Espaço: Um, nenhum, cem milTempo: Como estamos envelhecendo! Aqui e agora

Êxodo 3:13,14

13 Então disse Moisés a Deus: Eis que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me disserem: Qual é o seu nome? Que lhes direi?

14 E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós.

Giorgio de Chirico: The Enigma of the World

Um nenhum cem mil. Quantos somos eu? Somos tantos quanto são cada um a existir no seu tempo e espaço – aqui/agora.

Parmênides, filósofo tão debruçado sobre o ser, pai da Ontologia ocidental, no Proêmio do poema Sobre a Natureza, nos faz pensar nos seguintes Princípios Ontológicos:

  • Princípio de identidade – toda entidade é idêntica a si mesma (mesmidade) /  [eu sou idêntico a mim mesmo].
  • Princípio de não contradição – nenhum ente pode ser e não-ser ao mesmo tempo. O ser é e o não-ser não é. (O mal é o não-ser, Agostinho)
  • Princípio do terceiro excluído (tertium non datur) – as coisas são ou não-são, não há uma terceira possibilidade.

Pois bem, parece que faltei nessa aula e, como castigo, volto e re-volto a ter dúvidas sobre a identidade e a mesmidade de meu ser, pelo menos eu-que-aqui-estou-em-mim, nesse século XXI, latitudes e longitudes brasílicas, 2.500 anos depois de Parmênides e do outro lado do mundo.

Hipoquimeno ousia persona ser sujeito eu eu-mesmo eu-em-mim eu-isso eu-aí eu/ente/onto ego substância pensante vontade eu-essência eu-existência eu-fenômeno alma espírito consciente e inconsciente, identidade, em quantos me divido, sou ou estou?

Quais dessas partes que se abrigam em mim podem responder por mim, e que dever tenho para com elas? Elas, que hão de ter tido um princípio ontológico (Deus?), mas vêm decaindo dentro mim desde sempre, ao modo de Epicuro quando pensa os átomos. Hei de ser um indivíduo, que é aquele que não se divide: utopia, quimera! Mas para existir funcionalmente no atual pós-apocalipse, preciso dessa entidade unívoca, meio mentira meio mística meio matemática!

Eu sou minha subjetividade ou sou objeto dela?; quem vem antes de quem?; sou produto da língua, mas como é isso se antes de haver o humano não havia qualquer língua? O outro me faz, o outro grande ou pequeno, e eu faço a quem e o quê? E, além de tudo, a mídia (novo nome de História) me determina – e o consumismo me guia e consome…

Eu-heteronímia eu-pseudonímia eu-metonímia, eu-antonímia, enfim, eu-carteira-de-identidade, número administrativo brasileiro de contagem normalizada: ganhei um número e sou igual a esse número, identificação matemática, matema xamânico que garante a mim eu ser eu com meu algoritmo; e há um dígito!… Meu número de origem é 4213395 dígito 6. Imagino que este dígito seja a contagem dos eus dentro de mim, isto é, dentro do número, isto é, dentro da identidade; todavia a última renovação do dito documento identificatório foi há bom tempo, portanto de lá para cá o dito dígito 6 acredito que seja 20 ou 30 ou 100 mil! É irresistível o chiste: Dígito ergo sum. Porém, quem sou mesmo, se no próprio ato de me perguntar quem sou eu já sou fragmentadamente mais de um: o perguntador e aquele que é o que equivale ao perguntado, e, ademais, o sujeito que pergunta e investiga modifica o objeto-sujeito inquirido, ou não?! Eis a primeira duplicidade. Duplix! E no aqui-eu sempre coabita, dentro ou fora, um duplo, como em Dostoievski (O duplo), em Saramago (O homem duplicado), Rank (O duplo – um estudo psicanalítico[1]), ou em filmes: Der Student von Prag (O estudante de Praga), 1913, roteiro de Hanns Heinz Ewers[2], direção de Paul Wegener, Stellan Rye[3]; The Scapegoat (O estranho caso do Conde), 1959, direção de Robert Hamer[4].

Sei que sou agora, América do Sul-mundo, mas

Fósseis de Homo sapiens descobertos no Marrocos – que tem entre 300 mil e 350 mil anos de idade – fizeram recuar em 100 mil anos a data da origem de nossa espécie, segundo dois estudos publicados nesta quarta-feira (7) na revista “Nature”[5]. [7/6/2017]

Como estamos envelhecendo!

E com todo esse tempo ainda não hei verdades e pergunto aos céus acerca de mim e disto!…

O eu tem uma história, não foi sempre ele mesmo. E se o eu se comunica com o sujeito, então o mesmo acontece para este.

Sujeito: do Latim subjectus, particípio passado de subicere, “colocar sob, abaixo de”, o que está situado abaixo, formado por sub-, “sob”, mais a forma combinante de jacere, “lançar, atirar”. Sujeitar tem a mesma origem. Com o significado de “pessoa ou assunto sobre a qual se atua” é do século XVI. Assim, o sujeito é o fundamento, aquilo que está por baixo do que se me apresenta. O que está na sombra do que se me oferece como fenômeno. No tempo de hoje diz-se que o sujeito está sujeitado a um cem-sem número de imperativos.

Para Abbagnano, o “termo teve dois significados fundamentais: 1º. aquilo de que se fala ou a que se atribuem qualidades ou determinações ou a que são inerentes qualidades ou determinações; 2º. o eu. o espírito ou a consciência, como princípio determinante do mundo do conhecimento ou da ação, ou ao menos como capacidade de iniciativa em tal mundo.”

Entretanto, como fez o Pessoa[6], eu, hoje ou agora, tomo a decisão de ser eu. Qual deles?

Quisera eu também nascer apesar de nascido estar; quisera encontrar meu gênio; quisera saber mais de mim sabendo mais dos outros; quisera poder estar nos outros, conhecer o que são, entender os sentidos, só assim eu poderia começar a chegar perto de mim; todavia não sei o que é isso, não sei o que fazer com todos esses nascimentos que a cada minuto acontecem, embora a maioria das vezes não os percebamos.

Como poder compor-me num mundo que decomposto está? A aflição de todos corre atrás do absolutamente inútil; a angústia predomina sobre qualquer traço de razão e o desespero avassalador destrói as emoções; os humanos são frios, esgotados entre paredes no centro do consumo, degenerados em sua fé e perdidos nas tolices de pequenas grandes importâncias sempre desnecessárias. Já não se vê mais luz nos olhares, ou se alguma claridade vista for será de neon da vitrina anunciadora de milagres… No entanto, o grande milagre sempre possível de se realizar pelo mergulho na consciência de si, daquilo que seja um algo do psiquismo mais fundamental, é a percepção, a impressão, a intencionalidade de que dentro de todos os limites estabelecidos e pactuados, aceitos e operacionalizados, o eu-que-nos-resta ainda pode ser livre e independer das mentiras inventadas por uma sociedade que morre de medo de se ver no espelho.

Descartes, em 1637, nos presenteia com o Sujeito do Cogito = Sujeito do Conhecimento. Ele coloca tal sujeito na centralidade da explicação da história humana, como ponto de partida epistemológico único: Cogito ergo sum. (Início da Modernidade Capitalista e, também, com isso nasce o Humanismo, que parte da subjetividade deste homem do Cogito. Tal humanismo é uma concepção que faz do homem início epistemológico fundamental). Deus é deslocado do centro: o teocentrismo dá lugar a um antropocentrismo. Este sujeito se vê autônomo, se autoconcebe como fundamento de todo o real, crê ter substituído a Deus como razão de ser de tudo, acredita ter a capacidade de transformar a realidade, crê ser o dono no mundo. E ele se definirá pela subjetividade. É um sujeito da burguesia capitalista européia de então.

O estimado e erudito professor Franklin Leopoldo e Silva ensinou-me esta sequência para pensar a respeito do si:

  • O imperativo ético: conhece-te a ti mesmo: Sócrates / Platão
  • A interioridade como caminho para si e para o outro: Santo Agostinho
  • A descoberta da subjetividade: Descartes
  • Pensar a identidade oculta: Kant
  • A intuição de si mesmo: Bergson
  • A existência como desejo de si: Sartre.

Excelente guia para dissertação de mestrado ou tese de doutorado. Indo para além de Sartre, penso já em Foucault, que nos brinda com a morte do sujeito[7], tal como se constata ao final de As palavras e as coisas. Morte esta, importante destacar, que continuou a temporada das grandes mortes inaugurada com a de ninguém menos que Deus, conforme Nietzsche, em A Gaia Ciência, §125.

Portanto, a aceitarmos tais fatos, o sujeito da razão, que teve seu vigoroso nascimento com Descartes e sua contundente adolescência com Kant, e pôs marcas profundas na História, as quais proliferam até agora, já partiu. Réquiem! Durou menos do que quatro séculos. (Muito embora prenúncios do fim já se adivinhassem mesmo em Kant e em Schopenhauer[8].)

E ainda sequer mencionei o abalo tsunâmico provocado por Freud, que anexou à galeria seu sujeito do inconsciente, ao qual uma boa mão foi dada (ou tirada) por Lacan… Este sujeito, esclareça-se, não é o praticante da ação, o dono da sintaxe… Ao contrário, refere-se mais a estar sujeitado, a ser um receptor da ação. De quem? Ora desse oculto inatingível e indeterminado, que nos é sub-iéctum, mas nos conduz.

Para terminar, o título que escolhi acima (ou parte dele) tirei da obra de Luigi Pirandello – Uno, Nessuno e Centomila[9]. Nela, o anti-herói Vitangelo Moscarda descobre que seu nariz pende para a direita, o que muda sua vida identitária e o projeta numa metafísica sem fim. Sem trocadilhos, identifico-me com o Moscarda, que percebeu que cada um que o vê o vê de uma maneira diferente, como a um eu exclusivo de si… E ele, como se vê? Como vemos nossos narizes? Qual a função do espelho? Leiamos um pequeno trecho da obra:

– Porque para se ver é preciso fechar a vida em um átimo. Como diante de uma máquina fotográfica. A senhora assume uma pose. E posar é como se tornar uma estátua por um momento. A vida se move continuamente, e nunca pode ver a si mesma.

– Quer dizer que eu, viva, nunca me vi?

– Jamais como eu posso vê-la. Mas eu vejo uma imagem da senhora que é só minha – uma imagem que certamente não é a sua. A sua, viva, a senhora talvez a possa ter vislumbrado em alguma foto instantânea que lhe fizeram. Mas sem dúvida deve ter tido uma ingrata surpresa. Talvez tenha até relutado em se reconhecer naquela imagem descomposta, em movimento.

– É verdade.

– A senhora só pode reconhecer-se posando: estátua sem vida. Quando alguém vive, vive sem se ver. Conhecer-se é morrer.

No aqui-agora, o paradigma da subjetividade é delimitado pelo da alteridade, o que nos leva, inexoravelmente, a uma multiplicidade ainda maior de eus. Lévinas nos ensinou algo como que: mais sou eu – e mais livre – quanto mais escapo mim…

Raciocinando com o narrativismo, quando me pergunto quem sou eu, se uma resposta houver e for formulada ela será algo da ordem de um texto, e como todo texto permitirá uma hermenêutica. Nesse sentido, então, poderei dizer que eu sou uma interpretação; sou uma narrativa interpretada; sou uma solução escrita, um pacto, um sintoma posto em palavras; posso ser uma prosa ou uma poesia, desde que a imaginação inventiva rompa o formal e subverta toda ordem neurotizante que busca fazer parecer ser aquilo que não é ou não foi preparado para ser ou pertencer…

Qual a saída, portanto, para de fato e em totalidade sabermo-nos? Nenhuma, a não ser pistas que a poesia pode dar. Aprendamos, pois, com Cecília Meireles:

O vestido de Laura[10]

O vestido de Laura

É de três babados,

Todos bordados.

O primeiro, todinho,

Todinho de flores

De muitas cores.

No segundo, apenas

Borboletas voando,

Num fino bando.

O terceiro, estrelas,

Estrelas de renda

– talvez de lenda…

O vestido de Laura

vamos ver agora,

sem mais demora!

Que as estrelas passam,

borboletas, flores

perdem suas cores.

Se não formos depressa,

acabou-se o vestido

todo bordado e florido!”

Notas

[1] Ver: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/gerais/v8n1/v8n1a12.pdf .

[2] Ver: http://www.revistas.usp.br/pg/article/viewFile/62230/65055 e https://www.youtube.com/watch?v=OuvIvwSi1gI

[3] Ver: http://www.imdb.com/title/tt0003419/ .

[4] Ver: http://www.imdb.com/title/tt0053247/ e https://www.youtube.com/watch?v=NXABkEqDjPc .

[5] Ver:

http://noticias.ambientebrasil.com.br/clipping/2017/06/08/137099-cientistas-dizem-ter-identificado-mais-antigo-fossil-de-homo-sapiens-e-ele-e-100-mil-anos-mais-velho-do-que-se-acreditava.html

[6] Hoje Tomei a Decisão de Ser Eu

Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver à altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilizacão de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Génio e na divina consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu carácter nato quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido, me impõe que eu não deixe de ser.

Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou.

Nada de desafios à plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palhaço; é de renúncia e de silêncio que se veste.

O último rasto de influência dos outros no meu carácter cessou com isto. Reconheci — ao sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de « lançar o Interseccionismo» — a tranquila posse de mim.

Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.

[7] Ver entrevista de Foucault em: file:///C:/Users/Fausto/Downloads/homemmorto.pdf .

[8] Rogério Miranda de Almeida. Kant, Schopenhauer e o fim do sujeito. Ver: http://faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/2705

[9] Ver: https://it.wikipedia.org/wiki/Uno,_nessuno_e_centomila .

[10] Cecília Meireles. Ou isto ou aquilo. Nova Fronteira. 2002. p. 36.