Bitcoin, padre Leonardo Castellani, niilismo e depressão: o que pode haver de comum?

Palavras-chave: bitcoin, depressão, niilismo

Key words: bitcoin, depression, nihilism

Bitcoin[1] é uma moeda, criptomoeda, descentralizada, que não existe fisicamente, é virtual. Sua emissão:

  • é feita de forma aberta por milhares de computadores de pessoas que “cedem” a capacidade de suas máquinas para criar a moeda e registrar todas as transações feitas;
  • mais importante: não é controlada por qualquer Banco Central.

É, também, um suposto sistema econômico alternativo (peer-to-peer electronic cash system). Foi apresentada em 2008, na lista de discussão The Cryptography Mailing, por um programador, ou um grupo, de pseudônimo Satoshi Nakamoto.

O nascimento de uma bitcoin, é a “mineração”, em que os computadores conectados à rede competem entre si na resolução de problemas matemáticos. Quem ganha, recebe um bloco da moeda. O nível de dificuldade dos desafios se regula pela rede, para que a moeda cresça dentro de uma faixa limitada (21 milhões de unidades até o ano de 2140[2]). É possível possuir bitcoins comprando unidades em casas de câmbio específicas ou aceitando a criptmoeda ao fazer vendas. O valor da bitcoin segue as regras de mercado, ou seja, quanto maior a demanda, maior a cotação. Historicamente, a moeda virtual apresenta alta volatilidade.

Depois do cadastro, a pessoa recebe um código com letras e números, o “endereço” utilizado nas transações. As identidades do comprador e do vendedor ficam anônimas, mas a transação é registrada no sistema de forma pública. A compra não pode ser desfeita.

A criação de dinheiro sem lastro não é propriamente uma novidade (não incluindo nisso os processos hiper inflacionários). Já pelos finais do século XIII, na China (onde há tradição de fabrico de papel e do papel dinheiro), há registros de fabricação de dinheiro papel a partir de cascas de amoreira, sem qualquer sustentação monetária. Tal papel continha a assinatura de várias pessoas e sua autenticação era um selo vermelho brilhante proveniente do imperador Kublai Khan (neto do famoso Gengis Khan), no poder quando das viagens do explorador veneziano Marco Polo, que em seu livro de viagens escreveu o capítulo “Como o grande Kahn faz com que a casca de árvores, convertida em algo similar a papel, passe como dinheiro em todo o país”[3].

“A (…) arte de fazer dinheiro a partir do nada acomete agora a sociedade contemporânea, que viu algumas linhas de código de programação de computador se transformar em bitcoins e outras criptomoedas com valor em circulação que superou US$750 bilhões em questão de meses – cifra que caiu para menos de US$450 milhões após forte queda dos últimos dias, diante da ameaça de aumento da regulação”, é o que se lê em matéria recente do jornal Valor Econômico.[4]

Os investimentos em criptomoedas parecem sacudir dois pilares da lógica econômica: primeiro, que não há muito de racionalidade ao fazê-lo, e, segundo, que nem sempre se deve entender picos de valorização de moedas eletrônicas por meio dos fundamentos da economia. Robert Shiller, vencedor do Nobel de Economia, 2013, e professor da Universidade de Yale pensa que:

Os economistas subestimam o poder das narrativas econômicas populares. Histórias que viralizam. Parte porque há muitas questões competindo por atenção, parte por causa das ansiedades e medos criados por um mundo em rápida transformação pelas novas tecnologias, as pessoas estão com uma sensação de desamparo. Elas querem, de alguma forma, estar conectadas e se sentir próximas de gente bem-sucedida. Investir em tecnologia, principalmente, tem hoje um grande apelo. E a narrativa do bitcoin é poderosa. Você pode ver nos olhos das pessoas o encantamento por bitcoins. Dá para perceber até na expressão corporal. Não é um cálculo racional investir ou não em criptomoedas. Parece uma forma de combater a ansiedade e a depressão.[5]

Padre Leonardo Castellani[6], argentino, nasceu em Reconquista (Santa Fé), a 16 de novembro de 1899. Estudou em sua cidade, depois em Córdoba (noviciado jesuíta). Já em Buenos Aires, foi ao Colégio do Salvador (e se tornou docente: Castelhano, Literatura, História, Italiano) e também ao Seminário de Villa Devoto. Em 1929, em Roma, prosseguiu sua formação, e, em 1930, ordenou-se sacerdote na igreja de Santo Ignacio de Loyola. Estudou Filosofia e Teologia na Universidade Gregoriana de Roma. Em seguida, Psicologia na Sorbone. Relacionou-se pessoalmente com Jacques Maritain e Paul Claudel.

Em 1935, regressou à Argentina e exerceu atividade de professor, escritor e jornalista. A Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires publicou seu ensaio Santo Agostinho e Descartes. Adotou um catolicismo de orientação antiliberal. Nas eleições de 1946, a pedido de amigos, mas sem permissão de seus superiores jesuítas, concorreu a deputado pela Aliança Libertadora Nacionalista. Anos depois declarou: “Yo no soy nacionalista, porque no he querido meterme en política nunca. No la he entendido tampoco.” Foi, então, advertido pelo Padre Provincial Tomás Travi. Em 1946, viaja a Roma para justificar-se com o Padre Geral da Companhia de Jesus, Jean-Baptiste Janssens, mas não é bem visto e é intimado a se recolher numa instituição em Manresa (Espanha), onde permanece por dois anos. Foge para a Argentina. Todavia, logo que chega, a 18 de outubro de 1949, é expulso como jesuíta e suspenso em seu ministério sacerdotal. Em 1953, fixa-se em Buenos Aires onde viverá até sua morte.

Porém, por colaborar no semanário Rebeldía, dirigido por Hernán Benítez, sacerdote peronista, acaba por sofrer una forte perseguição, o que o faz seguir para a Espanha em 1956.

Em 1962-3, as Edições Paulinas lançam livros seus. Em 1966, recebe novamente o ministério sacerdotal, sem condições ou retratações. Em 1971, o Padre Provincial jesuíta Ricardo O’Farrel dá-lhe a reintegração à Companhia de Jesus, mas Castellani declina da reparação por causa de seu estado de saúde e da idade. Faleceu a 15 de março de 1981, em Buenos Aires.

Sua obra é bastante extensa e inclui ensaios sobre religião, filosofia, psicologia, política, literatura, além de ficção e poesia. Destaque-se a publicação, relativamente recente, chamada Cómo sobrevivir intelectualmente al siglo XXI, seleção de artigos do padre feita por Juan Manuel de Prada, publicada pela LibrosLibres[7] (Madrid, 2008, 334 p.). Os textos do autor foram organizados nas seguintes partes: “Primero política”, “Visiones de España”, “El canon occidental”, “Ortodoxia”, “El drama educativo” y “Digamos la verdad”.

O padre Castellani, para quem o homem não pode caminhar sem apoiar-se em algo, comentou sua visão a respeito do voluntarismo [pensamento que só reconhece, como corretas e válidas, as relações voluntárias – os contratos e relações livremente aceitos ou livres de coerção –, sejam elas de qual espécie forem, nunca tendo qualquer valor relações voluntárias que visem a retirar, do indivíduo, seus direitos naturais (autonomia, liberdade e propriedade de cada um sobre si mesmo e sobre suas coisas honestamente adquiridas e não comprometidas por contrato), podendo, entretanto, haver compromissos que impliquem na diminuição de certas liberdades; voluntarismo é a tese de que podemos adotar crenças e outras atitudes proposicionais de acordo com nossa vontade] e da decadência (inclusive a de países como a Espanha). Essa vontade[8] (“vontade de potência” como em Nietzsche, herdeira da vontade schopenhaueriana), segundo Castellani[9], apresenta-se como:

  1. vontade de produzir, e produzir incorporando o aumento de produção, o que leva à…
  2. vontade de planejar, justamente para aumentar a produção, e aí se dá uma vinculação forte de subordinação à produção,
  3. uma vontade de dominar ferreamente, uma nação a outra, por exemplo, ou uma corporação a uma nação, e isto representa os mercados,
  4. vontade de fazer dinheiro sem limites – a usura,
  5. vontade de destruir a produção para se fazer dinheiro (lembrar do episódio brasileiro, no governo Vargas, da queima de café[10], a partir de junho de 1931),
  6. vontade de destruir o dinheiro (eu sublinho ser o dinheiro tradicional, moeda ou papel moeda, com lastro em reservas de ouro) para aumentar a produção – é aqui o ponto em que nos encontramos nesse momento: inflação, deflação, manejo arbitrário de dinheiro, talvez o caso das criptomoedas antes referido…
  7. a vontade de destruir e de destruir-se a si mesmo, o suicídio: o niilismo em estado puro.

Esse nosso ímpeto destruidor (pulsão de morte?…), principalmente como em 5, 6 e 7 da escala progressiva acima, nos remete inexoravelmente à ideia de um niilismo. O niilismo (ou nihilismo; do latim nihil = nada), é uma corrente filosófica (sobremaneira naturalista) que concebe a existência humana como desprovida de qualquer sentido. Popularizou-se primeiramente na Rússia, século XIX, como reação de intelectuais russos, socialistas e anarquistas, à lentidão dos czares em promover as reformas democráticas, sendo notória a obra Pais e Filhos, de Ivan Turgueniev. Apesar disso, já no estoicismo está a tentativa de subjugar o externo, o não próprio do ser. Mais tarde, principalmente com Tomás de Aquino, o termo é usado pela escolástica para designar o não-cristão. No Renascimento o niilismo floresce, como no Fausto, de Goethe, em que se registra, em Mefistófeles, a noção de aniquilamento. Hegel, filósofo idealista alemão, dá novo impulso ao niilismo; porém, o primeiro a estudar diretamente o assunto será Max Stirner (O Único e a Sua Propriedade, 1845), tido como precursor do niilismo, do existencialismo, da teoria psicanalítica, do pós-modernismo e do anarquismo. Mikhail Bakunin, pessoa influente do anarquismo, é, na toada hegeliana, um dos iniciadores do niilismo-político. Em 1794, em meio às turbulências da Revolução Francesa, a República declara em convenção: “Esta não é uma República nem teísta e nem ateísta, mas niilista”. A propagação das concepções socialistas encontra morada na Rússia, arrastando consigo este niilismo germinal, sob a bandeira do “tudo é permitido”. O tema é abordado por Dostoiévski, em Os Irmãos Karamazov, Crime e Castigo e Os Demônios.

Nietzsche (que convive com o positivismo cientificista e com a ideia de que o homem pode fazer-se a si mesmo, daí a grande batalha Niilismo X Positivismo) teoriza a questão, sobretudo na obra, postumamente compilada, Vontade de Poder (1895). As maiores influências que ele recebe nesse assunto vêm de Schopenhauer, Turgueniev, Dostoievski, Bougart e Stirner. Para Nietzsche, o niilismo passivo, ou incompleto, seria uma evolução do indivíduo, mas jamais uma transvaloração (mudança) de valores. Através do anarquismo ou socialismo consegue-se um avanço; porém, os valores demolidos darão lugar a novos valores. É a negação do desperdício da força vital na esperança vã de uma recompensa ou de um sentido para a vida. Opondo-se a autores socráticos e à moral cristã, ele nega que a vida deva ser regida por qualquer tipo de padrão moral almejando um mundo superior, pois isso faz com que o homem minta para si, falsifique-se, e viva a vida fixado na mentira. Assim, no niilismo não se promove a criação de qualquer tipo de valores, já que ela é considerada uma atitude negativa.

Nietzsche coloca-se num niilismo-ativo, ou niilismo completo, considerando-se o primeiro niilista de fato, o niilista-clássico, prevendo o desenvolvimento e discussão de seu legado. Este segundo sentido propõe uma atitude mais ativa: renegando os valores metafísicos, redireciona a sua força vital para a destruição da moral. No entanto, após essa destruição, tudo cai no vazio: a vida é desprovida de qualquer sentido, reina o absurdo e o niilista não pode ver outra alternativa senão esperar pela morte (ou provocá-la). Todavia, esse final não é, para Nietzsche, o fim último do niilismo: no momento em que o homem nega os valores de Deus, deve aprender a ver-se como criador de valores e no momento em que entende que não há nada de eterno após a vida, deve aprender a ver a vida como um eterno retorno: sem isto, o niilismo será sempre um ciclo incompleto.

Nietzsche, a partir da concepção da vontade de poder, foi visto como um dos grandes pensadores da suspeita, ao lado de Marx e de Freud. O Iluminismo criara o sujeito moderno (racional, imutável, agente e protagonista ele próprio de seu destino e não as Moiras[11]), que reinou nos séculos XIX, XX. Todavia, após isso, ocorrem rupturas importantes com o pensamento iluminista (como mostra Stuart Hall, em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade[12]): a) o pensamento marxista, pelo qual as pessoas se formam subjetivamente por meio de suas participações em relações sociais ampliadas: o ser social é que determina a consciência do homem…; b) o inconsciente que nos é apresentado por Freud: é este inconsciente, e não a razão cartesiana, que determina nossas ações – do Cogito, penso logo existo vamos para um “desejo logo existo”, antes já prenunciado por Schopenhauer; c) a teoria do linguista Saussure, de que não somos autores de nossas afirmações nem dos significados que expressamos por meio de nossa própria língua, posto que a forma pela qual expressamos nosso pensar acha-se condicionada e limitada pelos vocábulos que nosso idioma possui; d) os trabalhos de Foucault, para quem nós, as pessoas, em vez de sujeitos livres, somos vigiados e adestrados permanentemente pelos poderes disciplinadores (como escolas, hospitais e clínicas, quartéis, prisões); e) o impacto dos movimentos feministas. Com tantas rupturas, morre completamente o “sujeito” do Iluminismo, aquele que tinha uma identidade fixa e descentrada. Em seu lugar surge um sujeito de identidades contraditórias, inacabadas e fragmentadas[13].

Depois de Nietzsche, como ele antecipara, o niilismo ganhou grande atenção, sobretudo com a Primeira Guerra Mundial e os avanços científicos. Despontaram autores como Oswald Spengler (O Declínio do Ocidente, 1918) e Max Weber; pouco mais tarde Martin Heidegger e Ernst Jünger discutindo o niilismo chegaram a reflexões muito importantes. Outros pensadores aportaram colaborações, como Jean Paul Sartre, com o niilismo-existencialista, e Albert Camus, com o niilismo-gnóstico. Neles, enquanto Sartre reprova qualquer divinização, Camus se aproxima do misticismo. O niilismo dos dias correntes, no entanto, é bem diferente dos citados, na medida em que é bem cientificista e satisfeito, conforme entender do filósofo José J. Escandell[14].

Hoje, submergimos no seio desses niilismos hegemônicos (por vezes de cunho bastante materialista, uma vez que destruímos a metafísica, destruímos a transcendência, a tradição, os vínculos, mas como não suportamos viver no vazio, sem nada, nos apegamos a uma realidade – real e virtual! – concreta de detalhes e por nós inventada e “endeusada”, preenchedora da fome de posse, daí a escalada voluptuosa do ter sobre o ser…), em tempos agora que são batizados de Quarta Revolução Industrial[15], revolução 4.0[16], 4RI[17] (que segue à primeira, dada a partir da Inglaterra, 1780-1830; à segunda, pelos 1850 em diante; à terceira, mais recente, nos 1950, esta com os computadores e as telecomunicações). Essa quarta revolução, completamente virtual e digital, se baseia na convergência de tecnologias físicas, digitais e biológicas, todas em sistemas digitais[18], tendo um de seus pontos de alta na assim chamada internet das coisas, Internet of Things, IoT, recurso que nas linhas de produção das fábricas mundiais pode elevar a produtividade ao infinito… O humano, que a pouco se desencanta também da Ciência, paradoxalmente se ajoelha diante da parafernália tecnológica, comparecendo às novas igrejas, chamadas agora de Shopping Centers, para, com sua realidade virtualizada, transferir para tal maquinaria a esperança de crença em alguma coisa e de algum sentido, mediante a criação de idealismos. Na medida em que se deteriora a substância anterior dos laços familiares, sociais e religiosos, o ser humano se intoxica de tecnologias – sempre do dia –, num update patológico, e de espiritualidades as mais estranhas.

Com a falência da ideia de Deus e das religiões, a ascensão de uma promessa científica de explicações para as dúvidas – que não se deu, isso associado ao vertiginoso ritmo de bombardeamento massificado de informações, desqualificadas em sua esmagadora maioria, e com nossa perda da capacidade de análise crítica, o ser humano, submerso em niilismos variados, todos direcionando para um vácuo, ou um “poço sem fim”, não logrou se catapultar ao grau de Übermensch – o além-homem vislumbrado por Nietzsche; ficou pelo meio do caminho, pelo contrário, apequenou-se, e descarrega sua angústia do vazio existencial (veja-se Viktor Frankl[19]) seja na tentativa de consumo como fenômeno social, seja na formação de um sintoma psíquico, que é a depressão.

Para a OMS, a depressão é um “transtorno que pode afetar pessoas de qualquer idade em qualquer etapa da vida”[20], por isso é uma das condições prioritárias cobertas pelo Mental Health Gap Action Programme (mhGAP) da Organização. Mas o que é depressão? No Dicionário de Psicanálise, de Elizabeth Roudinesco e Michel Plon, à página 507, lê-se:

Pouco interessado nessa psiquiatrização do estado melancólico, Sigmund Freud renunciou a aproximar a mania da depressão, preferindo revigorar a antiga definição da melancolia: não uma doença, mas um destino subjetivo.

Já em 1895 ele se interrogava sobre a melancolia e, num manuscrito enviado a Wilhelm Fliess, aproximou-a do luto, isto é, do “pesar por alguma coisa perdida”, comparou-a à anorexia a relacionou com uma falta de excitação sexual somática. Foi somente em 1917, entretanto, que publicou um texto magistral sobre a questão, “Luto e melancolia”, fazendo desse segundo termo a forma patológica do primeiro. Enquanto o sujeito, no trabalho do luto, consegue desligar-se progressivamente do objeto perdido, na melancolia, ao contrário, ele se supõe culpado pela morte ocorrida, nega-a e se julga possuído pelo morto ou pela doença que acarretou sua morte. Em suma, o eu se identifica com o objeto perdido, a ponto de ele mesmo se perder no desespero infinito de um nada irremediável.

Antes da publicação, Freud enviou esse texto a Karl Abraham, grande especialista freudiano nas psicoses e, em especial, na melancolia, sob a forma da psicose maníaco-depressiva, à qual dedicaria diversos artigos.

Enquanto os freudianos associaram os dados da nosografia psiquiátrica à reflexão psicanalítica sobre o luto, a escola kleiniana, marcada desde o início pelo trabalho de Abraham, acentuou a problemática da perda do objeto e da posição depressiva inscrita no âmago da realidade psíquica.

No fim do século XX, a depressão, forma atenuada da melancolia, vai se tornando, nas sociedades industriais avançadas, uma espécie de equivalente da histeria da Salpêtrière, outrora exibida por Jean Martin Charcot: uma verdadeira doença de época. Se esta última, no entanto, se afigurara aos olhos dos contemporâneos como uma revolta do corpo feminino contra a opressão patriarcal, a depressão, ao contrário, cem anos depois, parece ser a marca de um fracasso do paradigma da revolta, num mundo desprovido de ideais e dominado por uma poderosa tecnologia farmacológica, muito eficaz no plano terapêutico. (Grifo meu.)

Para a psiquiatria organicista, de foco positivista, a depressão seria de natureza biológica[21]. Mas, com esta, concorre outra possibilidade, convivem as duas: a do diálogo da psicanálise, que realça a gênese do conflito psíquico, criando oportunidades para as intervenções psicanalítica e psicoterapêutica.

Os dicionários de etimologia[22] ensinam que depressão tem origem no Latim depressio, onis, de deprimere, que é “apertar firmemente, para baixo”, “abaixamento do nível de pressão ou peso”, de de-, “para fora”, mais premere, “apertar”.

A palavra é de uso recente na linha da história dessa nosografia, e foi introduzida em situação médica no debate sobre a melancolia apenas no século XVIII, passando a ser mais empregada pelos psicopatologistas no século XIX. Ensinamentos preciosos podem ser obtidos na obra do filósofo e psicanalista Pierre Fédida (1934-2002).[23] Outra citação precisa ser a da autora brasileira Maria Rita Khel, com seu O tempo e o cão – a atualidade das depressões[24]. Refira-se ainda, obrigatoriamente, a obra do norte-americano Andrew Solomon O demônio do meio-dia – uma anatomia da depressão[25].

É preciso todo o cuidado clínico para se fazer a necessária e fundamental distinção diagnóstica entre melancolia, depressão, estresse e tristeza, embora esta última possa ser um dos sintomas da segunda. Contudo, insista-se: estar triste não é estar deprimido. O sentimento de tristeza é mais passageiro e muito diferente da depressão como patologia. A tristeza é um momento de recolhimento voluntário e de reflexão, e auxilia enormemente o ego a se recompor, é estruturante. Acredita-se que a depressão seja causada por um mosaico biopsicossocial, isto é, tenha origem biológica (neuronal, bioquímica), psicológica e social. Mesmo a OMS entende que: “A depressão resulta de uma complexa interação de fatores sociais, psicológicos e biológicos”[26]. E, ainda, como alguém já disse, a depressão pode ser pensada como um excesso de realidade, ou, sob um ponto de vista mais cristão e religioso, como a tentação da desesperança. Em ambos os casos logo salta aos olhos a relação com esse mundo tecnicista, desesperançado em hiper-real.

O tratamento pode ser conduzido pelo braço farmacológico, com o uso de antidepressivos[27], e pelo caminho de psicoterapias, com destaque para a psicanálise[28]. A farmacologia busca atuar sobre as consequências da depressão; já as psicoterapias se propõem a elucidar suas causas[29].

A depressão tem sido referida como a doença do século (curiosamente tanto o séc. XX como o XXI já nas suas duas primeiras décadas) e se tornou um prato cheio para a mídia, a internet e as revistas, reforçando o modelo capitalista de invenção de verdades.

No plano mundial, segundo relatório global lançado pela Organização Mundial da Saúde, “o número de casos de depressão aumentou 18% entre 2005 e 2015: são 322 milhões de pessoas em todo o mundo, a maioria mulheres. No Brasil, a depressão atinge 11,5 milhões de pessoas (5,8% da população), enquanto distúrbios relacionados à ansiedade afetam mais de 18,6 milhões de brasileiros (9,3% da população)”[30],[31]. As pessoas atingidas são de todas as idades. Ora, tais números representam um mercado considerável…

Ainda de acordo com a OMS, a doença é “a principal causa de incapacidade em todo o mundo”[32] e quando “de longa duração e com intensidade moderada ou grave, a depressão pode se tornar séria condição de saúde”[33], chegando, no quadro pior, ao suicídio.

Um problema crítico para o manejo desse mal tem sido a dificuldade de e o erro diagnóstico. Consoante a própria OMS, “em países de todos os níveis de renda, pessoas com depressão frequentemente não são diagnosticadas corretamente e outras que não têm o transtorno são muitas vezes diagnosticadas de forma inadequada”[34].

Para resumo, menciono a reflexão de Monteiro e Lage[35]:

Finalmente, conclui-se que é relevante considerar: (1) o tratamento da depressão baseando-se na singularidade do sujeito que apresenta tal quadro e, não somente na sintomatologia; (2) que nem toda manifestação de tristeza é uma manifestação patológica; e, (3) a compreensão da depressão normal enquanto luto, no sentido psicanalítico do termo, que, após um certo lapso de tempo, necessita ser superado e a libido reinvestida em outros objetos.

Por fim, caberia a conclusão de que será na perplexidade e na surpresa que a vida atual nos imputa, nelas mesmas, derivadas das contradições, da multiplicidade, das inovações contínuas, dos paradoxos, das incertezas, etc., que encontraremos o barro de nossa reconstrução e o hálito com que nos revivificaremos, incluindo e ressaltando nessa receita todos os aspectos vibrantes de nossa humanidade, desde sempre, como a capacidade de amar, de perceber o outro, de cuidar, de esperar, de nascer e morrer, e de poetizar nossa própria limitação de apreensão e conhecimento. Se nossa paulatina perda do senso religioso e de família, valores aos quais nos afeiçoáramos, associada ao fortalecimento de um discurso científico e materialista, nos rouba a transcendência e a metafísica, “niilizando-nos”, projetando-nos numa forma de vácuo existencial pelo sem-sentido da vida e de tudo, e nos deixa, como órfãos, de mãos dadas com a depressão, dissimulando-nos com a pílula do consumo, do culto ao eu e ao corpo, então cumpre que outras utopias sejam imaginadas e perseguidas com o afinco do filósofo, a fé do religioso e o sonho dos poetas (e cada um de nós, desde o mais fundo da própria alma, possa vir a dizer com Neruda: confesso que vivi [36])!

NOTAS E REFERÊNCIAS

[1] Para saber mais:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Bitcoin

https://guiadobitcoin.com.br/

[2] Conforme: https://exame.abril.com.br/mercados/entenda-o-que-e-bitcoin/

[3] A invenção chinesa que mais surpreendeu Marco Polo. Ver em:  http://www.bbc.com/portuguese/geral-40850733

[4] TORRES, Fernando. A nova arte de fazer dinheiro. Ver em Jornal Valor Econômico: http://www.valor.com.br/cultura/5266749/nova-arte-de-fazer-dinheiro

[5] RITTNER, Daniel, MOREIRA, Assis. Não é um cálculo racional investir em criptomoedas. Jornal Valor Econômico de 26/jan/2018. Ver em:

http://www.valor.com.br/financas/5283249/nao-e-um-calculo-racional-investir-em-criptomoedas

[6] Para saber mais:

http://castellaniana.blogspot.com.br/

http://hjg.com.ar/txt/lc/

http://panoramacatolico.info/articulo/finalmente-el-p-castellani-comienza-a-ser-reconocido-en-espana

[7] https://www.libroslibres.com/

[8] A Tempo Análise, em 6 de dezembro passado, promoveu encontro sobre “A Vontade”. Ver em: https://tempoanalise.com.br/tempo-analise-promove-encontro-sobre-a-vontade/

[9] Leonardo CASTELLANI. Crítica Literaria  –  Notas a caballo de un paia en crisis. Ediciones Dictio, 1974. 565 p.

https://radiocristiandad.files.wordpress.com/2017/12/p-castellani-critica-literaria.pdf

Mais sobre “vontade” em:

Leonardo CASTELLANI. Psicología humana. Ediciones Jauja, 1997.

http://disenso.info/wp-content/uploads/2013/07/Psicologia-humana.-Leonardo-Castellani.pdf.

[10] Ver: Queima de café em 1931.

http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos081.htm

[11] Ver: Fausto A. de Azevedo. As Fatalidades (ou agora sei o porquê de não ganhar na mega-sena).

https://tempoanalise.com.br/as-fatalidades-ou-agora-sei-o-porque-de-nao-ganhar-na-mega-sena/

[12] Stuart HALL. A identidade cultural na pós-modernidade. [Trad. Tomaz Tadeu da Silva] Rio de Janeiro: Ed. Lamparina, 2014. 96 p. (principalmente Capítulo 2) http://www.lamparina.com.br/livro_detalhe.asp?idCodLivro=451

[13] A respeito de “fragmentadas” ver: Fausto A. de AZEVEDO. Espaço: Um, nenhum, cem mil   Tempo: Como estamos envelhecendo! Aqui e agora.

https://tempoanalise.com.br/espaco-um-nenhum-cem-mil-tempo-como-estamos-envelhecendo-aqui-e-agora/

[14] Info familiaLibre. https://www.infofamilialibre.com/index.php/jose-j-escandell .

[15] Ver o recém lançado livro do diretor do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, A quarta revolução industrial, Brasil, Editora Edipro, 2016, 160 p. Tradutor: Daniel Moreira Miranda.

http://www.edipro.com.br/produto/a-quarta-revolucao-industrial/

[16] Notação apresentada em 2012 (outubro), por Henning Kagermann e Siegfried Dais, na feira de tecnologia de Hannover, Alemanha.

[17] ou Segunda revolução da informação.

[18] Para aprofundamento e reflexões consultar matérias na página do Fórum Econômico Mundial: https://www.weforum.org/

[19] Como em Psicoterapia e sentido da vida. Editora Quadrante, 2010. 424 p. http://www.quadrante.com.br/psicoterapia-e-sentido-da-vida

[20] Depressão é tema de campanha da OMS para Dia Mundial da Saúde de 2017. Disponível em:

https://nacoesunidas.org/depressao-e-tema-de-campanha-da-oms-para-dia-mundial-da-saude-de-2017 /. Último acesso: 30/12/2017.

[21] BOGOCHVOL, A. Sobre a Psicofarmacologia. In: MAGALHÃES, Maria Cristina R. (org.) Psicofarmacologia e Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2001. p. 35-61.

NOGUEIRA FILHO, D.M. Sobre a Psiquiatria e a Psicanálise. In: MAGALHÃES, Maria Cristina R. (org.) Psicofarmacologia e Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2001. p. 23-34.

[22] Dicionário Etimológico, de José Pedro Machado; Dicionário Etimológico Nova Fronteira, de António Geraldo da Cunha.

[23] Ver, em particular:

FÉDIDA, Pierre. Depressão. [tradução Martha Gambini.]. São Paulo: Escuta, 1999. 122 p.

FÉDIDA, Pierre. Dos benefícios da depressão – elogio da psicoterapia. [tradução Martha Gambini.] São Paulo: Escuta, 2009. 224 p.

[24] KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão – a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo Editorial, 2009. 293 p. http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/o-tempo-e-o-cao

[25] SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia – uma anatomia da depressão. 2ª. ed. [Tradução Myriam Campello.] São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 579 p.

http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=80224

[26] Depressão é tema de campanha da OMS para Dia Mundial da Saúde de 2017. Disponível em: https://nacoesunidas.org/depressao-e-tema-de-campanha-da-oms-para-dia-mundial-da-saude-de-2017/ . Último acesso: 26/03/2017.

[27] São muitos os livros que abarcam o tema psicofarmacologia. Abaixo algumas indicações interessantes:

ALMEIDA, Reinaldo Nóbrega de. Psicofarmacologia – Fundamentos Práticos. São Paulo: Editora Guanabara Koogan, 2006. 384 p.

CORDIOLI, Aristides Volpatoi, GALLOIS, C.P., ISOLAN, L. Psicofármacos. 5ª. ed. Porto Alegre: Artmed, 2015. 1024 p.

http://www.grupoa.com.br/uploads/imagensExtra/legado/C/CORDIOLI_Aristides_V/Psicofarmacos_Consulta_Rapida_5ed/Lib/Sum_det.pdf

GRAEFF, Frederico Guilherme, GUIMARÃES, F.S., Fundamentos da Psicofarmacologia. 2ª. ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2012. 288 p.

http://atheneu.com.br/fundamentos-de-psicofarmacologia-2-edic-o.html#JumPos

NOGUEIRA, Marcos Jesus. O uso de psicofármacos – um guia. São Paulo: Guanabara Koogan, 2013. 600 p.

http://atheneu.com.br/o-uso-de-psicofarmacos.html#JumPos

SENA, Eduardo P. et alii. Irismar Psicofarmacologia clínica. 3ª.ed. Rio de Janeiro: Medbook,2011. 700 p.

http://www.medbookeditora.com.br/produto/irismar-y-psicofarmacologia-clinica/5961

STAHL, Stephen M. Psicofarmacologia: depressão e transtornos bipolares. 3ª. ed. São Paulo: Guanabara Koogan, 2003. 200 p.

http://www.almedina.net/catalog/product_info.php?products_id=5400

STAHL, Stephen M. Psicofarmacologia – Bases neurocientíficas e aplicações práticas. São Paulo: Guanabara Koogan (Edição Digital), 2014.

TENG, Chei-Tung, Demetrio, F.N. psicofarmacologia aplicada manejo prático. 2ª. ed. São Paulo: Guanabara Koogan, 2012. 396 p.

http://atheneu.com.br/psicofarmacologia-aplicada-manejo-pratico-2-edic-o.html#JumPos

[28] MAGALHÃES, Maria Cristina Rios. Org. Psicofarmacologia e psicanálise. São Paulo: Escuta, 2001. 162 p. http://www.editoraescuta.com.br/titulo-detalhes.php?cd=166

[29] Para ver mais sobre tratamento consultar: OMS, Dia Mundial da Saúde de 2017: depressão.

http://www.intertox.com.br/oms-dia-mundial-da-saude-de-2017-depressao?highlight=WyJkZXByZXNzXHUwMGUzbyIsIm9tcyJd

[30] Depressão é tema de campanha da OMS para o Dia Mundial da Saúde de 2017. Disponível em: https://nacoesunidas.org/depressao-e-tema-de-campanha-da-oms-para-dia-mundial-da-saude-de-2017/  . Último acesso: 26/03/2017.

[31] Ver: OMS registra aumento de casos de depressão em todo o mundo; no Brasil são 11,5 milhões de pessoas. (23/02/2017) Disponível em: https://nacoesunidas.org/oms-registra-aumento-de-casos-de-depressao-em-todo-o-mundo-no-brasil-sao-115-milhoes-de-pessoas/ . Último acesso: 29/03/2017.

[32] Depressão é tema de campanha da OMS para Dia Mundial da Saúde de 2017. Disponível em: https://nacoesunidas.org/depressao-e-tema-de-campanha-da-oms-para-dia-mundial-da-saude-de-2017/ . Último acesso: 26/03/2017.

[33] Idem.

[34]. Idem.

[35] MONTEIRO, K.C.C., LAGE, A.M.V. Depressão – Uma ‘Psicopatologia’ Classificada nos Manuais de Psiquiatria. Psicologia Ciência e Profissão, 27 (1): 106-119, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pcp/v27n1/v27n1a09. Último acesso: 26/03/2017.

[36] Pablo NERUDA. Confesso que Vivi – Memórias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. 420 p.

http://www.record.com.br/livro_sinopse.asp?id_livro=21078 .