Do que você tem medo?

Zilá Marcia Chamon

Palavras chave: drogas, drogadição, toxicomania, medo, psicanálise

Adoro filmes de terror. Quer dizer, bons filmes de terror. Ano passado me deliciei com a série da Netflix “A Maldição da Residência Hill”. Podemos nos dedicar a este tema em algum outro momento, caso seja do interesse dos leitores. Hoje quero comentar sobre um dos personagens da história. Trata-se de Luke, um dependente químico que precisa lidar com seus medos, lutos, com o sofrimento pelo preconceito e pela solidão. Enfim, ele terá que lutar contra os seus próprios demônios interiores para poder enfrentar as assombrações do passado. Durante os dez episódios, acompanhamos, ora aterrorizados em meio a sustos, ora perplexos com a difícil jornada de Luke e de seus 4 irmãos, todo o percurso dos personagens para superar as dores dos conflitos psíquicos e dos dramas familiares. Luke retrata, com realismo, um toxicômano desacreditado, inseguro, no limiar de recaídas, mas também sensível e amoroso.

Tanto no filme quanto na vida real, a dificuldade do dependente manter-se abstinente provoca situações de desesperança e abandono. Falando sobre sua família durante a internação numa clínica de recuperação, Luke afirma para os outros companheiros: ‘eles nunca acreditaram em mim. E eu não os culpo’. Ou, como me disse uma vez um paciente: “Nada pode ser pior do que sentir que as pessoas que amamos desistiram de nós”.

A construção do personagem a partir das experiências complexas de viver com os irmãos as alegrias e os dramas da infância, nos coloca diante da evidência de que uma pessoa não nasce dependente químico. Muitos autores descrevem a drogadição como um sintoma social. E não é para menos.

Devemos situar a toxicomania no contexto sócio-cultural. O que é lícito ou ilícito varia de acordo com a época, as ideologias, os interesses políticos e econômicos. Somente a partir desta perspectiva podemos problematizar a questão e nos perguntar: que tipo de subjetividade se constrói pertencendo a uma sociedade marcada pelo estímulo ao consumo? Como se organiza um psiquismo que mal consegue processar o verdadeiro bombardeamento de imagens a que é submetido diariamente? Quem nunca sucumbiu ao mágico poder dos objetos oferecidos como redutores do sofrimento em propagandas das mídias, como um carro, um lugar badalado ou uma bebida alcoólica?

Nada de errado em buscar o prazer, contanto que possamos também suportar os vazios e os sofrimentos que fazem parte da nossa existência.

Se não articulamos o indivíduo com o meio em que ele vive, a tendência é de fazermos uma leitura reducionista e preconceituosa da drogadição. Acabamos enveredando para um discurso de estigmatização do dependente e de demonização das drogas.

Talvez o maior terror não esteja nos filmes, mas no olhar preconceituoso de uma sociedade que precisa eleger ‘o louco do momento’; considerar que o problema está sempre ‘no outro’, que o mundo se divide entre os e saudáveis e os doentes. Passamos a entender o abuso de substâncias químicas a partir de uma idéia maniqueísta, atribuindo todo o mal a um único inimigo: a droga. É fundamental estabelecermos a diferença entre o uso esporádico e recreativo de drogas, do abuso, que é gerado por uma compulsão, onde a possibilidade de escolha já está comprometida. Aí sim estamos no campo das patologias.

Precisamos investir em políticas públicas eficientes de prevenção e de tratamento. Apostar em projetos que promovam a subjetivação , ou seja, que proponham espaços, situações onde a pessoa possa ser ouvida. A análise é um dispositivo importante de intervenção, mas precisamos contar com uma rede de profissionais de várias áreas para a sustentação de um trabalho realista, ético, e que tenha efeitos terapêuticos. Sem o desejo político de investimento no SUS, em projetos públicos de saúde mental, equipamentos e equipes de profissionais capacitados para este trabalho, podemos acabar assombrados pelos fantasmas do desamparo. Posso assistir aos filmes de terror. Meu medo é de outra ordem.