Um pouco sobre o amor: quem sabe saber amar?

fausto antonio de Azevedo
para M. L. T.

Orixá – Oxum by Júlia Saccardo: Oxum: orixá feminino da nação Ijexá, cultuada pelas religiões afro-brasileiras. Orixá das águas doces, rios e cachoeiras, da riqueza, do amor, da prosperidade e da beleza. Em Oxum, os fiéis buscam auxílio para a solução de problemas no amor, uma vez que ela é a responsável pelas uniões.

“Como fica forte uma pessoa quando está segura de ser amada.”1 Trata-se de uma frase de Freud que se tornou amplamente citada na Internet… E a respeito, o quanto antes for amada a pessoa melhor, não é verdade? Ou seja, já o bebê precisa ser convincentemente amado por mãe e pai e outros, posto que este é o principal cacife a lhe permitir saúde mental no futuro. E precisa ser suficientemente amado…

No entanto, isto do amor é complexo: falam alguns da projeção que fazemos de nossas questões (acertos, desacertos, fantasias, medos, poder, desejos…) naquele objeto de amor, o quanto investimos nele. Se for por aí, parece que amamos no outro algo que é de nós, que é nosso. O notável Fernando Pessoa, neste viés, aprofunda a complexidade: “Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a idéia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso — em suma é a nós mesmos — que amamos..”2, este, outro texto também exaustivamente mencionado na Internet (o perigo dessas frases soltas, de consumo rápido, é o de não transmitir o contexto, nem mesmo o texto…)

E se for para problematizar de vez, recordemo-nos de Lacan: “Amar é dar o que não se tem…a alguém que não quer.” (“L’amour c’est donner ce qu’on n’a pas.”)3 Dar o que não se tem é sinalizar apenas, é “intencionar” o que é somente da ordem da tensão. E, justamente, nos disse Ricœur: “Com amor, estamos no mundo dos sinais: no amor, só podemos receber e dar sinais. (…) E esse gesto ilustra uma das mais famosas máximas lacanianas sobre o amor: ‘Amar é dar o que você não tem’. (…) O que o sujeito pede é que o outro do amor o coloque como amável, para que ele, por sua vez, possa amar.”4 Dar o que se não tem é, portanto, dar a falta, a sua falta, a falta-em-si, vale dizer, o aquilo que constitui o sujeito ao outro. É dar ao outro o próprio ser – porque se é livre para isso, desejando que sua falta venha a ser a suficiência do outro – e com isso o amor se movimenta e nos vemos belos no olhar do ser amado.

Freud falou de “amor de transferência” (o fenômeno da transferência é conhecido desde antes de Freud por outras designações, e é essencial para o processo psicanalítico, apesar das muitas discussões entre as diferentes escolas de psicanálise – ver “Esboço de Psicanálise”), e, para Roudinesco e Plon5, transferência é um “termo progressivamente introduzido por Sigmund Freud e Sandor Ferenczi (entre 1900 e 1909), para designar um processo constitutivo do tratamento psicanalítico mediante o qual os desejos inconscientes do analisando concernentes a objetos externos passam a se repetir, no âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses diversos objetos. Historicamente, a noção de transferência assumiu toda a sua significação com o abandono da hipnose, da sugestão e da catarse pela psicanálise. Em 1912, em ‘A dinâmica da transferência’, primeiro texto exclusivamente dedicado a essa questão, ele distinguiu a transferência positiva, feita de ternura e amor, da transferência negativa, vetor de sentimentos hostis e agressivos. A estas se acrescentariam transferências mistas, que reproduzem os sentimentos ambivalentes da criança em relação aos pais.”

“Em 1923, em ‘Dois verbetes de enciclopédia: (A) Psicanálise, (B) Teoria da libido’, a transferência foi concebida por Freud como um terreno no qual é preciso conseguir uma vitória. Utilizada pelo analista, ela é, na verdade, ‘o mais poderoso adjuvante do tratamento’. A partir daí, foi o amor transferencial que passou a reter toda a atenção de Freud. Com esse termo ele designou os casos em que o paciente — em geral, uma mulher — declara estar apaixonado por seu analista. Havendo observado que esse era realmente um processo transferencial, uma vez que a mudança de analista era acompanhada pela repetição do sentimento, Freud sublinhou a absoluta necessidade de o terapeuta respeitar a regra da abstinência, não apenas por razões éticas, mas sobretudo para que o objetivo da análise pudesse ser perseguido. Nesses casos, com efeito, a resistência à análise reveste-se da forma de um amor: o trabalho passa a ter por objetivo encontrar as origens inconscientes dessa manifestação que invade a transferência.”6

No ano de 1905, quando da análise de Dora, “Freud teve sua primeira experiência, negativa, com a materialidade da transferência. Ele atestou, a contragosto, que o analista de fato desempenha um papel na transferência do analisando. Ao se recusar a ser objeto do arroubo amoroso de sua paciente, Freud opôs uma resistência que, em contrapartida, desencadeou uma transferência negativa por parte dela. Alguns anos depois, ele qualificaria esse fenômeno de contratransferência.”7

O psicanalista Sandor Ferenczi, amigo, colaborador e discípulo de Freud, já em 1909 alertava para que a transferência surgia nas diversas relações humanas: professor-aluno, médico-paciente, etc. Ele percebeu que ao longo de uma análise, da mesma forma que na hipnose e na sugestão, o paciente colocava inconscientemente o terapeuta numa posição parental8. Podemos, de fato, nos abrigar no ‘ousado’9 clínico húngaro para também ousar arriscando que em todas as nossas relações interpessoais existe um quantum de processo transferencial, seja positivo ou negativo10.

Por outro lado, de Agostinho aprendemos o famoso Ama e faze o que quiseres (dilige et quod vis fac): “Ama e faze o que quiseres: se calares, cala por amor; se gritares, grita por amor; se corrigires, corrige por amor; se perdoares, perdoa por amor. A raiz da caridade existe dentro de ti; só o bem pode brotar dessa raiz”11. Pode-se ver este ensinamento como bastante libertário; o amor, o verdadeiro amor (amor-caridade, que é o que não prende e sim solta, não acumula e sim despoja…) sendo a chave que nos desperta para tal liberdade. Mas, se liberta, impõe a responsabilidade do comportamento estritamente ético. Agostinho diferencia os bens materiais dos espirituais: os bens materiais devem ser usados como meios para que se alcance os espirituais. Eis outro pilar da moralidade de Santo Agostinho, o uti-frui (usar, utilizar e fruir ou gozar). Coisas terrenas são para se usar, mas só as eternas são para fruir. E Luc Ferry e Comte-Sponville assim posicionaram a questão: “Somente quem ama não precisa mais agir como se amasse. É o espírito dos Evangelhos (“Ama e faze o que quiseres”), pelo que Cristo nos liberta da Lei, explica Spinoza, não a abolindo, como queria estupidamente Nietzsche, mas consumando-a (‘Não vim para revogar, vim para cumprir…’), isto é, comenta Spinoza, confirmando-a e inscrevendo-a para sempre ‘no fundo dos corações’. A moral é esse simulacro de amor, pelo qual o amor, que dela nos liberta, se torna possível. Ela nasce da polidez e tende ao amor; ela nos faz passar de uma a outro. É por isso que, mesmo austera, mesmo desagradável, nós a amamos.”12

Em filosofia, de acordo com o dicionário de Abbagnano, os significados que a palavra amor apresenta na linguagem comum “são múltiplos, díspares e contrastantes; igualmente múltiplos, díspares e contrastantes são os que se apresentam na tradição filosófica. Começaremos apontando os usos mais correntes da linguagem comum (…): a) em primeiro lugar, com a palavra Amor designa-se a relação intersexual, quando essa relação é seletiva e eletiva, sendo, por isso, acompanhada por amizade e por afetos positivos (solicitude, ternura, etc). Do Amor, nesse sentido, distinguem-se frequentemente as relações sexuais de base puramente sensual, que não se baseiam na escolha pessoal, mas na necessidade anônima e impessoal de relações sexuais. Muitas vezes, porém, a mesma linguagem comum estende também para esse tipo de relações a palavra Amor, como quando se diz ‘fazer amor’; b) em segundo lugar, a palavra Amor designa uma vasta gama de relações interpessoais, como quando se fala do Amor entre amigos, entre pais e filhos, entre cidadãos, entre cônjuges; c) em terceiro lugar, fala-se do Amor por coisas ou objetos inanimados: p. ex., Amor ao dinheiro, a obras de arte, aos livros, etc; d) em quarto lugar, fala-se de Amor a objetos ideais: p. ex., Amor à justiça, ao bem, à glória, etc; e) em quinto lugar, fala-se de Amor. às atividades ou formas de vida: Amor ao trabalho, à profissão, ao jogo, ao luxo, ao divertimento, etc.; f) em sexto lugar, fala-se de Amor à comunidade ou a entes coletivos: Amor à pátria, ao partido, etc; g) em sétimo lugar, fala-se de Amor ao próximo e de Amor a Deus. Sem dúvida, alguns desses significados podem ser eliminados por impróprios, já que podem ser expressos e designados mais exatamente por outras palavras. Assim: a) a relação intersexual só pode ser chamada de Amor quando é de base eletiva e implica o compromisso recíproco. Evitar-se-á, assim, chamar de ‘Amor’ a relação sexual ocasional ou anônima… O Amor designa, em todos os casos, um tipo específico de relação humana, caracterizado pela solidariedade e pela concórdia dos indivíduos que dele participam; (já o) o desejo, em particular o desejo de posse, não se inclui necessariamente na constituição do Amor, pois, se é discutível que se inclua no Amor sexual, deve ser totalmente excluído do Amor de que se fala em (b), (f), (g).13

Com isso tudo até aqui exibido, Freud, Pessoa, Lacan, Agostinho, Roudinesco, Abbagnano, pode parecer bastante difícil, e até desanimador, amar e saber amar. E nem mesmo cheguei a abordar visões religiosas, como em Cristo, com o “amai-vos uns aos outros” (João, 13: 34-35) ou “se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” e “amai a vossos inimigos” (Mateus 5: 38-47) ou “amemo-nos uns aos outros; porque o amor é de Deus; e qualquer que ama é nascido de Deus e conhece a Deus” (1 João, 4: 7) ou “no amor não há medo; ao contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo supõe castigo. Aquele que tem medo não está aperfeiçoado no amor” (1 João, 4: 18)… Ademais, há condições para que se possa e se consiga amar, condições para além da escolha de objeto… Penso, por exemplo, na questão da autoconfiança, que, por óbvio, é confiar em si mesmo. Bastante difícil, ou deformado, será intentar amar a outrem quando se é desprovido da confiança em si. Nesta circunstância fica a alma fragilizada e bem suscetível a medos, desconfianças e ciúmes. A autoconfiança em dose adequada (dose adequada é igual a dose não tóxica, o que seria a prepotência) é pré-requisito para se amar com benevolência e desprendimento – aliás é só dessa maneira que pode o amor ser autêntico, florescer e prosperar. Amar, em verdade, é se libertar e libertar o ser amado para seus sonhos e seu caminho. Todavia, a autoconfiança não brota do nada, ela requer precedentes, como autoconhecimento e autoestima. Mas esses já são temas para outra reflexão…

Notas e referências

[1] Sigmund Freud. Correspondência de amor e outras cartas. 1873-1939. Edição preparada por Ernst Freud. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 10-12.

[2] Fernando Pessoa. Livro do Desassossego. 2ª. ed. Por Bernardo Soares. São Paulo: Editora Brasiliense. p. 338. Disponível para baixar grátis em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/vo000008.pdf

[3] Jacques Lacan, ver:

  • O Seminário, Livro 4: a relação de objeto. [Trad. Dulce Duque Estrada.] Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995. Cap. IX – A função do véu. p. 153.
  • O Seminário, Livro 5: as formações do inconsciente. [Trad. Vera Ribeiro; revisão Marcus A. Vieira]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. Cap. XI – Os três tempos do Édipo (II). p.218.
  • Le Séminaire, Livre 6: le désir et son interprétation. Paris: Éditions de la Martinière, 2013. 140-141.

[4] Jean-Paul Ricœur. Lacan, l’amour. Psychanalyse, v. 3, n°. 10: 5-32, 2007.

Ver:  https://www.cairn.info/revue-psychanalyse-2007-3-page-5.htm?contenu=article .

[5] Elizabeth Roudinesco, Michel Plon. Dicionário de psicanálise. [Trad.: Vera Ribeiro, Lucy Magalhães; supervisão da ed. brasileira Marco Antonio Coutinho Jorge.] Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 766-770.

[6] Idem. p. 768.

[7] Idem. p. 767.

[8] Idem. p. 767.

[9] Maria Nilza Mendes Campos. Biografia de Sandor Ferenczi. Página da Federação Brasileira de Psicanálise na Internet: https://febrapsi.org/publicacoes/biografias/sandor-ferenczi/ . (Acessada em 7/jan./2021.)

[10] Freud, “Em 1912, em ‘A dinâmica da transferência’, primeiro texto exclusivamente dedicado a essa questão, (…) distinguiu a transferência positiva, feita de ternura e amor, da transferência negativa, vetor de sentimentos hostis e agressivos. A estas se acrescentariam transferências mistas, que reproduzem os sentimentos ambivalentes da criança em relação aos pais. (Elizabeth Roudinesco, Michel Plon. Dicionário de psicanálise. p 767.)

[11] Santo Agostinho. Comentário da primeira epístola de São João. [Trad.: Nair de Assis Oliveira.] São Paulo: Paulinas, 1989. p. 8.

[12] Luc Ferry, André Comte- Sponville. A sabedoria dos modernos, dez questões para o nosso tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 120.

[13] Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. 5ª. ed. [Trad.: Alfredo Bossi 1ª.ed. / Ivone C. Benedetti revisão, 5ª ed.] São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 38-9.