Hipocondria: o corpo em sofrimento
Palavras chave: hipocondria, corpo, melancolia, angustia, cybercondríacos
Podemos dizer que a psicanálise sempre teve um olhar atento para as relações entre o psíquico e o social já que falamos de um sujeito atravessado pelo inconsciente e pela cultura.
Assim, acompanhamos nas últimas décadas tanto as transformações no contexto sócio-cultural quanto nas mudanças dos sintomas apresentados pelos pacientes nos consultórios psicanalíticos. Se na nossa sociedade o corpo está em evidência e a imagem ganha grande destaque na contemporaneidade, o aumento da incidência das doenças psicossomáticas não surpreende. É o corpo expressando um sofrimento que não consegue ter representação por meio da palavra. Neste contexto, vale destacar um dos desafios dos psicólogos, psicanalistas e médicos: a hipocondria.
Alguns autores fazem uma aproximação da hipocondria com a melancolia; outros com a psicose. Freud entendia a hipocondria como uma neurose narcísica (hoje conceituada dentro dos chamados quadros limites ou estruturas ‘border’). Mais do que buscarmos um tipo de funcionamento psíquico dominante nesta doença, o importante é entendermos que o hipocondríaco desencadeia um processo muito complexo e inconsciente da subtração de toda a libido (energia psíquica) dos objetos externos para ser investida nos órgãos internos. O corpo fica superinvestido e o adoecimento passa a ser objeto único de interesse da pessoa. Trata-se de um quadro grave e de difícil tratamento. Não é para menos que vários psicanalistas a relacionam com a melancolia: parece ocorrer uma ‘melancolização’ dos órgãos internos. O paciente só consegue falar e viver em torno das doenças e de um corpo em constante sofrimento. É muito comum que a pessoa saia em busca de um médico que confirme o tormento que seu organismo lhe causa, realizando dezenas de exames, com grandes gastos financeiros, para acabar encontrando apenas a negação de suas certezas por parte do profissional. Mas o que o paciente sente é real. Ele não está fingindo, nem querendo ‘chamar a atenção’ das pessoas. Também não se trata da chamada ‘carência’ afetiva no sentido popular. A angústia está presente em forma de doença física; o que se revela é uma ideia delirante de que os órgãos estão em falência.
O psicanalista vai buscar, através da técnica, ajudar este paciente a fazer associações, ligações pulsionais (como dizemos) para que ele possa dar um destino diferente à angústia; para que possa ocorrer um deslizamento do sofrimento do corpo para uma linguagem mais simbolizada.
Atualmente, a pandemia do coronavírus tem provocado em muitas pessoas, sentimentos de medo e solidão que podem desencadear problemas psicossomáticos. Nestes casos, percebemos que os sintomas são passageiros e que estão relacionados com uma angústia momentânea: “…o estudo dos transtornos psicossomáticos revela que é o corpo que sofre quando um excedente de excitação não encontra saída melhor…’ (Riva Shwartzman). O medo da contaminação e da morte pode causar este excesso de energia psíquica sem possibilidade de elaboração simbólica. Mas não se identifica, nestes casos, um diagnóstico da doença em questão.
Embora se trate de uma patologia estudada há séculos, a hipocondria ganha novos contornos com a tecnologia. Sites de busca são acionados, muitas vezes, por hipocondríacos que deslocam seu interesse dos médicos para as inúmeras informações cibernéticas. E assim começa a surgir uma derivação deste quadro: são os ‘cybercondríacos’, que se consideram verdadeiros conhecedores de todas as doenças e dos tratamentos necessários, sem possuírem, no entanto, uma formação regular e adequada. Novos problemas se acrescentam. Sinal dos tempos.
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