilho.] Universidade de Aveiro. Quadro II, Cena I, p.43-45. Disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000011.pdf. Acessado em 2/março/2018.

[9] ROUDINESCO, Elisabeth, PLON, Michel. Dicionário de psicanálise [tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge.] Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete pulsão. p. 628.

[10] Sempre cabe diferenciar pulsão de instinto, Instinkt, que é uma energia essencialmente vinculada ao organismo, produzida por necessidade puramente orgânica, cujo alvo são objetos específicos e pré-determinados.

[11] Freud faz, no entanto, uma ressalva quando se refere ao fetiche: “O caso só se torna patológico quando o anseio pelo fetiche se fixa, indo além da condição mencionada, e se coloca no lugar do alvo sexual normal, e ainda, quando o fetiche se desprende de determinada pessoa e se torna o único objeto sexual. São essas as condições gerais para que meras variações da pulsão sexual se transformem em aberrações patológicas.” FREUD, S. Um caso de histeria. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Volume VII (1901-1905). Rio de Janeiro: Imago, 1966. p. 146.

[12] FREUD, S. Um caso de histeria. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. (1901-1905) Volume VII. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira / Sigmund Freud; com comentários e notas de James Strachey; em colaboração com Anna Freud; assistido por Alix Strachey e Alan Tyson; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1966.

[13] Idem. p. 159.

[14] ROUDINESCO, Elisabeth, PLON, Michel. Dicionário de psicanálise [tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da edição brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge.] Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Verbete pulsão. p. 632.

[15] Idem.

[16] Idem. p. 183.

[17] Ver as obras de Melanie Klein:

  • KLEIN, M. Una contribuicion a la teoria de la inhibición intelectual, In: Klein, M. Contribuciones al psicoanalisis. Buenos Aires: Horme, 1964.
  • KLEIN, M. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[18] FREUD, S. Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci. (1910) Volume XI. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira / Sigmund Freud; com comentários e notas de James Strachey; em colaboração com Anna Freud; assistido por Alix Strachey e Alan Tyson; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1966.

Conta a tradição que Freud teria dito a Ferenczi que essa obra «é a única coisa bela que escrevi». Foi o primeiro olhar psicanalítico sobre a criação artística.

[19] PALATNIK, Elizabeth S. Depoimento de uma pulsão epistemofílica: a necessidade de saber de Alfred Hitchcock. Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, ano 32, n. 23, 2010. p. 107-121. Disponível em:

http://cprj.com.br/imagenscadernos/caderno23_pdf/14-DEPOIMENTO%20DE%20UMA%20PULSAO_ELIZABETH%20S%20PALATNIK.pdf. Acessado em 23/abril/2018.

[20] Os cinco ensaios de Ensaios Teológicos são: são: Verbum Caro; Sponsa Verbi; Spiritus Creator; Pneuma e Instituição; Homo Creatus Est. Os dois primeiros remetem a João (Apóstolo) e os dois últimos a Inácio de Loyola.

[21] VON BALTHASAR, H. Pneuma und Institution: Skizzen zur Theologie IV. Johannes, 1974. (em alemão)

VON BALTHASAR, H. Pneuma e institución. Coleção: Ensayos Teológicos IV. Madrid: Ediciones Encuentro, 2011. 378 p. (em espanhol) Ver:

https://www.edicionesencuentro.com/libro/pneuma-e-institucion.html.  Acessado em 22/abril/2018.

[22] VON BALTHASAR, H. Pneuma e institución. Coleção: Ensayos Teológicos IV. Madrid: Ediciones Encuentro, 2011. p. 16.

[23] Inscritos, segundo Pausanias, Description of Greece (10.24.1), no pronaos (pátio) do Templo. “No templo anterior em Delfos estão escritas máximas úteis para a vida dos homens, inscritas por aqueles que os gregos dizem serem sábios.” Ver: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Paus.+10.24&fromdoc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0160. Acessado em 23/abril/2018.

[24] VON BALTHASAR, H. Pneuma e institución. Coleção: Ensayos Teológicos IV. Madrid: Ediciones Encuentro, 2011. p. 16 e seguintes.

[25] Idem.

[26] Ver: AZEVEDO, F. Burnout, contemplação, ócio e saúde. Publicado no Portal Tempo Análise: https://tempoanalise.com.br/burnout-comtemplacao-ocio-e-saude-2/.

[27] Para saber mais a respeito da vida e obra de von Balthazar, ver os excelentes cursos do Padre Ricardo Aldana Valenzuela, pela Universidad Francisco de Vitoria – Madrid, Espanha: Introducción a la obra de Von Balthasar e Introducción a la Trilogía: