Pagar pela psicanálise… “Por que o analista cobra?”

fausto antonio de Azevedo

Il Nosadella (Giovanni Francesco Bezzi) Thyestes e Aerope (esposa de Atreu) ca. 1565-71 óleo sobre tela http://matthiesengallery.com/work_of_art/thyestes-and-aerope

Antonio Quinet:

“ ‘Se não cobrássemos, entraríamos no drama de Atreu e de Tiestes que é o de todos os sujeitos que nos vêm confiar sua verdade.’ Não cobrar é entrar na tragédia do analisante como depositário de uma carta roubada da qual ele quer desvencilhar-se. Ao receber as tragédias do analisante e ao fazê-lo pagar por elas, o analista tira o corpo fora da jogada.

A tragédia do século XVIII de Crebillon1 “Atreu e Tiestes” é escandida pelo estribilho: ‘Um desígnio tão funesto se não é digno de Atreu é digno de Tiestes.’ Ele relata o caso de Atreu traído pelo irmão, e em seguida assassinado pelo filho suposto, e o caso de Tiestes que come seus próprios filhos. (…)

A tragédia de Crebillon termina (…), mas a lenda conta que Tiestes refugia-se em Sicyane e engendra um filho, Egisto, com a própria filha Pelópia, sem que esta o percebesse (!). Pelópia casa-se em seguida com o tio, Atreu, e este confia a Egisto a missão de matar Tiestes. Mas Egisto descobre a tempo que Tiestes é seu pai, retorna a Micenas, mata Atreu e dá o trono a Tiestes.

Não cobrar significaria entrar no drama de Atreu e de Tiestes como depositário do segredo valioso sem poder fazê-lo circular. Ao fazer o analisante pagar, trata-se de transformar algo da ordem do destino em objeto de troca — os significantes empregados para cifrar esse gozo, contando quantas vezes for necessário o horror de sua tragédia. O destino aqui é figurado por uma orgia sanguinolenta de gozo incestuoso, como no fundo são todas as histórias ou pelo menos como são vivenciadas por aqueles que as narram.

O sujeito vem prestar contas de seus crimes e para tal ele paga com dinheiro, maneira de colocar em movimento a dívida simbólica — dívida que o sujeito paga pela entrada no simbólico.

Ao fazer pagar, o analista mostra que não está ali por amor, por sacrifício, ou por ideal, e muito menos para gozar das histórias escabrosas dos pacientes. Isto é importante sobretudo no que tange ao amor de transferência em que — como se verifica na clínica do amor — amar é querer ser amado. Desde que desponta o amor de transferência surge a demanda de amor. Para além desse amor de transferência, o que está em jogo é o cerne do amor: ou seja, a questão ‘o que sou como objeto para o Outro?’, em que o analista será convocado a esse lugar do Outro que goza do sujeito como um objeto. Fazer pagar é significar que o analista não se interessa pelo sujeito como objeto, mas que para ser o depositário das histórias de alto valor do sujeito, ele quer dinheiro com o qual poderá escolher os objetos que quiser.

O analista é depositário das cartas roubadas dos analisantes: cartas que não

chegaram a seu destinatário e que são transferidas ao analista. O peso da responsabilidade de ser o depositário dessas cartas é contrabalançado pelo

dinheiro, pois ao fazermos pagar neutralizamos a responsabilidade dessa transferência, fazendo-a equivaler ao significante mais aniquilador de significação: o dinheiro.

O analisante paga com dinheiro e ‘paga à vista’ ao/do analista o preço devido por tê-lo constituído como cofre precioso de seus males e bens. O preço ‘tem como função amortecer algo de infinitamente mais perigoso do que pagar em dinheiro, que consiste em dever algo a alguém’.

O analista também paga, nos diz Lacan em A direção da cura e os princípios de seu poder. Ele paga nos três registros: Simbólico, Imaginário e Real.

S — com palavras — a interpretação.

I — com sua pessoa — prestando-se aos fenômenos decorrentes da transferência, apagando-se como eu.

R — com seu ser — em seu ato anulando-se como sujeito no faz-de-conta de ser objeto a.

E o que o analisante e o analista dão cada um?

Poderíamos dizer que o analisante dá o seu amor — o amor de transferência. Só que na dinâmica do amor e na dialética do dar, o amor é dar o que não se tem: dar, por exemplo, seu tempo quando não se o tem para nada ou dar a eternidade como André Gide para Madeleine. Mas o amor de transferência é efeito da demanda intransitiva que o analisante dirige ao analista: amar é

demandar amor. Daí o “dar amor” da transferência se reduzir à outra face da demanda que cabe ao analista suportar como insatisfeita com sua recusa, para que desfilem os significantes em que se detiveram as frustrações do analisante.

Mas não é com amor que se paga o amor. Pois se amar é dar o que não se tem, o que o analista teria a dar é nada. Mas mesmo esse nada, diz Lacan, ele não dá. E paradoxalmente para esse nada que ele não dá, o analista faz o analisante pagar e pagar bem, senão o analisante não o julgaria precioso. O analista como o Outro do amor a quem o analisante dirige suas demandas é valioso por ser suposto deter o objeto precioso causa de seu desejo (a). É por esse objeto valioso, agalma, que o analista é suposto deter, e que ele não só não dá como tampouco possui — é por esse objeto que é nada que o analisante paga.

Isto se resume na frase evocada no Seminário XI, ilustrando o para-além do

amor de transferência: ‘Eu te amo, mas como, inexplicavelmente, amo em ti algo mais do que tu, o objeto a, eu te mutilo.’

A obsessionalização do pagamento como se fosse um salário recebido por serviços prestados no final do mês é correlata à prática do contrabando — modulação do desejo do obsessivo — em que se tenta, para driblar o Outro,

entrar em negociação do tipo ‘um preço com recibo, outro preço sem recibo’, etc.

Na análise, só há um recibo: é a forma com que cada analista significa ao analisante que o que foi dito está dito, sem poder ser desdito: o sujeito é responsável pelo seu dito. Eis o que o psicanalista com sua pontuação, anuência ou seu corte da sessão significa ter recebido. Em última instância, o recibo do analista é o próprio corte da sessão. Por intermédio do corte ele significa ter recebido aquilo que o analisante lhe depositou. Nesse sentido, o recibo vem antes mesmo do gesto de pagamento.”

(Grifos meus.)

Excerto de:

O capítulo (IV) de Antonio Quinet – “Capital e Libido” em seu livro As 4 + 1 condições da análise, Rio de Janeiro: Zahar, 1991. 15ª. reimpressão. p. 91-4. http://ftp.zahar.com.br/detalhe.php?codigo=4100738 ; https://www.antonioquinet.com/product-page/as-4-1-condi%C3%A7%C3%B5es-de-an%C3%A1lise

Para aprofundamento:

https://www.livrariadopsicologo.com.br/livro-$em-sobre-a-inclusao-e-o-manejo-do-dinheiro-numa-psicanalise-9788573962079,SLE001.html

Referências

[1] Prosper Jolyot de Crébillon, escritor francês (Dijon, 13 de janeiro de 1674; Paris, 17 de junho de 1762).